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segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Aflições de Augsburg

2003: tudo me remete a esse ano. Tudo aquilo que sou, que deixei de ser, o que quero e o que não quero ser: todas essas perguntas me levam necessariamente a esse ano que permanece como um marco fundador na minha vida. Naquele ano o Brasil ganhava seu primeiro presidente oriundo das classes trabalhadoras, os Estados Unidos se mostravam cada vez mais dispostos a atacar o Iraque, o celular começava a se popularizar e aquele famoso som do ICQ ressoava por todas as internets discadas do país nos fins de semana; naquele ano uma jovem branquela metida a skatista conquistava fãs ao redor do mundo com seu estilo rebelde e sua retórica anti-Britney Spears, ao passo que aqui no Brasil figuras horrendas como Jammil e uma Noites se destacavam no carnaval. Enquanto isso, no interior de Minas Gerais, nascia mais um rebento da geração Kazaa: o então jovem de 15 anos de idade que agora vos fala.

De 2003 em diante minha vida se apegou à internet. Essa ferramenta estranha, que chegara à minha casa há seis anos atrás e cuja finalidade eu então mal podia compreender, se tornava de repente um gênero de primeira necessidade. Para alguém que não tinha muitos amigos, não bebia, não dançava, não saía e sequer conseguia conversar com uma menina, a internet era uma bênção. “Mas e os livros, Marcelo? Você não gostava de ler?”. Não. Meu gosto por livros foi interrompido em 2003 porque foi esse o ano no qual comecei a me preocupar com o vestibular. A partir de então, tomei ojeriza de tudo aquilo que fosse relacionado ao conhecimento, ao saber, à instrução... Justo no ano em que eu mais deveria ler e me informar eu me afastei de tudo isso. E foi justamente nesse momento que a internet me acolheu.

Sendo assim, grande parte do que sou hoje devo a ele: o Kazaa. Quem usou essa valiosa ferramenta para baixar músicas na internet há de se lembrar que ele tinha uma opção de buscar músicas por idiomas. Aquilo para mim era a glória! Uma lista enorme com os mais diversos idiomas à minha disposição: era só escolher uma língua, procurar e baixar qualquer música que viesse. Não importava se a música era rap, pop, rock ou romântica, o mais importante era o idioma. As minhas línguas preferidas eram o turco, o chinês, o árabe e o russo. Enquanto meus dias de semana se resumiam a acumular cada vez mais medo do vestibular, meus finais de semana eram consumidos baixando músicas que ninguém ao meu redor ouvia. No ICQ minha estratégia era semelhante. Até hoje me lembro da menina russa que morava na Síria e estudava literatura japonesa com quem eu conversava frequentemente. Hoje, 8 anos depois, eu vejo que essas experiências não foram de todo insignificantes. Minhas duas estadias no exterior me provaram isso muito bem. Por ter ouvido música de tantos países e em tantos idiomas, e por ter conversado com gente de tanto lugar, hoje, quando encontro alguém de algum país, por mais longínquo que seja, sempre tenho um assunto, algo para comentar: uma banda, um cantor, um ator, um personagem histórico ou político daquele país... E muitos são os que se surpreendem ao ver que um brasileiro conhece um cantor ou o presidente do país dele.

Sim, hoje digo com orgulho que todos aqueles sábados e domingos não foram simplesmente desperdiçados.

Mas minha vida seguiu e o destino me levou para a Malásia. O que foi a Malásia? Até hoje tento compreender. Naquele ano de 2004, porém, eu sabia bem o que ela significava: vitória! O menino que ouvia músicas estranhas em idiomas esquisitos finalmente teria alguém para conversar, visto que estaria em uma terra estranha com um idioma esquisito. Uma terra de maioria islâmica com minorias chinesas e indianas era o palco perfeito para meu triunfo: estava prestes a deixar para trás um país com o qual nunca me identifiquei (até porque pouco o conhecia) para ir a um lugar onde eu me sentiria em casa. Um jovem que queria ser monge budista na infância de fato jamais iria se identificar com um país de micaretas e axés, carnavais e bebedeiras. A Malásia era minha terra prometida. Senti-me retornando à terra natal onde nunca estive.

E eis que deu tudo errado. Os detalhes desse desastre são complexos, contraditórios e caóticos demais para explicar aqui. Nem mesmo em minha cabeça eu consigo formular direito como e porquê essa empreitada se esfacelou em mil pedaços. Diria apenas que chegando lá eu percebi quão ridícula era a ideia de um jovem do interior de Minas, descendente de índios, portugueses, alemães e espanhóis, que nunca tinha saído do seu país, querer encarnar um indiano, malaio ou chinês. Simplesmente não fazia sentido! Nem para mim, nem para eles. Esperei chegar a um país islâmico onde todos se voltavam para Meca cinco vezes ao dia, ouviam música religiosa e conclamavam à jihad contra o grande satã; o que de fato encontrei foram jovens fanáticos por futebol inglês que ouviam Britney Spears e Jennifer Lopez e sequer sabiam a diferença entre um muçulmano sunita e um xiita. Eles esperavam receber um brasileiro bom de bola e bom de papo, que fazia sucesso com as mulheres e estivesse interessado em se divertir; o que encontraram foi um enguiço introvertido que se mostrava muito mais interessado em visitar mesquitas, aprender a recitar o corão e entender o jogo de forças na política malaia do que em comentar o desempenho dos jogadores brasileiros no futebol europeu. E eu, que passei minha infância lendo relatos dos exploradores europeus sobre o choque cultural que sentiam nas terras recém-descobertas, fui aos poucos percebendo que em tempos de Kazaa, ICQ e globalização, o choque cultural é justamente o contrário: o ocidental quer ser como o oriental e vice-versa, e eles continuam não se entendendo (como no tempo dos grandes descobrimentos).

Até então minha vida no Brasil tinha sido uma tentativa constante de forjar para mim mesmo uma identidade cultural que nada tinha a ver comigo: músicas cazaques, vietnamitas e dos mais longínquos confins da Ásia; quando finalmente cheguei aos confins da Ásia, vi quão escabrosas e artificiais eram tais tentativas. Até porque se nem os malaios ouviam música malaia, o que eles pensariam de um brasileiro ouvindo-as?

O resultado disso foi que, após um ano na Malásia, retornei a um país no qual nunca havia estado. Não obstante, aquela mentalidade obsoleta pré-intercâmbio que reverenciava os outros países, as outras culturas e os outros povos permanecia de certa forma bem viva na minha cabeça. Isso me levou a optar pelo curso de Relações Internacionais na hora do vestibular. Claro, né? Ficar um ano exterior fazendo intercâmbio e depois voltar para estudar Relações Internacionais é um dos maiores clichês acadêmicos que já vi. O intercambista volta ao Brasil e opta pelas RI sob a justificativa mequetrefe de querer ajudar as criancinhas da África e salvar as vítimas de minas terrestres no Camboja, pouco se importando com o fato de que no Brasil também há criancinhas que precisam de ajuda.

O curso de Relações Internacionais me se mostrou para mim como um retorno da “era Kazaa” com outras roupagens. Toda aquela alienação, aquele fascínio pelo estrangeiro, por outros países, outras línguas e culturas havia retornado sob um disfarce acadêmico. O curso de Relações Internacionais foi para mim o que a Restauração foi para a Europa pós-napoleônica. Não! Acho que ele se assemelhou mais à revolução de 1830 na França: substituiu uma monarquia por outra de nome e dinastia diferentes, mas que pouco mudou justamente pelo simples fato de continuar sendo uma monarquia.

Na esteira dos acontecimentos, o curso de História foi o responsável por enxotar o Luís Felipe que havia em minha vida. Eu vi na História a oportunidade de abandonar essa mania que sempre tive de me interessar somente por assuntos internacionais. Passara 17 anos de minha vida com a nuca doendo de tanto se inclinar para olhar o que se passava lá fora. Quando me decidi pela História e passei no vestibular, finalmente conquistei a oportunidade de colocar meus pés no chão e olhar ao meu redor.

Mas aí veio a reação. A cavalo, imbatível, veio Luís Bonaparte. Inconformados com essa mudança de rumo, os setores mais conservadores da minha mente começaram a disparar impropérios contra o curso de História. Diziam que ele era viciado, chamaram-no de “curso de uma nota só”. E a partir daí suas exigências e sua ousadia só cresceram. Publicaram um manifesto ridículo intitulado “O homem doente da FAFICH” no qual deixaram claro, entre outras exigências pertinentes, sua aversão ao apego febril que muitos no curso de História da UFMG têm pelo estudo unicamente de questões mineiras. O ápice da reação foi o dia 4 de outubro de 2011: o dia em que parti para meu intercâmbio na Alemanha. A aristocracia ultraconservadora que insistia em não deixar meu cérebro convenceu-me de que era melhor ir para fora – de novo. Me convenceu de que eu devia estudar algo diferente, longe de escravos e mineração, longe de preocupações típicas da “história mesmice”.

Fugir do trinômio quadrado perfeito “escravismo, barroco, minas setecentistas” para estudar um tema como “Primeira Guerra Mundial” é, nos padrões da UFMG, um ato revolucionário. Assim, essa aristocracia internacionalóide, saudosa dos tempos das Relações Internacionais, manobrou seus argumentos de uma forma tal que eles passaram a ser os progressistas! Afinal, não é de praxe estudar apenas história do Brasil na UFMG? Não é revolucionário trazer temas novos relativos à história mundial? “Sendo assim” proclamava a aristocracia saudosa do pré-2004 “inclinem-se para a história do mundo vocês que são revolucionários, pois estudar história do Brasil é ser conservador nos padrões da UFMG!”.

Tinha então uma situação delicada: se eu optasse por dedicar-me à história do Brasil, seria um revolucionário por dentro e um reacionário por fora; se eu me dedicasse a algum tema relativo à história de outros países, seria um reacionário por dentro e um revolucionário por fora. Tentei, por meses e meses a fio, estabelecer uma solução de compromisso entre essas duas tendências que se digladiavam. Algumas duraram muito, outras muito pouco, mas todas fracassaram.

É justamente por essas razões que esse intercâmbio na Alemanha se mostrou como um dos episódios mais decisivos da minha vida. Minhas expectativas antes de vir para cá eram as maiores, bem maiores do que o dobro de todas as expectativas que tinha naquele mês de junho de 2004, antes de embarcar para a Malásia. Servirá esse intercâmbio para reforçar minhas convicções “revolucionárias-por-fora-e-reacionárias-por-dentro”? Ou servirá ele como um catalisador para mais uma revolta “revolucionária-por-dentro-e-reacionária-por-fora”? Não haverá aí caminho para uma conciliação de forças?

O atual estado de coisas sugere que a segunda opção é a mais provável. Temas como Segunda e Primeira Guerra Mundial são bem legais e fascinantes, principalmente para quem estuda História, e eu não sou exceção. Acontece que, estudando temas tão bisonhos como a Primeira Crise do Marrocos sinto-me como alguém chegando atrasado e de mãos vazias a uma festa para a qual não foi convidado. Kaiser, sultão, rei da Inglaterra e ministro francês... Como eu posso me enxergar nessas pessoas? De que maneira elas me dizem respeito? Esses temas me são tão estranhos quanto as músicas curdas, coreanas e mongóis que eu ouvia na minha adolescência.

E mais: que acadêmico europeu sério, em sua sã consciência, daria crédito a um pesquisador brasileiro que se mete a estudar um tema assim, tão alheio à história do Brasil? Quem na Europa quer ouvir o que um brasileiro tem a dizer acerca da Primeira Guerra Mundial (a menos, é claro, que seja algo relacionado à participação do Brasil no conflito – o que particularmente nunca me interessou), quanto mais da Crise do Marrocos? Isso sem contar que ao longo da minha pesquisa fui percebendo que muito, mas muito já foi publicado a respeito desses eventos. Tanto já se falou e se escreveu sobre isso que me vejo incapaz de dar contribuições mais significativas ao assunto. Quero estudar um tema no qual eu possa descobrir coisas novas, falar coisas que ninguém nunca antes falou... E não seguir caminhos já traçados milhares de vezes.

Sim, é assim que vejo a atual situação: a “reação-para-dentro-e-revolução-para-fora” está novamente perdendo espaço para a “reação-para-fora-e-revolução-para-dentro”. Isso me deixa feliz. Caso escolha trabalhar com um tema ligado à história do Brasil, finalmente poderei dizer com orgulho que, enfim, sepultei a “era Kazaa”.

Ao longo de minhas visitas à biblioteca da universidade um tema em especial atraiu minha atenção: a historiografia nazista. Não me refiro à historiografia sobre o período nazista, mas sim à historiografia que o regime nazista engendrou: quem eram e o que pensavam os historiadores que defendiam o regime nacional-socialista, qual era a visão de História que eles tinham e de que forma eles refutavam as duas visões de mundo predominantes até então – a doutrina comunista e o capitalismo. Esse é o tema que mais tem me atraído para uma possível pesquisa. Acho fantástico estudar as tentativas ao longo da história de se achar outro caminho, outra via possível ao comunismo e ao capitalismo, aos EUA e à URSS. No “Mein Kampf” Hitler deixa claro à exaustão o quanto despreza o comunismo e o capitalismo, e como os considera duas forças que, longe de se oporem, se aproximam.

Mas não apenas estudar a historiografia nazista, pois isso seria perpetuar a “era Kazaa”. Acho pertinente fazer um estudo comparado com a historiografia integralista no que tange ao teor anticomunista e anticapitalista das obras. Integralistas como Plínio Salgado e Gustavo Barroso têm obras sobre a história do Brasil sobre as quais nunca tinha ouvido falar e que parecem bem interessantes como objeto de estudo, principalmente se comparadas com a historiografia nazista. O fascínio que o nazismo despertou em muitos brasileiros como sendo uma alternativa viável ao comunismo subversivo e ao capitalismo imperialista é um objeto de análise que me agrada. Encontrei, na biblioteca da universidade de Augsburg, livros do “Reichsinstitut für Geschichte des neuen Deutschlands”, uma instituição criada pelo regime nazista para formular uma visão da História compatível com a nova ideologia. Seu grande mentor, Walter Frank, possui várias obras (já descobri 10 de seus livros no Bundesarchiv em Berlim) com tal intento. Os livros do “Reichsinstitut” foram escritos por diversos intelectuais aliados ao regime e tratam muito mais do antissemitismo do que do anticapitalismo ou anticomunismo. Vez ou outra, porém, eles sempre exploram o fato de Karl Marx ser judeu e a aparente inclinação desse povo ao comércio. Assim, minha hipótese é a de que na raiz do anticomunismo e anticapitalismo da historiografia nazista estava o antissemitismo, ao passo que na historiografia integralista as duas primeiras ideias eram mais fortes do que a última.

Creio, portanto, que o historiador deve se enxergar em seu objeto. Temas como o imperialismo alemão não permitem que eu me enxergue neles (e só fui perceber isso após já ter dado início às minhas pesquisas). O grande desafio que me aguarda agora, portanto, é de uma natureza especial: como fuçar no passado de um país justamente na parte que ele mais quer esquecer. Recentemente encomendei, em um sebo virtual, um livro de Walter Frank; deve chegar essa semana.

Claro, é uma oportunidade única estudar História e vir para a Europa fazer intercâmbio, ter aulas sobre nazismo, imperialismo germânico e Primeira Guerra Mundial. Não nego de forma alguma que tudo isso tem contribuído muito para minha formação. Mas olho com ceticismo para esse continente. Os jornais daqui estampam com cada vez mais frequência a crise do euro, o drama da Grécia, os dilemas de Portugal... Todo mundo aqui se amarrou um ao outro de tal forma que se um cair no abismo leva todos os outros junto. Não me vejo vindo para cá novamente nem mesmo em um futuro próximo. O fardo do homem branco se tornou tão pesado que até mesmo os homens de cor que habitam os trópicos estão ensaiando voos mais altos do que ele. As previsões para 2020 valorizam a China, a Índia, o Brasil, e não a França, a Inglaterra ou a Alemanha. Um dia, quando eu for bem idoso, vou contar para meus alunos que em 2011 viajei para a Europa para estudar um semestre e eles vão me olhar com assombro perguntando “2011? Justo na época da crise? Justo na época em que o Brasil começava a ultrapassar as nações europeias nos indicadores econômicos? Seria melhor ter ficado aqui mesmo!”. E eu não saberei responder a essa pergunta senão com um breve sorriso...


Aflições acadêmicas – e econômicas – à parte, aqui tudo vai bem. Fiz minha primeira prova no começo de dezembro, da matéria sobre imperialismo e colonialismo alemão. Recebi a nota esses dias. Tirei 2,7 em uma escala que vai de 1 até 6 (ou 7, não me lembro), sendo 1 a melhor nota possível. Fiquei impressionado comigo mesmo, mas acho que o professor me deu uma mãozinha salvadora também! Obviamente ele não corrigiu erros de ortografia (como ele mesmo já havia me dito).

Na minha última semana de aula resolvi faltar à aula de alemão para viajar. Fui para Dortmund, cidade no noroeste da Alemanha, sozinho. E não me venha de novo com essa história de “Marcelo, você não tem amigos?!” porque viagens para mim são sagradas! Jamais cancelaria uma viagem a um lugar que eu realmente queira conhecer por falta de companhia. Caso você esteja prestes a viajar para o exterior, carregue esse ensinamento: nunca fique dependendo de terceiros para viajar quando estiver em outro país. Um final de semana um não pode, no feriado o outro não pode, nas férias o outro já tem plano... Aí você vai adiando sua viagem até o momento em que você olha no calendário e descobre que na semana que vem é seu voo de volta – e você não viajou nada!

Não conheci quase nada de Dortmund, fiquei apenas hospedado por lá. Visitei cidades ao redor: Emmerich (uma cidadezinha à beira do rio Reno perto da fronteira com a Holanda), Wuppertal (onde me encontrei com um amigo) e Utrecht, na Holanda. De fato, a última foi a que mais me fascinou. Devo confessar que minha viagem para Utrecht foi uma das coisas mais mal planejadas que já fiz na vida. Simplesmente fui, sem saber de qualquer ponto turístico, atração ou coisas para se fazer por lá. Só o que sabia era que lá havia sido assinado um tratado no século XVIII que tinha, entre suas cláusulas, acertos de fronteiras entre a América Portuguesa e a América Espanhola (acho que foi isso que me motivou a visita-la).

Até agora me desconcerto ao falar da Holanda. Não sei bem o que dizer, como explicar... Precisaria passar um ano lá para poder formular opiniões inteiras sobre aquele país. De momento digo apenas que me surpreendi com a variedade cultural que se nota nas ruas e em todos os lugares (pelo menos em Utrecht): negros, chineses, judeus, muçulmanos, indianos – todos eles falando holandês e se sentindo em casa. A cada rosto não-europeu que eu via me lembrava do passado colonial holandês, suas conquistas, suas posses nos mais remotos cantos da terra, desde a Indonésia até o Suriname – e tentava descobrir de qual ex-colônia cada rosto vinha (típico exercício de um estudante de História que está sozinho em uma terra estranha sem ter o que fazer). Logo que saí da estação fui abordado por um jovem negro mais ou menos da minha idade. Foi aí que me dei conta de uma coisa para a qual eu nunca tinha atentado: eu não falo sequer uma palavra em holandês. Nem um “bom dia”, um “obrigado”, um “com licença”, nada... Fiquei meio bobo e depois disse a ele, em inglês, que eu não falava holandês. Ele então me perguntou em inglês se eu era de lá e eu disse que não, que era estrangeiro fazendo intercâmbio na Alemanha. Ele então sorriu e me disse “ok, então eu não vou te perturbar!”. Quando ele falou holandês a única palavra que pude entender foi “Greenpeace”. Acredito então que era algum ativista tentando recrutar membros para a causa. Nesse momento me lembrei das tumultuadas eleições do DCE na UFMG e dos corredores lotados com pessoas distribuindo panfletos de suas chapas. Parece que é minha sina!

A cidade de Utrecht parece duas em uma só: de um lado Ouro Preto, de outro Belo Horizonte. A parte histórica da cidade tem canais, ruas estreitas, casinhas pequenas e várias pessoas andando de bicicleta. A parte mais moderna tem prédios, lojas, trânsito intenso e mais pessoas andando de bicicleta – sem falar, é claro, naquela famosa rua com umas vitrines de luzes vermelhas que todo mundo já sabe o que é só de olhar de longe. Fiquei mais tempo no centro histórico, andei sem rumo durante muito tempo e passei até pelo arquivo histórico da cidade. Me arrependo de não ter entrado, pelo menos quem sabe para procurar o Tratado de Utrecht em sua versão original. À noite voltei para a estação e após uma longa viagem cheguei a Dortmund.

Meu tutor gentilmente convidou-me para passar o Natal na casa dele em Meitingen, uma cidadezinha perto de Augsburg. À tarde fomos à casa de sua avó, comemos biscoitos e tomamos chá. Conversei bastante com o primo e com a prima dela, ambos muito simpáticos. Presenteei a vó dele com um presépio de louça que eu havia comprado no dia anterior. Ela ficou muito feliz, acendeu as suas duas velas e logo o colocou para decorar a casa. O problema é que as velas esquentaram demais e de repente a estrela que ficava no alto do presépio simplesmente quebrou! Ela logo apagou a vela e disse que mais tarde iria colar. Essa situação deveria ter me deixado sem jeito, mas surpreendentemente não deixou. Mais tarde fomos à missa e depois fui para a casa do meu tutor. Lá comemoramos só ele, eu e a mãe dele. Eles não são muito animados com Natal, por isso fizeram uma ceia simples: batata cozida e linguiças fritas. Enquanto esperávamos a refeição, conversei com ele (o nome dele é David) sobre seus planos após se formar. Ele disse que quer ser professor de Inglês e História em alguma escola (atualmente está estudando para concurso em escolas do Estado). Perguntei sobre a possibilidade de seguir a carreira acadêmica e ele me disse que não, pois várias coisas na universidade eram, para ele, sem sentido. Pedi um exemplo e ele me falou que os textos de Pedagogia eram estúpidos, pois tratavam de temas óbvios como por exemplo “a sala de aula é um lugar heterogêneo, tem homens e mulheres, cada um com sua personalidade”... Enfim, coisas que todo mundo sabe e que, caso não saiba, irá aprender em apenas um dia de experiência. Disse ainda que em um dia do seu estágio com crianças de uma escola ele aprende muito mais que em um semestre todo na universidade. Percebi, com isso, semelhanças valiosas entre as queixas dele e a de muitos de meus colegas na UFMG. Após comermos ficamos os três sem ter o que fazer. Jogamos então um jogo de tabuleiro e depois o David me mostrou fotos de seu intercâmbio em Birmingham, na Inglaterra. Voltei pra casa antes das 22h.

Não reclamei: apesar de não ter tido uma ceia farta, com trocas de presentes e perto dos familiares, consegui o que mais queria, que era não passar o Natal sozinho. Nessa terça pela manhã viajo para Viena, na Áustria, onde passarei o Ano Novo, depois para Bratislava (na Eslováquia) e depois para Budapeste (na Hungria). Desejo a todos um feliz ano novo e agradeço/admiro a paciência de quem conseguiu ler até aqui! Peço desculpas pelo teor excessivamente subjetivo na primeira metade do texto, mas são reflexões que tenho feito com muita frequência nos últimos dias. Tratei de temas bem delicados os quais não devem ter ficado muito claros. Aceito, porém, críticas e sugestões a respeito.

sábado, 26 de novembro de 2011

Confissões de Augsburg - o retorno II

Segunda-feira era o dia D para mim: iria fazer minha primeira apresentação na universidade! Nada de muito grave: era para a matéria de "Textos-chave para o período 1830-1930". Tinha que fazer uma breve apresentação de apenas 5 minutos sobre a vida de Karl Marx. Em geral os professores daqui pedem para a gente entregar um roteiro resumindo tudo o que vamos falar na apresentação oral. Assim, procurei na biblioteca algumas biografias de Karl Marx e comecei a fazer algumas anotações. Peguei as duas mais curtas que achei (uma delas do Isaiah Berlin), pois para uma apresentação de apenas 5 minutos não podia ficar me perdendo em detalhes. Li apenas o começo de cada uma delas e complementei as informações com dois textos que achei no site marxists.org. Montei um pequeno roteiro e enviei ao meu tutor para que ele pudesse corrigir os erros gramaticais. Na hora da apresentação deu tudo certo e aquilo que eu mais temia não aconteceu: ninguém me fez perguntas. Acho que a turma se compadeceu de mim... Depois de minha apresentação discutimos o Manifesto e ao fim da aula o professor disse que eu tinha ido muito bem e aquilo me deixou aliviado.

E como é a universidade daqui? Só posso dizer baseado no prédio que eu frequento, que é a Faculdade de Filologia e História. Pra começar, é um lugar bem diferente da FAFICH em certos aspectos, mas bem parecido em outros. É diferente porque lá dentro ninguém fuma - é proibido, uma vez que o lugar é todo fechado. Além disso, têm vários corredores cobertos por carpetes onde muitas pessoas costumam se sentar para estudar ou apenas conversar. Têm várias mesas e cadeiras espalhadas pela faculdade que o pessoal usa para estudar. É algo muito prático quando você tem um tempo livre entre uma aula e outra e quer ler um texto mas não quer perder tempo indo até a biblioteca. Tem uma salinha lá que funciona como CA ou DA, mas nunca entrei porque é um lugar extremamente estranho e que costuma ficar de portas fechadas, ou lotado com um monte de gente na porta. No geral, a faculdade é um lugar tranquilo: festas ficam só do lado de fora, assim como o cigarro. Alemão é sim um povo festeiro, mas eles sabem muito bem separar o ambiente de festa do ambiente de estudos.

A faculdade se parece com a FAFICH no que tange aos adesivinhos pregados por toda parte (ainda mais do que na FAFICH) e aos escritos em banheiros. Por todo lado na faculdade, na universidade e mesmo no resto da cidade você vê adesivos parecidos com aqueles que têm na Savassi. Os daqui, porém, quase sempre são da torcida organizada do Augsburg F.C., o time local que pela primeira vez na história disputa a primeira divisão da Bundesliga. Pra todo lado tem um adesivo desses. Na faculdade, além desses adesivos do Augsburg F.C., têm outros denunciando a energia nuclear, criticando o alistamento militar, protestando contra o abate de animais para consumo humano e contra as taxas estudantis (a universidade é pública mas os estudantes têm que pagar uma taxa de cerca de 540 euros para ajudar nos gastos; não estou bem certo, mas acho que é uma contribuição semestral). Já em relação aos escritos em banheiros, as temáticas pendem mais para o lado político (diferente da FAFICH, onde predominam mensagens sexuais). A frase mais comum, escrita em quase todos os banheiros em letras garrafais é "revoltem-se!". Outras tantas denunciam o radicalismo islâmico e têm também algumas com conteúdo neo-nazista.

Já as aulas são muito bem conduzidas. Os professores são muito pontuais, os alunos muito participativos e, pelo menos nas matérias que estou fazendo, os professores sempre fazem questão de estabelecer um diálogo com os alunos. Eles sempre lançam perguntas e provocações a fim de atiçar as discussões entre a turma. Todos eles também sempre se mostram inteiramente à disposição dos alunos e fazem sempre questão de perguntar ao longo da aula se estão todos entendendo e se alguém tem alguma dúvida. Os textos que serão usados ao longo do semestre são entregues na primeira semana de aula, todos já xerocados (o preço deles está incluído na taxa de 540 euros).

No sábado seguinte à apresentação sobre Karl Marx tive novamente aula da matéria de imperialismo e colonialismo. Essa aula era a que eu mais esperava: sobre a Primeira Crise do Marrocos! O professor já sabia que eu me interessava pelo tema e não hesitou em pegar no meu pé. Fez algumas perguntas e pediu minha opinião sobre certos pontos, ao que eu me saí relativamente bem (embora falando um alemão sofrível). Falo tanto assim dessa disciplina porque julgo que ela tem sido a mais importante para mim até aqui. Graças a ela pude entrar em contato com a bibliografia que precisarei na minha monografia, além de ter aprendido mais sobre a história do imperialismo alemão, algo que até então eu conhecia muito pouco. É isso que me dá ânimo para acordar todo sábado de manhã, sair na rua deserta toda coberta por neblina e quase congelar esperando o bonde. Sem dúvida alguma, a optativa que fiz sobre história da África nos séculos XIX e XX na UFMG foi de fundamental importância para que eu aproveitasse melhor essa matéria: Herero, Maji-Maji, Zambeze... Em uma aula ministrada em alemão, todos esses nomes iriam confundir bastante minha cabeça caso eu já não os tivesse estudado antes.

Na semana seguinte viria minha verdadeira prova de fogo: a apresentação de um seminário na disciplina de Primeira Guerra Mundial. Meu grupo era formado por um espanhol que falava menos alemão do que eu e por um alemão. Iríamos falar sobre as experiências pessoais dos soldados durante o conflito. Bolamos um trabalho muito bom com um Power Point e um roteiro, e tinha tudo para dar certo. Mas eis que o único alemão do grupo, em quem tínhamos depositado nossa confiança, nos presenteou com a triste notícia de que na semana da apresentação ele faria uma cirurgia na boca e não poderia falar no dia. Ou seja: a apresentação ficaria nas mãos do espanhol e nas minhas. Até aí ainda daria para aturar, se não fosse um outro detalhe mortal: o seminário não se resumia a uma apresentação; o grupo também tinha que apresentar um documento para a sala, instigar e moderar uma discussão em torno dele. Isso era, para mim, virtualmente impossível: por mais que eu fale relativamente bem, ainda acho extremamente difícil entender o que os outros dizem, e o espanhol (Hugo é o nome dele) tinha ainda mais dificuldades com o idioma do que eu. De qualquer modo, fizemos o possível: sentei com o Hugo um dia antes da apresentação, expliquei para ele o conteúdo dos documentos e sugeri algumas perguntas que poderíamos fazer para a o resto da turma a fim de promover um debate.

Um dos documentos que escolhemos ficou na minha cabeça: falava de um oficial inglês que, no ápice da guerra, ficou louco. Ele começou a gemer, a rastejar no chão, a cavar desesperadamente um buraco na lama como se tentasse fugir - tudo isso observado pelos soldados os quais ele liderava. O outro oficial que viu aquilo disse que ele parecia ter regredido a uma forma pré-humana de vida, pois não se comunicava, não andava e não dava ouvidos a ninguém; apenas gritava e rastejava. Achei aquilo assustador e, ao mesmo tempo, bastante propício para suscitar uma discussão. Enxerguei aquilo como algo simbólico de uma nova realidade de guerra. Toda a pompa, a glória e majestade dos oficiais do século XIX havia se perdido diante de uma nova realidade de guerra: a realidade da metralhadora, dos bombardeios, da guerra total, capaz de deixar qualquer homem pacato do século XIX literalmente doido.

Mas enfim, aquilo que tinha tudo para sair errado acabou não saindo: no dia da apresentação o integrante alemão de nosso grupo apareceu muito bem e pôde apresentar normalmente, além de conduzir a discussão. Preparei um texto para me guiar na hora da apresentação e até que foi tranquilo. Ao fim da aula o professor (o mesmo da matéria em que eu havia apresentado sobre Karl Marx) disse que falei com muita segurança e desenvoltura. Novamente aliviado!

Na quinta à noite o departamento de estrangeiros da UNI-Augsburg organizou um pequeno passeio pela cidade ao qual aderi de última hora. A guia do passeio nos levou para alguns pontos históricos da cidade sobre os quais haviam lendas e nos contou dessas lendas. A que mais gostei foi a das sete crianças. Existe uma rua aqui em Augsburg que se chama "(alguma coisa) de sete crianças". Embaixo da placa com o nome da rua há seis imagens de crianças talhadas em pedra. Diz a lenda que, nos tempos do Império Romano, um casal que vivia na cidade tinha sete filhos e acabou perdendo um deles (ele simplesmente sumiu e ninguém mais o viu). A mãe ficou tão triste que se esqueceu de tudo: do marido, dos outros filhos, dos afazeres domésticos... Ela só pensava no filho desaparecido. Foi quando o marido dela fez essa escultura em pedra com seis crianças e deu a ela de presente. A mulher viu aquilo e perguntou por que ele havia esculpido só seis crianças se eles tinham na verdade sete filhos. Ao que o marido respondeu: "não preciso esculpir nosso sétimo filho pois ele está sempre com você em seus pensamentos; essa escultura é para você se lembrar dos outros seis filhos que você ainda tem mas dos quais se esqueceu".

Por essas e outras digo que não poderia ter escolhido cidade melhor do que Augsburg para morar. Não preciso viajar muito porque aqui sempre têm lugares interessantes para se ver. Só me resta coragem para quebrar minha rotina "casa-faculdade". Assim como a mulher da lenda, preciso parar de ficar me preocupando apenas com um aspecto do meu intercâmbio (a finalidade acadêmica) e me lembrar dos demais aspectos (viajar, passear, conhecer...). Preciso me lembrar de meus outros seis filhos. Objetivos são bons mas não são tudo.

Confissões de Augsburg - o retorno I

Sempre fico impressionado com a capacidade que tenho de tornar minha vida uma rotina. Sou cristão, nunca escondi isso. Mas, como todo cristão em pleno século XXI, tenho uma série de dúvidas frente a algumas coisas em que acredito. Não consigo imaginar como seria viver em lugar por toda a eternidade achando tudo lindo sempre. Dada minha experiência de vida até aqui, creio que se eu fosse para o céu iria passar um mês impressionado, e depois desses trinta dias iria perguntar a Deus: "onde fica o restaurante e a biblioteca?".

Augsburg é uma cidade fantástica: aqui foram lidas em público pela primeira vez as ideias que Lutero tinha para reformar a igreja; aqui foi firmada a paz de 1555 que acabou com as guerras religiosas na Europa e definiu que cada súdito deveria ter a fé de seu rei; aqui nasceram o pai de Mozart e o filósofo Bertolt Brecht. E ainda assim, o que eu mais tenho visto nessas últimas semanas em que não escrevo é o bonde e suas estações (já estou decorando os nomes de todas entre minha casa e a universidade), a bandeja branca do restaurante universitário, meu netbook e minha cama.

Claro que eu não vim aqui a turismo: tenho responsabilidades. Mas sempre acho que eu poderia estar aproveitando mais do que estou. Não é uma reclamação, apenas uma auto-crítica. Acho muito melhor fazer as coisas quando se tem um objetivo. Eu não vou a boates, bares e festas não porque não goste das pessoas de lá, mas apenas porque lá eu não tenho objetivos (não danço, não bebo, não estou procurando uma parceira nem novas amizades). Ficar 3, 4 ou 5 horas em um lugar sem ter metas, sem ter ambições, sabendo que esse tempo poderia estar sendo gasto de forma mais produtiva é quase uma tortura pra mim. Sendo assim, fico feliz de ter vindo para a Alemanha com um objetivo, e de poder ocupar meu tempo com ele. Meu intercâmbio na Malásia não foi assim. Lá foram 12 meses pairando, sem saber se eu estava regredindo, progredindo ou parado. Só depois que voltei ao Brasil fui perceber que ele foi uma regressão extrema, total, mas não permanente: como uma mola que se comprime até a sua base pra depois dar um salto maior que seu tamanho natural, na Malásia regredi o máximo que eu poderia regredir, até o alerta vermelho se acencer, eu me tocar e então progredir nos anos seguintes (o que eu quero dizer com "progredir" já é uma outra história completamente diferente e longa demais para contar aqui). E tudo isso por um simples motivo: fui para a Malásia sem objetivos.

Mas não, minha vida não tem sido um marasmo. Como disse em meu último post, planejei ir para o campo de concentração de Dachau na terça e, de fato, eu fui. De última hora fiquei sabendo que outros estudantes estrangeiros também iriam e pedi a uma amiga minha que era amiga deles avisarem que eu também iria. Conhecia-os assim só de vista e foi fácil achá-los na estação. Dachau fica bem perto de Augsburg, mas a viagem de trem é mais demorada pois passamos primeiro pela estação central de Munique.

O campo de concentração é um lugar de outro mundo: tirando um grupo de turistas jovens que não paravam de se atazanar, é um lugar bem tranquilo e melancólico. Quando fui o tempo estava um pouco nublado e só contribuiu para reforçar essa sensação. Lá vi as câmaras de gás, os fornos onde os corpos eram cremados, as camas dos prisioneiros e os monumentos em homenagem a todos que ali padeceram. Tem também um museu cheio de fotos, vídeos, documentos e recursos interativos sobre a história do campo. Meu único problema com museus aqui na Alemanha se deve aos textos que li na disciplina de Arquivos e Museus semestre passado. Por mais que a proposta da matéria seja válida, achei aqueles textos um verdadeiro porre e depois de lê-los minhas visitas a museus ficaram completamente modificadas - para pior. Resumidamente, poderia dizer que aprendi três coisas com esses textos: 1. Todos os museus do mundo estão errados. 2. A partir do momento em que você entra em um museu, tudo aquilo que você fizer ou deixar de fazer está errado. 3. Não há nada que você possa fazer para mudar essa realidade.

Cada peça ou recurso que vejo em um museu me remete a um parágrafo daqueles textos malditos. A cada passo que dou sinto que um dos autores daqueles textos está me vigiando para saber se estou vivenciando a exposição de forma correta. Segundo aqueles autores, tudo está errado, tudo é ruim e nenhuma exposição no mundo consegue cumprir o papel que um museu deveria cumprir. Que não me levem a mal os leitores que gostaram dessa matéria, mas em se tratando de museus, a única opinião que consigo ter é a de que "cada um monta como acha melhor e cada um vivencia como acha mais conveniente". Confesso que sou ignorante demais para teorizar e entender quem teoriza sobre isso.

Mas no mais, Dachau foi uma experiência e tanto. Duas coisas que me chamaram a atenção foram os monumentos religiosos - existe um para homenagear os judeus, um para os católicos e um para os protestantes que morreram lá - e a livraria que fica na entrada do campo. Logo na entrada da livraria fiquei transtornado: nunca vi uma quantidade tão grande de livros, revistas e DVDs sobre nazismo em um só lugar. Tem livro sobre tudo relacionado ao tema: a política externa nazista, biografias de figuras importantes do Terceiro Reich, a burocracia nazista, as origens do nazismo, os campos de concentração, a história dos alemães que lutaram contra o nazismo (algo do que os alemães de hoje se orgulham muito), entre outros. Mas, mais no fundo da livraria, há uma outra seção: a seção de objetos judaicos! Lá têm livros sobre história do judaísmo, livros sobre as tradições judaicas, menorás (castiçais de sete braços com a estrela de Davi), livros infantis que ensinam a rezar em hebraico... Enfim, tudo que você imaginar sobre o tema "judaísmo". Achei bem interessante essa divisão e, incrivelmente, consegui me conter a ponto de não levar nenhum livro ou DVD!

Nos dias que se seguiram continuei dando prosseguimento à minha pesquisa. Mandei um e-mail ao meu professor da matéria de "Imperialismo e colonialismo na Alemanha Imperial" pedindo sugestões sobre em quais jornais da época eu poderia pesquisar sobre a visita do Kaiser Guilherme II a Tangier (disse a ele que queria um jornal alinhado com o Kaiser). Ele não só me passou os nomes dos principais jornais da época e a posição política de cada um deles, como também me deu a ótima notícia de que os documentos da política externa alemã do período 1871-1914 foram publicados em livros e estavam disponíveis na biblioteca da universidade. Achei-os com facilidade e atualmente estou em uma dúvida cruel sobre se tiro uma cópia do período que me interessa, se escaneio ou se procuro os volumes pra comprar. Preciso achar um jeito de levá-los comigo para o Brasil! E junto com esses volumes encontrei vários outros volumes de documentos da política externa do Império Austro-Húngaro, da França e da Inglaterra publicados.

A neve pela qual tanto espero não caiu até hoje. Acho que só em dezembro. Todos os dias de manhã acordo na esperança de vê-la na janela do meu quarto mas ela nunca está lá. Mas as temperaturas de madrugada recentemente têm caído para -3 e -4. E por falar em janela, há algumas semanas descobri que tem um ninho de joaninhas no meu quarto: elas ficam todas amontoadas no canto direito da janela, ao que parece se protegendo do frio. Na cortina também tem um monte e sempre que estou estudando na mesa aparece uma em cima do caderno, mas elas nunca me incomodaram. Achei até simpático; bem melhor do que aquelas muriçocas que tiram o sono da gente.

No sábado dia 12 aproveitei que não tive aula e fui, junto com alguns outros estudantes estrangeiros, para Salzburg, na Áustria. Aqui eles costumam postar no grupo do Facebook uma mensagem falando "estou indo para tal lugar tal dia, quem quer vir?", porque quanto mais pessoas mais fácil é de viajar. Com um Bayern-Ticket você viaja para qualquer lugar da Bavária no período de um dia. Cada bilhete pode servir para até cinco pessoas e então fica mais fácil dividir os custos. E foi numa dessas que acabei indo para Salzburg que, por mais que não seja oficialmente na Bavária, fica bem próximo à fronteira e por isso o ticket vale para lá também.

Augsburg é a terra natal do pai de Mozart e Salzburg é a terra natal do próprio Mozart! Logo, tudo lá gira em torno dele: souvenirs, cartões postais, chaveiros, chocolates... Tudo que você compra vem o Mozart junto! Isso sem falar nas milhares de camisas, adesivos e canecas escritos "No cangoroos in Austria!", destinados a todos aqueles que confundem o país europeu com a ilha da Oceania. Ficamos por lá apenas um dia e já à noite voltamos para Augsburg.

sábado, 29 de outubro de 2011

Confissões de Augsburg - começou!

Isso mesmo: começou. Após passar mais de três meses à deriva, finalmente voltei a frequentar uma aula e me preocupar com datas, horários e prazos. Não estou reclamando: é sempre bom ter um tempo à toa, mas também é muito boa a sensação de que você está nos trilhos novamente. Eu particularmente não acho que foram três meses perdidos. Foram muito importantes para resolver os problemas relativos ao meu intercâmbio e preparar minha ida. Além disso, foram três meses relativamente produtivos: estudei bastante alemão e li pelo menos sete livros.

Tive minha primeira aula no dia 22, um sábado de manhã. Não me pergunte o porquê desse horário. Começou às 9h e foi até 12h. Era uma manhã fria com muita neblina, como têm sido todas as manhãs aqui. Pude usar pela primeira vez o casaco de camada dupla que tinha comprado na sexta de manhã. Chegando à universidade, tudo vazio, como uma cidade fantasma. Não tive dificuldade para achar minha sala, pois já tinha dado uma volta na faculdade a fim de aprender onde ficava cada sala na qual eu teria aula. Antes do início da aula os dois professores se apresentaram e pediram para cada um se apresentar. Depois explicaram o programa e combinaram os horários. A matéria é sobre colonialismo e imperialismo na Alemanha Guilhermina e pretende nos aproximar dos documentos necessários no estudo desse período. Teremos uma visita guiada a um arquivo aqui na cidade de Augsburg mês que vem. A primeira aula, portanto, foi mais um exercício de paleografia: eles passaram alguns textos manuscritos para que cada um pudesse ler em voz alta o seu conteúdo, enquanto o professor corrigia. Cada um leu duas linhas. Fiquei meio tenso, com medo de dar vexame, mas me saí relativamente bem. Depois o professor passou uma série de questões no quadro que seriam abordadas, do tipo: “A Alemanha precisava de colônias? Qual foi o impacto do imperialismo alemão nos povos conquistados? Qual o significado das colônias na história alemã?”. Ele respondeu resumidamente cada uma delas, o que somente com muita dificuldade pude acompanhar. Não consegui anotar quase nada. Depois ele desenhou um mapa da África no quadro. Então perguntou quem sabia onde ficava cada colônia alemã e pediu para que quem soubesse traçasse no mapa. Pedi a palavra e tracei duas: Togo e Camarões. Foi o ápice da minha participação nessa matéria, pois não acho que poderei dar mais contribuições relevantes nas discussões que se seguirem. As discussões e debates que se sucederam naquele dia eu mal pude acompanhar. No fim da aula o professor passou outro documento manuscrito para que pudéssemos transcrever e enviar por e-mail até quarta-feira. Os alunos alemães têm um ritual interessante ao fim de cada aula: batem na mesa com a mão (como se estivessem batendo na porta), como uma forma de agradecimento ao professor pela aula (quase como se fosse um bater de palmas).

Saí da universidade e fui almoçar ao lado da prefeitura em um restaurante de comida bávara. Ao sair, uma surpresa: centenas de turcos ocupavam a praça da prefeitura portando bandeiras da Turquia, segurando placas e cantando hinos. Mais tarde descobri que eles protestavam contra um atentado do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) contra soldados turcos. Assistindo a isso tudo estava a estátua de Augusto, imperador romano que fundou Augsburg em 15 a.C. O que diria ele se estivesse vivo e visse aquela leva de “bárbaros” se manifestando em sua cidade, em plena praça pública? Dia após dia, uma das coisas que mais chamam minha atenção aqui na Alemanha é a força e a expressão da comunidade turca. Ontem, por exemplo, a Turquia comemorou 88 anos de independência e houve várias festas.

Na tarde de sábado comecei a transcrever o manuscrito que o professor passou. O problema é que ele estava deploravelmente esgarranchado – muito mais do que aqueles que lemos em sala. Dediquei quase toda minha tarde de sábado e domingo à tentativa de transcrevê-lo e felizmente tive sucesso. Em todo o documento, apenas uma palavra permaneceu desconhecida pra mim.

Na segunda-feira à tarde tive minha primeira aula de Primeira Guerra Mundial. Nada muito diferente da outra aula: ele passou o programa, falou como seriam as aulas, mas não começou a dar a matéria ainda – fez apenas a introdução. Mais tarde, naquele mesmo dia, tive outra aula com o mesmo professor: Textos-chave para se entender o período 1830-1930. Iremos ler autores clássicos desse período: Tocqueville, Marx, Stuart Mill, Darwin, Freud, Nietzsche e Weber (tudo em alemão! Exceto o Stuart Mill que é em inglês). O professor foi bonzinho e emprestou para cada aluno o xerox de todos os textos que iremos utilizar.

Depois dessa aula fui até a biblioteca. Quase tive um ataque de euforia! Seria redundante dizer que a parte de História da biblioteca é imensa, com várias estantes e vários livros sobre vários temas. Quase me perdi no meio daquilo tudo. Minha euforia, no entanto, não foi por causa disso. Naquela tarde de segunda-feira, ao me sentar para estudar, me senti em casa – nunca havia me sentido tão em casa desde que cheguei nesse país. Também naquela tarde descobri porque eu gosto tanto de estar em uma biblioteca. Não é porque tem livros, nem porque gosto de estudar. É porque a biblioteca é um dos poucos lugares no mundo onde você não precisa ser simpático. Na biblioteca você não precisa ter assunto, não precisa se entrosar com ninguém, não precisa puxar conversa; melhor ainda: você não pode puxar conversa. Lá ninguém te olha torto quando você se senta em um canto sem falar com ninguém. Muito pelo contrário: justamente quando você começa a puxar conversa é que te olham torto. Só o que podemos fazer em uma biblioteca é aquilo que sei fazer de melhor: sentar e ficar calado. Enquanto você estiver disposto a ficar quieto, você será sempre bem-vindo em uma biblioteca, e isso – acredito eu – em qualquer lugar do mundo. A única coisa que me tirou do sério nessa biblioteca foram os armários para guardar mochilas. Tem que depositar duas moedas de dois euros pra poder fechá-lo, mas depois que você abre as moedas caem de volta. Desde que descobri isso carrego sempre duas moedas de dois euros comigo para evitar desgosto.

Naquela tarde comecei a ler um livro que o professor da matéria de sábado recomendou: “História colonial alemã”. O primeiro capítulo foi até tranquilo, mas à medida que avanço vou encontrando mais dificuldades. Preciso sempre ter um dicionário ao lado, mas o que me consola é perceber que estou usando-o cada vez menos.

Na terça tive minha primeira aula de alemão. Na minha sala tem gente de todos os lugares: Itália, Irlanda, República Tcheca, Japão, China, Turquia, País de Gales, Rússia... Esses são os que me lembro. À noite saí com algumas pessoas aqui da moradia e descobri, aqui nas redondezas de onde moro, três cinemas de filmes alternativos! Um deles se chama “Mephisto” e é também uma livraria – com uma loja em frente à universidade. O problema é que alemães não gostam muito de legenda, por isso todos os filmes são dublados – inclusive do Almodóvar. Enfim, mais uma oportunidade de treinar a o idioma.

Quarta às 8:15 tive mais uma aula. Foi introdução à matéria de Primeira Guerra: as causas do conflito. Foi bem confusa a aula, entendi pouca coisa, mas acho que essa matéria não vai ter prova. Terei, porém, um trabalho. A distribuição do tema foi na quarta também e eu escolhi falar sobre a visão que os soldados tinham da guerra na qual participavam. No meu grupo tem mais dois: um alemão e um espanhol – que, assim como eu, está meio perdido por não falar bem alemão. Pelo menos alguém que me entende.

No final da tarde de quarta resolvi tomar uma providência em relação à ausência de cadeira no meu quarto: liguei para o zelador substituto (o oficial está de férias até dia 8 de novembro). Ele disse que não pode me ajudar, pois só está disponível para emergências, e que devo esperar até dia 8 para falar com o zelador oficial. "Até lá" ele disse "você vai ter que se sentar na cama...” Quase morri de desgosto. Minhas costas doem demais de ficar na cama usando o computador. O local onde se liga o cabo da internet é bem longe da cama por isso não posso me encostar na parede.

Quinta-feira li mais um capítulo do livro sobre expansão colonial alemã e comecei a ler Tocqueville - introdução de "O antigo regime e a revolução" e introdução de "Democracia na América". Tem sido bem difícil... Mas acho que é um esforço necessário para quem quer aprender uma língua. Sexta-feira tive que ir ao Aldi Süd (o mercado aqui perto) comprar material de limpeza, pois meu quarto está muito empoeirado e eu tenho tossido com frequência essa semana, além de estar ficando um pouco rouco. De tarde tive a única aula que ainda me restava: temas de pesquisas sobre o Nacional-Socialismo. Os professores pediram pra gente se apresentar e apresentaram o programa da matéria, bem como as leituras. A prova será apenas um exame oral. Nessa aula percebi uma coisa que já vinha notando na Alemanha: o quanto os cachorros são bem-vindos. O cachorro entra no ônibus, no bonde, na faculdade... Qualquer um com um cachorro de estimação pode entrar com ele nesses lugares, desde que o cachorro se comporte. Uma das meninas assistiu à aula com o cachorro dela ao lado: ele era grande, magrelo, tinha os olhos verdes mas não sei de que raça era; ficava quietinho do lado dela e só de vez em quando ele resolvia cheirar as mesas ou as cadeiras. Os professores nem se importaram. Na hora em que cada aluno se apresentou eles pediram à dona do cachorro que o apresentasse também.

A aula inicial foi bem interessante: a turma se dividiu em grupos de quatro para responder a um quiz sobre o período nazista. Eram algumas folhas com atividades testando nosso conhecimento. Primeiro várias fotos de algumas figuras importantes do Terceiro Reich. Tínhamos que identificar o nome de cada um e sua função. Não pude ajudar muito meu grupo nesse sentido. Reconheci apenas o Hitler (claro!), Heinrich Himmler e Joseph Goebbels (aquela clássica foto dele discursando com um uniforme militar). Em seguida tinha uma lista de abreviações para identificarmos o significado de cada uma (só sabia NSDAP, HJ, SS e SA). Depois havia fotos de eventos-chave da Segunda Guerra para identificarmos a data e o acontecimento. Por fim, um mapa da Alemanha nazista para que identificássemos o nome de cada região anexada.

Na sexta-feira à noite criei vergonha na cara e limpei meu quarto com os produtos que havia comprado de manhã. Um horror! Tufos e mais tufos de poeira por todos os lados, principalmente embaixo do aquecedor. Como faz muito frio, abro muito pouco a janela, o que favorece o acúmulo de poeira e cria um ambiente propício para alergias. No domingo pretendo deixar as janelas abertas de tarde por mais tempo, a fim de deixar o ar circular um pouco.

Sábado de manhã veio aquilo pelo que esperei a semana toda: a excursão ao Partnachklamm. É um parque natural que fica na região de Garmisch-Partenkirchen, bem ao sul da Bavária, perto da fronteira austríaca. Saí de casa bem cedo e a neblina cobria quase tudo. Ao lado da porta da moradia, o vidro que protegia a lista dos números dos apartamentos e seus respectivos moradores estava quebrado, e a lista não estava mais lá. Cada dia me preocupa mais a segurança aqui na moradia. Não bastasse a televisão roubada, agora esse vidro quebrado. Na sexta à noite houve uma festa de Halloween no 19º andar, talvez tenha alguma coisa a ver com isso – ou não, não faço ideia.

A excursão foi organizada pelo departamento de estrangeiros da Uni-Augsburg. O lugar é uma maravilha: passamos pelas típicas fazendas da Bavária e vimos cavalos, ovelhas e bois em grandes pastagens. O parque natural também é muito bonito: vários túneis e cavernas, cachoeiras, rios e uma enorme gruta. Além disso, passamos por vários desfiladeiros e ao longe víamos diversas montanhas cobertas de neve. Foi uma caminhada e tanto. Achei que iria morrer de frio mas acabei tendo que tirar meu casaco: estava fazendo sol e eu suava. Além disso, meus tênis me matavam. Cheguei em casa com duas bolhas enormes em cada um dos dedões. Prometi a mim mesmo que vou comprar tênis novos na segunda-feira.

Terça-feira é feriado (dia de todos os santos), mas terei aula normalmente na segunda. Penso em ir ao memorial do campo de concentração de Dachau na terça, mas ainda não sei. Minha tosse parou ao longo da caminhada, mas foi só voltar ao quarto que ela recomeçou. Estou tomando um antialérgico e vou ver se melhora. Tenho pensado muito: sinto falta de muita coisa no Brasil, mas não a ponto de querer voltar agora. Confesso que estou feliz aqui, mas confesso também que não aguentaria ficar para além de fevereiro.

A tendência agora é que eu crie uma rotina, por isso não sei se terei mais tanto assunto para escrever pela frente.
A você que me acompanha um grande abraço!

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Confissões de Augsburg - evoluindo

E eis que na última quinta (13 de outubro) pela manhã tivemos o Einführungstag: uma palestra direcionada a estudantes estrangeiros apresentando a universidade, suas características e seu funcionamento. Lá pude perceber quão variada é a origem dos alunos da UNI-Augsburg. Quem vem para a Alemanha esperando encontrar um monte de gente loira de pele clara e olho azul se surpreenderá. Vários desses estrangeiros vêm para se formar aqui, outros tantos apenas para intercâmbio: China, Japão, Vietnã, Turquia, Argélia, Ucrânia, Peru, País de Gales, França, Itália são apenas alguns dos países que estavam lá representados. Naquela mesma quinta, de tarde, comi pela primeira vez no bandejão daqui. Eles chamam de “Mensa”. É uma grande instalação de muros e teto brancos, mantida pelo Studentenwerk Augsburg (algo como se fosse a FUMP lá da UFMG) e com um sistema supermoderno. Você paga cinco euros pelo cartão magnético e carrega-o em uma máquina que tem lá dentro. Na hora de pagar você mostra sua refeição para a moça do caixa, ela digita o valor no computador, você passa o cartão no leitor e então o valor é descontado. Nada de filas imensas, catracas, pessoas procurando desesperadamente o dinheiro para pagar o caixa ou inconvenientes batendo papo com os funcionários na hora de servirem-se. Nunca odiei o bandejão da UFMG – comia lá sempre que possível e até gostava – mas sempre achei as filas quilométricas ao meio-dia um suplício.

No Mensa há mais opções e, como o preço não é fixo, não há limite de refeição: você pega tudo o que quiser e tem também várias opções de bebidas (como num restaurante normal mesmo). Comi dois knödels (um bolinho feito de farinha de trigo, como uma almôndega) mergulhados em sopa de cogumelo, batata frita e tomate com pepino. Junto com a Coca Cola de 500 ml ficou tudo em 4 euros. Quem teve o prazer de me apresentar o Mensa foi o David, meu tutor aqui em Augsburg. Até hoje não descobri para que servem os tutores oficialmente, mas o David tem sido um grande amigo. Ele também estuda História e me disse que seu avô lutou na Rússia pela Wehrmacht durante a Segunda Guerra Mundial, mesmo não sendo nazista (foi forçado). Também me disse que apenas as pessoas mais velhas na Alemanha têm mais reservas na hora de falar sobre a Segunda Guerra, sendo que os mais jovens não se importam muito com isso.
Saí do Mensa farto. Aquelas almôndegas te enchem de uma tal maneira que você se sente como se tivesse comido o dobro. Despedi-me do David e fui para a Orientierungsphase da Philologisch-Historische Fakultät (a faculdade de História e Letras daqui; curiosamente, os cursos de Filosofia e Ciências Sociais são em outra faculdade). A Orientierungsphase é uma espécie de introdução da faculdade aos calouros. Pensei que eles fossem dar informações relevantes sobre as disciplinas, professores, funcionamento da faculdade e coisas do tipo. Nada disso aconteceu: tudo não passou de uma espécie de “calourada educativa” com provas e gincanas – a tarde inteira. Como diria o Chaves: “TERIA SIDO MELHOR IR VER O FILME DO PELÉ”.

Não me lembro de ter feito nada relevante na sexta-feira, além de ter dado uma volta pela cidade a fim de conhecer alguns pontos turísticos. Tirei fotos da prefeitura, um prédio imenso e muito bonito que fica de frente para uma grande praça onde muitos costumam se sentar no chão para conversar e comer – especialmente de tarde, para aproveitar um pouco do sol. Queria muito tirar fotos de uma grande fonte (se não me engano do século XVII) que tem ali em frente à prefeitura, com estátuas de imperadores romanos. O problema é que antes do inverno eles cobrem as estátuas com algumas estruturas de madeira ou metal para impedir que a neve as estrague, e só voltam a tirá-las na primavera – quando já não estarei mais aqui. Pena. Quando cheguei elas ainda estavam descobertas! Depois de passar pela prefeitura fui até um conjunto habitacional chamado Fuggerei. Ele foi fundado na primeira metade do século XVI pelo banqueiro Hans Jakob Fugger, uma das figuras mais ilustres de Augsburg. Ele construiu Fuggerei para abrigar famílias pobres de Augsburg e até hoje o conjunto tem essa função, figurando como a moradia mais antiga do mundo para pessoas de baixa renda.

No sábado de manhã, em uma visita guiada pela cidade, tive a oportunidade de entrar na prefeitura e fotografar o salão interior, todo ornamentado com pinturas de imperadores romanos e estátuas de ouro. A guia nos disse que quase 80% dos prédios de Augsburg foram destruídos em bombardeios aliados em fevereiro de 1944, sendo reconstruídos após a guerra com base em seus desenhos originais. A prefeitura foi um deles. Por pouco eu não pude fotografar os salões do interior da prefeitura: na hora de tirar a primeira foto minhas pilhas acabaram. Algo que me acontecia com uma frequência impressionante na Malásia. No dia anterior eu tentei gastar a máquina o máximo possível, a fim de usar as pilhas até o fim e poder recarrega-las à noite. No entanto, as pilhas não acabavam, por mais que eu usasse a máquina. Esperaram para acabar exatamente quando eu estava lá dentro. Felizmente o Maurício, cuja câmera já estava cheia, me emprestou suas pilhas e eu me safei.

Sábado à noite saí com o David e alguns de seus amigos. Em uma de muitas conversas ele me disse que os descendentes de Hitler mudaram de sobrenome e que esse nome já não existe mais. Da mesma forma, é praticamente impossível encontrar pessoas na Alemanha com o nome de Adolf (apenas aqueles que nasceram antes da guerra). Ele me perguntou de que cidade eu vinha no Brasil e respondi que vinha de Belo Horizonte (não vejo muito sentido em dizer, na Alemanha, que eu vim de Lavras). Ele então comentou – e seus amigos concordaram – que “Belo Horizonte” tem uma sonoridade muito interessante e parece nome de boate de strip-tease. Segundo ele, aqui na Alemanha essas boates costumam ter nomes exóticos, de preferência de origem latina. Achei que fazia sentido, mas não soube o que pensar daquilo.

Procurei voltar para casa antes da meia-noite, quando ainda havia bondes passando (depois da meia-noite, só ônibus especiais). Aqui em Augsburg os estudantes pagam 90 euros no começo do semestre para andar o semestre inteiro em qualquer transporte público dentro da cidade: ônibus ou bondes (com exceção desse transporte depois da meia-noite, que é pago). Se o fiscal aparecer (até hoje isso já aconteceu duas vezes) é só mostrar seu comprovante de matrícula.

No domingo acordei na hora do almoço e passei toda a tarde estudando para a prova de nivelamento de alemão que eu teria na segunda de manhã. De acordo com meu desempenho nessa prova eu iria entrar num determinado nível do curso de alemão para estrangeiros que a universidade oferece. Segunda de manhã fiz a prova de nivelamento em um grande auditório quase lotado. Mais da metade do tempo da prova foi o professor explicando como funcionam os cursos, o conteúdo de cada um deles e como seríamos avaliados. Entendi razoavelmente bem o conteúdo do discurso dele; mais importante de tudo, entendi as piadas que ele fez. Ele disse, em alemão, que todos os alunos que não estivessem entendo o que ele dizia não precisavam fazer a prova e podiam ir direto para o nível A1 (básico). Quem entendeu riu, e ele disse que aqueles que riram podiam permanecer e os que não riram podiam sair. Como os que não riam não entendiam, eles permaneceram. De fato, quando a prova começou, muita gente levantou e entregou-a em branco. A prova consistia num pequeno ditado que esse mesmo professor leu. Ele leu um pouco rápido e por isso tive dificuldades. Depois havia uns 4 textos sobre a Alemanha e sobre como estudar alemão. Várias palavras, porém, estavam incompletas e então tínhamos que completa-las corretamente. Acho que me saí melhor nesse, embora eu tenha inventado algumas palavras onde eu não sabia. O problema foi só o tempo: acho que uns 20 minutos apenas... Tive que fazer na correria.

Segunda à tarde comprei um celular em uma loja da O2, uma das operadoras daqui. Nada de i-Phone, Smart Phone ou coisas do tipo. Fiz questão de levar o mais barato e básico de todos: Nokia C1-01, 49 euros, tem tudo aquilo que preciso num celular: fazer e receber chamadas, mandar e receber mensagens, MP3 e rádio. Meu Motorola já estava com alguns botões soltando e a bateria viciada, mas foi um bom companheiro ao longo desses dois anos e meio.

Na terça de manhã fui, pela terceira vez, ao departamento de estrangeiros regularizar minha situação aqui na Alemanha (nas outras duas vezes tinha chegado atrasado). Dessa vez cheguei a tempo. Em um prazo de seis a oito semanas estarei recebendo uma carta com algumas coisas (não lembro bem o que) e então mais uma vez deverei voltar lá para pegar uma espécie de identidade comprovando que sou estrangeiro regularmente residente na Alemanha. Na terça à noite me chamaram para uma “Stammtisch” (não sei como traduzir isso em português: é como se fosse aquela mesa do bar onde sempre se sentam os mesmos fregueses todos os dias). O evento era direcionado aos estudantes estrangeiros e consistia em uma série de brincadeiras, entre as quais um certo “speed-dating” (não perguntei o que era isso pois tive medo da resposta). Baseado na Orientierungsphase da faculdade de ciências humanas, preferi recusar. Ao invés de ir e terminar a noite parafraseando Chaves (“seria melhor ter ido ver o filme do Pelé”) preferi ficar em casa assistindo Chaves pelo YouTube. Ganhei muito mais com isso!

Por aqui muitos dizem que sou muito quieto, que não saio, que sou desanimado, que sou tímido. Pois eu creio que não há nada mais escabroso que um antissocial tentando se passar por extrovertido. Um homem fingindo ser mulher, uma criança se passando por adulto, um burro se passando por inteligente, um perna-de-pau pagando de artilheiro: tudo isso eu posso aceitar, menos um antissocial se passando por extrovertido.

Apesar disso, naquela terça não fiquei em casa. Resolvi visitar o Maximilianmuseum, um museu que tem próximo à prefeitura. Aproveitei que ele ficava aberto até às oito da noite e fui. Augsburg é a terceira cidade mais antiga da Alemanha, tendo sido fundada pelos romanos em 15 a. C.. Perde apenas para Trier (cidade natal de Karl Marx) e outra que não me lembro qual era. Assim, o acervo do museu é riquíssimo, com obras desde a Antiguidade Clássica, passando pela Idade Média, Renascimento (período culturalmente mais rico de Augsburg) e século XIX. Várias pinturas, esculturas barrocas (algumas das quais me lembravam um pouco aquelas de Minas Gerais), estátuas de imperadores e deuses romanos, imagens de santos... Não dá pra contar tudo que vi! Até porque cheguei um pouco tarde: o museu iria fechar em uma hora e precisei ver tudo correndo. Além disso, a maldição da câmera fotográfica mais uma vez me atacou: levei a câmera, mas larguei as pilhas em casa, no carregador. Pois é. Outro dia volto lá com mais tempo e com pilhas (isso se eu não esquecer a câmera em casa).

Na quarta fui ver o resultado de meu exame de alemão: fiquei no nível B2, em uma escala crescente que vai de A1 (mais básico) até C2 (mais avançado) – A1, A2, B1, B2, C1, C2. Mais tarde dei uma andada pela faculdade de ciências humanas para aprender onde ficam minhas salas de aula. Dei voltas e mais voltas no prédio inteiro (pelo menos no primeiro e segundo andar) e consegui achar todas elas. A faculdade está passando por reformas por isso pra todo lado existem obras, escadas, furadeiras e poeira. Minha primeira aula é no sábado de manhã. Peguei, ao todo, quatro matérias: três Übungen (exercícios) e um Proseminar (seminário), além da aula de alemão para estrangeiros. Os exercícios são mais práticos e buscam colocar o aluno mais próximo das fontes e dos arquivos, além de terem um número reduzido de alunos. Peguei um sobre imperialismo e colonialismo da Alemanha Guilhermina, outro sobre textos-chave para se entender o período 1830-1930 e outro de leituras sobre o período nazista. Na disciplina de seminário peguei um sobre a Primeira Guerra Mundial, mas como não tinha lugar estou na lista de espera.

Acho que não faz muito sentido pegar matérias demais. O idioma ainda é uma barreira para mim, por isso precisarei de mais tempo para me dedicar a cada uma dessas matérias. Já vim pra cá com um objetivo em mente: estudar como a imprensa alemã noticiou a visita do Kaiser Guilherme II ao Marrocos, em março de 1905 (um dos elementos constituintes da Primeira Crise do Marrocos e que conduziu à Primeira Guerra Mundial). Sendo assim, creio que as matérias que peguei são mais do que suficientes para me orientarem nessa pesquisa. Aliás, ando procurando por uma charge que vi num livro didático sobre o assunto: uma águia alemã protegendo alguns marroquinos diante de um galo francês. Essa charge é de 1906, de algum jornal alemão, e é extremamente emblemática do que pretendo analisar. Se alguém descobrir o nome do jornal, por favor me diga!

Na quinta, mais uma vez acordei tarde demais. Comi no Mensa e à tarde fui, junto com o Maurício e uma amiga peruana, até a IKEA, aquela loja de departamentos sueca. A loja fica nos arredores de Augsburg e é um monstro! Tem de tudo para a casa. Passamos a tarde toda andando pela loja. Comprei um lençol (até hoje estive dormindo sem!) mas não achei um desentupidor de pia, algo que preciso com certa urgência. Já faz alguns dias que a pia do banheiro entupiu. No começo a água ainda descia, mas demorava muito; agora ela parou de vez. Na verdade, nem ao menos sei como se diz “desentupidor” em alemão. Queria falar com o zelador da moradia, mas ele parece o 5102 que vai para a UFMG: aparece de mil em mil anos e só quando você não está por perto. Queria também pedir ao zelador uma cadeira (recentemente descobri que todos os outros quartos têm cadeira, menos o meu) pois minhas costas estão doendo de ficar sentado na cama.

E assim segue minha vida aqui no velho mundo. Não deixo de acompanhar o que acontece no Brasil: as notícias, o Pan de Guadalajara, o drama do Cruzeiro e a luta contra as aulas geminadas (recentemente respondi o questionário enviado por e-mail). Assim que puder mando mais notícias, mas prometo ser mais enxuto da próxima vez, com menos detalhes e mais reflexões. Auf wiedersehen!

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Confissões de Augsburg - os primeiros passos

Terminei meu último relato imaginando o que o fim de semana me reservaria. Pois não foi coisa boa. Apenas um dia depois de comprar o adaptador de tomada e instalar a internet aconteceu algo que invalidou por completo minhas duas aquisições: a energia no meu quarto acabou no sábado por volta das 11 da manhã. A bateria do meu netbook acabou naquele mesmo dia, bem como a bateria do meu celular, a qual eu suspeito fortemente que está viciada. Voltei à estaca zero. Continuei sem saber as horas (já que meu único relógio é meu celular) e acordando sem saber se deveria almoçar ou tomar café (meu celular também é meu único despertador). Liguei para o zelador e ele disse que era pra eu chamar o eletricista. Passei, portanto, o sábado, o domingo e a segunda sem luz.

No sábado mesmo comprei algumas velas e uma espécie de isqueiro para acendê-las (daqueles de acender fogão), na drogaria aqui perto da moradia. Durante a tarde estudei alemão: continuei fazendo os exercícios do Delfin, o livro que eu usava no meu curso lá no Brasil. Foi escurecendo e eu acendi as velas. Mais à noite saí pra comprar algo para comer. Já estava cansado de comida turca, mas foi exatamente o que acabei comendo. Não por vontade própria, mas porque aqui existem mais restaurantes de comida turca do que de comida alemã. Fui até um pequeno restaurante aqui perto que fica de frente para um pub, uma espécie de Bar do Cabral mas mais sofisticado. Dentro do restaurante algumas máquinas caça-níqueis (isso tem em todo lugar aqui) e uma televisão com resultados de todos os eventos esportivos do mundo. Pedi um döner e esperei no balcão. Enquanto isso, a televisão anunciou até os jogos da próxima rodada do Campeonato Brasileiro! Corinthians X Goianienze era um dos jogos.

Comi o döner em casa e não demorei a dormir depois. Naquela noite sonhei que a luz havia voltado. Acordei já na hora do almoço e, mais uma vez, comida turca – acho que dessa vez foi um kebab (não me lembro bem), mas em outro restaurante. Ao longo da tarde estudei mais alemão e depois fui até o quarto da Cristina, pedir a ela um despertador emprestado porque no dia seguinte teria que levantar cedo para fazer matrícula.

A manhã da matrícula estava bem nublada; um dos dias mais chuvosos desde que cheguei. Fui até a universidade e peguei uma fila com gente de vários países. Na minha vez, apresentei meus papéis e quando a secretária me disse “pronto”, estranhei. Não escolhi nenhuma matéria, nenhuma aula, nenhuma disciplina. Apenas me matriculei no curso. E agora? Posso ver a aula que eu quiser? Ainda vou descobrir como isso funciona. Depois de fazer a matrícula assinei meu contrato de aluguel na sala do Studentenwerk e andei pelo campus em busca de um restaurante não-turco; só achei pizzarias e lanchonetes. Sentia falta de um prato de comida de verdade, comer com garfo e faca. Felizmente achei um Mr. Onions (ou algo assim), um pouco afastado. Lá pedi uma vitela à moda de Viena, com batata frita, uma folha de alface roxa e duas rodelas de pepino. Um prato enorme, uma vitela enorme, e a garçonete ainda colocou dois vidros enormes de ketchup e maionese ao lado. A vitela estava muito boa, parecia um frango à milanesa. Só de não ter que comer kebab de novo foi um alívio.

Naquela mesma tarde precisei xerocar alguns documentos que eu usaria para pedir a autorização de residência. Ao entrar na gráfica da faculdade, senti-me um estúpido. Assim como tudo na Alemanha, o xerox daqui é você quem tira – não há ninguém para tirar para você. Você copia e depois paga no caixa. Pensei, então, em como passei esses anos todos de faculdade xerocando textos sem nunca sequer ter encostado numa máquina de xerox. Tive vergonha de pedir ajuda ao funcionário e usei o instinto: coloquei o documento lá dentro, fechei a tampa e apertei o botão verde. Até que funcionou! Xeroquei o resto e fui embora. Precisava ir a uma unidade da universidade na qual eu pediria autorização de residência aqui em Augsburg. Esse escritório, porém, ficava bem longe, na antiga sede da faculdade.

Peguei o bonde e parei alguns pontos mais á frente de onde eu deveria parar. Pedi informações a uma senhora que estava sentada e ela me disse que o lugar que eu queria era mais atrás e então fui caminhando. Demorei um pouco, mas enfim achei o prédio. A fachada dele estava interditada e ao entrar pelos fundos vi que parecia um prédio abandonado. Não se via ninguém. Lá dentro, alguns computadores jogados e um silêncio mortal. Até que achei um funcionário e pedi informações. Ele gentilmente me explicou onde eu deveria ir e então subi um lance de escadas. No caminho, deparei-me com uma série de coisas que me interessavam: os arquivos da universidade, o departamento de História Contemporânea e vários cartazes anunciando palestras sobre diversos temas – reino dos Vândalos, a Síria antiga, entre outros. Cheguei ao local onde deveria fazer o registro, mas já estava fechado. Ficou para outro dia.

Com toda essa correria, acabei não tendo tempo para resolver o problema da energia elétrica no meu quarto. Chamei um eletricista, mas ele só veio na terça de manhã. O problema era mais comigo do que com a energia em si: por algum motivo (acho que por um excesso de aparelhos ligados) uma das chaves do quadro de luz desligou sozinha. Havia mexido na caixinha umas quatro vezes sem sucesso; o eletricista apenas ligou a chave e... Pronto! Mais uma ocasião para me sentir um estúpido. Senti vergonha ao ver aquilo, mas ele não fez muito caso. Agradeci-o e pedi desculpas, e novamente eu tinha energia em casa.

Naquela mesma manhã de terça voltei no departamento da universidade para me registrar. Estava aberto, mas novamente cheguei um pouco tarde e a funcionária pediu que eu e mais algumas alunas italianas que lá estavam voltássemos na quinta. Paciência.

Chegando a hora do almoço na terça eu tentei mais uma vez variar, mas mais uma vez caí na comida turca. Consegui, porém, pelo menos mudar de restaurante. Fui ao Al Bagdady, que fica na mesma rua da moradia. Entrei e vi no cardápio que havia um prato com arroz. Achei que pelo menos eu iria me livrar dos kebabs e döners, mas o dono disse que aquele prato não estava mais disponível. Tive que pedir um döner (ou um kebab, não me lembro). O movimento no restaurante era intenso: vários senhores e jovens jogando baralho e apostando nos caça-níqueis. Lá em cima uma televisão transmitia, por um canal árabe, o jogo Coreia do Sul X Emirados Árabes Unidos, mas ninguém ali se mostrava muito interessado. Após sair de lá, decidi que era hora de dar um basta nesse negócio de comer fora de casa todo o dia. Decidi que iria comprar uma panela e fazer minha própria comida [sic].

E assim foi. Comprei uma panela de alumínio na drogaria aqui perto, bem como garfos e facas. Depois comprei algumas salsichas brancas típicas daqui da Bavária (Weiβwurst) e uma caixa de ovos. À noite comi as salsichas com ovo cozido, até que ficou bom. As salsichas são fáceis de preparar. Contanto que eu não tenha que cozinhar para ninguém além de mim, acho que tenho tudo para ser um cozinheiro regular!

Também na terça saí para poder comprar casacos para o inverno. Encontrei, perto da Königsplatz, uma C&A! Nem sabia que aqui tinha. Após muito olhar e experimentar levei dois casacos pesados que, ainda assim, temo que não vão me proteger do inverno rigoroso que começa no fim de outubro ou início de novembro.

Na noite de terça, enquanto mexia no Facebook, descobri, por meio de um post no grupo daqui da moradia, que a televisão que ficava no 19º andar, em uma área de lazer, tinha acabado de ser roubada. Havia, segundo a menina que postou, muitos cacos de vidro no chão e pelo visto até a polícia foi chamada. Verifiquei minhas portas e minhas janelas: tudo trancado. Hoje conversei com várias pessoas e elas confirmaram o roubo. Fazer o quê? Ladrões existem em todo lugar.

Hoje pela manhã comprei ainda uma frigideira, pois as salsichas ficam melhores se preparadas na frigideira. Comprei também outra comida que não sei bem o que é, mas sei que é feito de ovo. Chama-se Eierspätzle: são umas tirinhas amarelas que vem num pacote de plástico. Novamente comi a salsicha com o ovo cozido, mais as tirinhas amarelas, enquanto assistia a um episódio do Chaves na internet. À tarde fiquei só na internet, lendo e-mails e conversando. Depois comecei a redigir esse texto e, de repente, quando vi o relógio, o susto: cinco da tarde! Às seis tinha um compromisso na universidade, uma pequena festa de boas-vindas aos estudantes estrangeiros. Relutei até o fim em ir nesse evento, avesso a festas como sou, mas por fim eu fui.

Chegando lá tive medo: um monte de gente que eu não conhecia conversando, comendo e bebendo, e algumas mesinhas com comida. Horror. Minha veia antissocial quase estourou. Na realidade nunca me considerei de fato antissocial, apenas sou contra socialização forçada. Ir a lugares com o único intuito de se fazer amigos é a experiência mais humilhante a que um ser humano pode se submeter. Talvez isso fizesse sentido quando eu era um menino de sete ou oito anos, mas não agora. Acho que a amizade nunca deve ser o principal alvo de uma ação; as boas amizades nascem sempre como efeitos colaterais de um objetivo ainda maior: um grupo que faz trabalho de faculdade, algumas pessoas que se reúnem para consertar um vazamento ou protestar contra uma barragem, alguns colegas que se organizam para montar um time de futebol. Eu particularmente não odeio as pessoas, nem tenho nada contra conversar com gente nova. O problema é que nunca sei o que dizer, o que falar, sobre o que conversar. Por isso prefiro poupar os outros da minha melancolia. Sou, quando muito, um antissocial altruísta, que evita socializar pelo bem dos outros, não de mim mesmo.

De qualquer forma, não me arrependi de ter ido. Em menos de 5 minutos encontrei com o David, estudante de Inglês e História, que será meu tutor na faculdade e com quem já havia trocado vários e-mails. Conversamos por um longo tempo sobre futebol, sobre o curso de História, os professores e traçamos algumas comparações pertinentes entre Maradona, Pelé e Beckenbauer. Mas, mais importante que tudo isso, ele me advertiu que eu devia tirar a pele das salsichas antes de comê-las. Juro que não sabia disso. Enquanto isso o salão foi enchendo, e finalmente o evento começou.

Uma rápida apresentação sobre o departamento de estrangeiros da universidade foi exibida num Power Point. Depois, uma dinâmica de grupo: cada um pegava uma folha de papel, escrevia uma mensagem, fazia um aviãozinho e jogava ao ar; cada um também pegava o avião que achasse no chão. Depois cada um tinha que achar a folha na qual tinha escrito. Mais uma vez, horror. Se a socialização forçada é algo degradante, a socialização via brincadeiras chega a ser uma tortura. Mas devemos todos dançar conforme a música então fui em frente. Escrevi meu nome e meu país na minha folha e joguei-a. Fui encontra-la bem depois nas mãos de uma menina que me disse que havia outro brasileiro ali na festa. Não demorei a acha-lo. Pasmem: ele morava não só na mesma moradia e no mesmo andar que eu, mas também no quarto ao lado! Passei uma semana em Augsburg morando ao lado de um brasileiro sem sequer ter ideia disso. Conversei com gente de todo lugar: Espanha, Ucrânia, Turquia, Alemanha e principalmente Itália. Nessas idas e vindas encontrei ainda uma outra brasileira.

Voltei para a casa com um grupo de italianos e italianas, mais a brasileira. Quase exorcizei as italianas quando me convidaram para ir a uma boate no centro da cidade. Achei muita socialização para um dia só. Agradeci, porém, o convite. Quem sabe outro dia? Ou não. Preferi voltar para casa e acabar de escrever esse texto. Amanhã (quinta) pela manhã terei o Einführungstag, uma apresentação da faculdade aos estudantes estrangeiros, e mais à tarde uma apresentação da Faculdade de Filologia e História (acredito também que só para os estrangeiros).

E assim se passaram meus últimos cinco dias.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Confissões de Augsburg

“Sete anos depois de 2004; quatro anos depois de 2007: tudo se repete?”

Alguns dias antes de partir, uma amiga havia me dito que quanto mais crescemos, mais bobos ficamos. A comprovação disso tive no primeiro voo: suei gelado quando a aeronave da TAM levantou do aeroporto de Confins para Guarulhos, mesmo já tendo viajado de avião mais de sete vezes – e nunca, nessas vezes, ter sentido medo. Acredito que a melhor explicação não foi só o fato de ter ficado mais bobo, e sim o que aconteceu entre a primeira e última vez em que estive no exterior e hoje: acidente da TAM em 2007, acidente com o Legacy, acidente com um avião no rio Hudson, acidente da Air France, acidentes na Indonésia, acidente com o time de hóquei russo... Nada nos garante que não é a nossa vez. Não quis, portanto, olhar pela janela e ver a terra se afastando; demorei a acreditar que algo tão grande e pesado pudesse ficar no ar por muito tempo sem se espatifar no chão. Acho que a explicação é bem essa: não fiquei apenas mais bobo e medroso, fiquei também mais cético.

Há sete anos atrás era um menino bobo e imaturo viajando de avião pela primeira vez, sem medo algum. Sete anos depois eu já sou um adulto, maduro e responsável, morrendo de medo de avião.

A mulher que ocupava a poltrona oposta à minha estava lendo Raízes do Brasil, do Sérgio Buarque de Holanda. Aquilo me alegrou. Cheguei em Guarulhos sem muito tempo para ficar rodando pelo aeroporto e comer: a mulher do guichê da Alitalia disse que precisava embarcar logo e assim o fiz. No voo entre Guarulhos e Roma fiquei na primeira fileira de cadeiras, de modo que podia esticar minhas pernas livremente. Porém, não fiquei na janela e por isso não pude olhar lá embaixo quando o avião sobrevoava Belo Horizonte, Recife e o Deserto do Saara. Na hora do jantar pedi um suco de laranja e a aeromoça me serviu um suco vermelho. Pensei: “ela deve ter ouvido errado”, mas não criei caso. Mas o suco tinha mesmo gosto de laranja! Na mesma hora lembrei daquele episódio do Chaves no qual ele vendo refrescos na porta da vila: “tem o refresco de limão que parece de groselha e tem gosto de tamarindo; o de groselha que parece de tamarindo e tem gosto de limão; e o de tamarindo que parece de limão e tem gosto de groselha”.

Cheguei em Roma bem cedo: nunca tinha estado na Europa antes. Um ônibus nos levou até o local de desembarque e conexões. Lá também não tive tempo para serão: a fila da imigração estava imensa; pessoas de muitos países, com destaque para várias mulheres muçulmanas. Não tive problemas para passar e logo depois fui pegar o voo de conexão: mais uma grande fila para apenas duas entradas – a terceira entrada era para portadores de passaportes da UE, EUA e Canadá. Filipinos, brasileiros, argentinos, paraguaios e colombianos tinham que esperar. O funcionário da imigração conversava alegremente com seu colega. Quando cheguei, ele carimbou meu passaporte distraidamente, na primeira página que abriu. Não havia necessidade disso.

Aí foi mais uma correria para chegar ao portão de embarque: o ônibus nos levou até o avião da Alitalia e lá meu assento era na janela. Dessa vez tive menos medo: pude ver lá embaixo todo o litoral da Itália e uma cadeia de montanhas nevadas muito bonita. Só o que me deu medo nesse voo foi o comissário de bordo falando pelo sistema de som. Ele disse, em italiano, que aquele era o voo para “Monaco”! Fiquei imaginando o que eu iria fazer se fosse parar em Mônaco: seria de pronto repatriado, sem dúvida! Foi quando abri uma revista que estava na poltrona da frente e vi um mapa da Europa em italiano. Lá descobri que “Monaco”, em italiano, significa “Munique”. Nada de pânico...

Cheguei em Munique naquela quarta, ainda pela manhã. Quase passei batido pelo fiscal da imigração, que me pediu meu passaporte. Perguntou qual era o propósito de minha visita e eu disse que era intercambista da universidade de Augsburg. Ele viu minha foto, folheou meu passaporte e me liberou. Até então tudo havia dado certo nos voos, mas era por terra que o pesadelo iria começar.

Perguntei no balcão de informações onde ficava o trem – precisava pegá-lo para chegar a Augsburg. Ela me disse que era embaixo. Desci e passei uns 20 minutos tentando decifrar o mapa e suas legendas. Finalmente descobri em que direção ficava a plataforma e – pasmem! – consegui comprar o ticket de primeira na máquina eletrônica! Não sem antes coloca-la em espanhol. Precisei de mais informação para saber onde ficava o trem e desci mais um lance de escada. Lá embaixo estava o trem, parado, de portas abertas. Não sabia se era aquele mesmo e pedi informação em alemão a um grupo de passageiros. Eles eram estrangeiros e apenas me disseram “nicht verstehen” (não entender). Tão perdidos como eu.

Pedi então informação a uma moça alemã, que me disse não haver trem direto para Augsburg: eu precisava ir pra estação central de Munique e lá pegar outro. Ela também disse que aquele trem levava pra lá. Entrei no trem meio sem coragem: a menina não parecia muito segura da informação. Foi quando chegou um estrangeiro e me pediu informações... olhei pra ele com a maior cara de perdido e ele me ignorou. Após muito analisar o mapa que havia no trem, entendi mais ou menos onde ficava a estação. No caminho, fiquei impressionado com a beleza da paisagem: várias casas de campo e sítios com cavalos e vacas pastando. Em uma das casas de campo vi um Cristo Redentor de madeira ou papelão.

Desci na estação central e lá novamente pedi informação sobre onde pegar o trem para Augsburg. Tive que subir uma escada e lá estava ele, quase partindo. No caminho, mais paisagens bonitas: fazendas, plantações de trigo; tudo plano, bem plano... Coisa comum até para o brasileiro em geral, mas que o mineiro estranha, acostumado que está a viver entre morros.

Cheguei em Augsburg e aí foi outro drama para conseguir chegar na moradia. As duas malas, muito pesadas, meu jeito desastrado de andar pelas calçadas e meus olhos confusos ao observar o quadro de horário de ônibus denunciavam a todos que eu não era de lá. Sabia que eu precisava pegar o ônibus da linha 22 ou 23, rumo a Königsplatz, mas não sabia onde parar. Por isso, pedi informação dentro do ônibus a um rapaz que mexia no celular. Quando ele olhou para mim senti vergonha: ele era deficiente visual. Fiquei sem saber o que falar: como poderia um deficiente visual me avisar a hora em que chegou meu ponto? Acabei pedindo informação para uma mulher que sentou do meu lado. Na hora que chegou meu ponto novamente senti vergonha: tanto a mulher como o deficiente visual me avisaram, ao mesmo tempo, que era ali que devia descer. Subestimei-o, mas o agradeci. A mulher desceu comigo e me mostrou o prédio da minha moradia, justamente como na foto do site. Fica perto de uma grande ponte e próximo a dois rios.

Lá entrando, esperei pelo zelador para pegar minha chave: ele havia saído. Enquanto isso, encontrei com a Cristina, uma espanhola filha de brasileiros que também morava lá e com quem havia conversado no Facebook. Nos falamos um pouco, até que o zelador chegou. Despedi-me dela, peguei minha chave e subi. O quarto é bem pequeno, menor ainda que minha quitinete em BH. Fica no segundo andar. Tem uma cama, um banheiro (chuveiro, torneira e privada), um armário e uma pia com um fogãozinho ao lado que faz as vezes de uma cozinha. Tem também uma mesa bem grande, com muitas prateleiras e até um cofre. Duas janelas grandes dão de frente para a quadra de basquete que pertence à moradia. Lá embaixo tem uma lavanderia e cada morador tem uma caixa postal, na entrada, onde recebe suas cartas.

Estava muito suado e resolvi tomar um banho. Também estava cansado pois só dormi duas horas na voo. Mas resisti e não dormi. Saí porque estava morto de fome e comi no primeiro lugar que achei: uma espécie de café chamado “Frisch wie Müller”, aqui ao lado. Pedi um sanduíche com salaminho e tomate. Para beber, peguei na geladeira algo que julguei ser parecido com um Toddynho. A única diferença era que vinha meio-litro de leite achocolatado! Mas o gosto é bem parecido.

O dono do local, Herr (senhor) Müller foi muito solícito. Perguntei onde podia achar um lugar para fazer ligação internacional e ele me indicou uma lan house que oferece esse serviço. Mais ainda: me deu um cartão telefônico com dez euros, dizendo que eu podia usá-lo em uma cabine telefônica ali na frente. Agradeci muito e ele se colocou à disposição sempre que precisasse.

Saí em busca do telefone público para avisar ao pessoal que havia chegado. Andei bastante pela Lechhauser Strasse, apenas em linha reta, com medo de me perder, e nada encontrei. Pedi informação pra duas pessoas: uma não sabia, o outro começou a falar muito rápido e não entendi nada. No caminho resolvi parar no supermercado para comprar algumas coisas que estavam faltando: levei um shampoo anti-caspa e um pacote com oito rolos de papel higiênico (mais tarde fui descobrir que na verdade eram quatro rolos de papel-toalha – um erro comum que já cometi várias vezes no Brasil). Procurei sabonete feito doido mas não encontrei.

Nessas primeiras andanças o instinto me impediu de cometer um erro crasso: atravessar a rua com o sinal de pedestre fechado. Aqui, por mais que a rua esteja deserta, raramente alguém atravessa quando o sinal está vermelho. Até mesmo um bebum que parou ao meu lado, com uma garrafona de cerveja na mão, ficou esperando até o sinal ficar verde. Foi também nessas primeiras andanças que vi uma pichação em um muro declarando “morte aos nazistas”. Em cima da pichação, porém, um monte de rabiscos, como se alguém estivesse tentando invalidá-la... Não soube o que pensar daquilo.

No caminho de volta finalmente encontrei a cabine telefônica, pertinho da minha moradia – não sei como não a enxerguei! Liguei para minha mãe com o cartão do Herr Müller, que continha 10 euros. Falei que estava tudo bem e o cartão acabou antes que terminássemos nossa conversa. Deixei as compras no quarto e novamente saí para procurar a lan house com ligações internacionais. Andei na direção oposta e a encontrei, próximo a uma grande torre – o Jakobertor. Lá usei a internet, mandei alguns e-mails, fiz algumas ligações. O dono, um turco meio gordinho de óculos, me lembrava muito um conhecido meu de Lavras, descendente de libaneses. Aliás, em Augsburg – como em toda a Alemanha – há um número muito grande de turcos. Mas turcos de verdade, vindos da Turquia. Aqueles a quem chamamos de turcos no Brasil são, na verdade, libaneses ou sírios. Por aqui existem muitos restaurantes de comida turca e também muitas lojas para fazer ligação internacional, graças a eles.

Na volta passei em outro supermercado para comprar mais coisas: o sabonete que eu não encontrara, um papel higiênico de verdade e algo para comer mais tarde. Meu primeiro “jantar” na Alemanha foi, portanto, um leite de soja, um pãozinho francês mais pálido que defunto e um queijo suíço em fatias. Tive que tomar o leite na minha garrafinha do CASU – UFMG, pois não tinha copo. Esquentei o pão e o queijo e até que ficou gostoso.

À medida que ia anoitecendo, eu me sentia mais esgotado. Estava muito cansado e caí na real: olhei para aquilo tudo, pensei no que eu havia feito naquele dia, refleti sobre tudo – desde meu primeiro dia na aula de alemão (em agosto de 2009) até então. Perguntei a mim mesmo: “o que foi que eu fiz?”, e não obtive resposta. Passar um ano na Malásia foi moleza; passar um dia na Alemanha me pareceu um suplício. Custei a dormir, pois não me acostumei ao fuso-horário. Pra piorar, altas horas da madrugada uma menina em outro apartamento começou a gritar escandalosamente, como se estivesse brigando com alguém. Ela gritava muito e ouvi barulhos de coisas caindo no chão. Ficou assim por uns cinco minutos e depois tudo se silenciou – e eu dormi. Até hoje não descobri o que foi aquilo.

No dia seguinte acordei como se nada tivesse acontecido: as dúvidas e os problemas da noite passada não mais me afligiam. Até agora não entendi exatamente o que houve comigo aquela noite. Acho que o cansaço acabou me deixando com alucinações. De toda forma, tomei meu café (mais leite de soja, pão e queijo suíço), tomei banho e saí. Fui mais uma vez na lan house do turco. Queria saber quanto tinha ficado o jogo do Cruzeiro com o São Paulo, mas esqueci de ver o resultado. Li, porém, todos os e-mails respondidos; um deles da moça da universidade que lida com intercambistas. Me disse que eu podia encontra-la no seu escritório às duas da tarde, e lá fui eu. Custei para entender como se compravam os tickets de ônibus e de uma espécie de bonde que tem aqui – até agora ainda não entendi direito como funciona a máquina que os vende. O pior de tudo é que não há ninguém para te cobrar a passagem: durante toda a viagem ninguém pediu meu ticket, ninguém barrou minha passagem. O brasileiro vê isso e estranha, mas aqui parece ser comum: todo mundo paga exatamente o valor correspondente ao lugar que quer ir. Se a pessoa quiser, pode entrar e andar de graça, mas ninguém faz isso. E se por acaso alguém te pega sem passagem, você paga uma multa de 40 euros. Óbvio que eu não me arrisquei.

Chegando na universidade, fui ao escritório da Frau (senhora) Kirchner, que trabalha no setor de apoio aos estudantes estrangeiros. Foi uma das melhores coisas que me aconteceram até aqui: ela me explicou tudo que eu precisava saber, me deu um mapinha da universidade, me indicou onde seriam as palestras de apresentação e até me inscreveu para o encontro de estudantes da faculdade de ciências humanas (o qual eu ignorava). Depois disso fui olhar meu seguro, minha conta no banco e almoçar, tudo ali mesmo, na universidade. Resolvi comer num restaurante de comida turca: pedi um kebab box, apenas 3 euros: um potinho de isopor com batata frita, carne de cordeiro e um molho meio apimentado. Uma delícia!

Voltando para casa passei novamente no supermercado para comprar mais coisas. Levei duas garrafas de água mineral (mais tarde eu tive a infelicidade de perceber que era água com gás, que eu odeio!). Também levei dois copinhos de iogurte com o único propósito de poder reaproveita-los depois de vazios (achei que não ia valer a pena comprar copos de vidro apenas para 5 meses). Por fim, levei um travesseiro e um cobertor, que não são fornecidos na moradia. Na minha primeira noite usei minha sacola com roupa suja de travesseiro e minha bandeira do Cruzeiro como coberta. Mais tarde, na hora de dormir, descobri o quanto as cobertas daqui são eficientes: elas não só impedem que o calor fuja, mas também te aquecem ainda mais! Aquecem tanto que nem aguentei dormir com ela e resolvi me deitar em cima dela.

Por fim, passei novamente na loja do Herr Müller para pedir informações: precisava comprar um adaptador para minhas tomadas, pois as tomadas daqui são horrendamente estranhas. Graças a isso, não consegui recarregar meu celular e, consequentemente, fiquei sem saber das horas. Ele me explicou onde tinha uma loja de material elétrico. Entendi mais ou menos e decidi que iria lá no dia seguinte. Fiquei sem-graça de ir no Herr Müller só pra pedir informação e levei novamente um Toddynho de meio-litro. A noite do meu segundo dia na Alemanha foi melhor que a primeira: minha ida à universidade me animara bastante e eu novamente sabia o que estava fazendo aqui.

Sexta-feira. Fui abrir uma conta no banco para pagar a taxa da universidade, necessária para fazer a matrícula. O banco fica ali na universidade mesmo. Após abrir a conta paguei o valor devido. Antes disso tudo, porém, novamente almocei no restaurante turco. O dia estava chuvoso e o vento frio quase me cortava. Fui na lan house do turco mais uma vez, fiquei feliz ao saber do empate do Cruzeiro e liguei para o Felipe, um brasileiro que mora em Augsburg e também vai estudar na Uni-Augsburg. Depois peguei o transporte para ir até a loja de materiais elétricos de que o Herr Müller tinha me falado. Parei próximo à prefeitura da cidade mas demorei a achar o lugar. Isso foi, no entanto, muito bom: enquanto caminhava via igrejas, estátuas romanas, construções medievais, prédios antigos... A prefeitura e a praça à sua frente são maravilhosas! Augsburg é uma cidade histórica exatamente do jeito como gosto, a terceira mais antiga da Alemanha. Fiquei fascinado com suas construções e enquanto isso, meio sem querer, achei a loja de materiais elétricos. Na volta descobri onde ficava um lugar que eu queria muito visitar: a Brecht-Haus, a casa onde nasceu o filósofo Bertolt Brecht e que virou um museu. Mas já estava fechada.

Voltei para casa já de posse do adaptador e antes passei no supermercado: comprei mais pães (dessa vez um pãozinho mais atraente, não aquele branco-defunto), uma garrafa de chá gelado sabor pêssego e uma barra de chocolate (vício incontrolável!). Chegando em casa carreguei meu celular, instalei a internet e terminei de escrever esse texto. Aqui no quarto não tem cadeira, por isso preciso me sentar na cama para usar a escrivaninha. Ainda estou ponderando se realmente vale a penas comprar uma cadeira, mas fico numa posição meio desconfortável – por isso esse texto escrito meio às pressas.

Esses foram meus três primeiros dias na terra de Beethoven, Marx e Bento XVI. Vejamos o que o fim de semana me reserva.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O céu é azul

Era uma vez, em um lugar muito distante, um pequeno vilarejo encravado no meio das montanhas. Todos viviam felizes e em paz entre si, sem guerras, sem atritos; a comunidade produzia todo o necessário para sua subsistência. Havia poucas leis, pois não eram necessárias, e as poucas que existiam eram rigorosamente cumpridas. Portanto, nem ao menos um tribunal era necessário.

Existia, porém, um tabu: ninguém podia dizer que o céu era azul. Por mais que o céu fosse azul e que todos soubessem que ele era azul, era terminantemente proibido dizê-lo em público e mesmo dentro de casa. Nem mesmo o casal mais íntimo ou os amigos mais próximos ousavam dizer, em uma conversa privada, que o céu era azul. E de fato, nunca, ao longo da milenar história do vilarejo, alguém havia ousado afirmar tamanha barbaridade. Todas as manhãs o céu se estendia como um tapete acima das montanhas e do vilarejo, em uma extensão a se perder de vista, em um azul forte e deslumbrante. Porém, cada um sabia, no seu âmago, que o céu era azul, e isso era mais do que o suficiente.

Em uma manhã de verão um morador abriu a janela de sua casa e, olhando para cima, declarou: "o céu é azul!".
Num piscar de olhos, toda a comunidade parou o que fazia para linchá-lo. O jovem rapaz morreu em menos de meio-minuto, seu corpo foi atirado no rio para que a correnteza o levasse e jamais voltasse. Sua família foi expulsa do vilarejo e sua casa destruída; nunca mais se falou dele. Depois desse breve interregno, a comunidade voltou a viver em paz e nunca mais foi assolada por moradores que ousassem subverter o tabu.

E o céu permaneceu azul.