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quinta-feira, 11 de maio de 2017

Balcanizando II - Uma semana em Belgrado

A viagem de trem de Ljubljana (Eslovênia) até Belgrado (Sérvia) é longa. Cerca de onze horas. O trem também não é dos melhores: sujo, velho, desconfortável e barulhento. Mas é um dos poucos lugares dos Bálcãs onde ainda se têm ferrovias operando.

Para se chegar à Sérvia é preciso antes passar pela Croácia. É impressionante ver como a fronteira entre a Croácia e a Sérvia divide mundos tão diferentes. Atravessá-la é mais do que deixar um país para trás. É deixar a União Europeia para trás. É quase como deixar a Europa como a conhecemos para penetrar outra Europa, bem diferente daquela sobre a qual estamos habituados a ouvir.

Duas coisas nos fazem perceber que deixamos a Croácia e adentramos a Sérvia. As pichações deixam de ser no alfabeto latino e passam a ser em cirílico (ainda que o alfabeto latino também seja usado na Sérvia), e o lado sérvio é bem mais pobre. Nota-se isso pelas casas humildes, pela infraestrutura precária das cidades e pelos vários grupos de refugiados, muitos dos quais se aquecendo em fogueiras espalhadas de canto a canto.

Cruzamos a fronteira às quatro e quarenta da tarde.

A primeira cidade depois da fronteira é a pequena Šid. A única coisa que movimentava a simplória estação era um grupo de cerca de 60 ou 70 jovens, muitos deles portando mochilas do Alto Comissariado da ONU para Refugiados. A grande maioria tinha feições semíticas ou da Ásia Central. Sírios, iraquianos, iranianos, afegãos, paquistaneses... Muitos entravam e saíam freneticamente do prédio, enquanto outros comiam e outros apenas ficavam parados observando tudo. Os funcionários da ferrovia também pareciam inquietos tentando lidar com aquela situação toda. Aos poucos, os refugiados foram entrando e ocupando os assentos do último vagão do trem, perto do qual eu também me achava.

À medida que os refugiados entravam, a tensão no ar se elevava. Era visível, claramente visível, nos olhos dos serbo-croatas que lá estavam, um misto de horror, medo, ódio e desespero. Muitos se levantaram e foram sentar mais adiante, bem longe daquelas figuras estranhas que roubavam o sossego da viagem. O funcionário do trem chegou para colocar ordem na casa. Gritava em sérvio e fazia movimentos com os braços, como se quisesse dizer: “Mais pra trás! Mais pra trás!”. Ele parecia querer confiná-los todos ao último vagão, impedindo que eles cruzassem a linha divisória.

O problema é que eram muitos refugiados, e quanto mais eles ingressavam, mais espaço ocupavam, mais serbo-croatas se levantavam e mais o impaciente funcionário voltava ao local para repetir suas desesperadas tentativas de frear a “expansão” dos novos passageiros.

E a tensão no ar se elevava.

Eu observava aquilo tudo com apreensão, nervosismo, mas também curiosidade. Curiosidade que me fez ficar ali, parado. Confesso que por vezes me passou na cabeça a ideia de também me levantar e sentar-me mais à frente. Mas fiquei. Poucas vezes na minha vida estive em um ambiente tão carregado de tensão. Nem os debates de chapas para o DCE da UFMG, nem as acaloradas discussões do CAHIS, nem os vestibulares que prestei... Nada do que eu havia experimentado se assemelhava àquilo.

Lembrei-me de uma vez, há exatos dez anos, quando ainda cursava Ciências Sociais. Subimos no ônibus em BH após um churrasco da turma. Junto estava um colega nosso, completamente bêbado, que precisou ser carregado. Um dos passageiros se divertia com a situação: “Se acender um isqueiro aqui o ônibus explode!”, numa referência à quantidade de álcool ingerida pelo rapaz.

A cena parecia se repetir. Um mísero fósforo que se acendesse ali naquele vagão parecia o suficiente para mandar tudo pelos ares. Observava aquela cena com um interesse fora do comum, imaginando como aquilo acabaria e também como eu descreveria aquilo para as gerações posteriores.

Em um determinado momento, um dos refugiados audaciosamente abandonou seu reduto e começou a circular pelos outros vagões, olhando de lado a lado entre os assentos. Os poucos passageiros que haviam permanecido se sentiram ultrajados com a ousadia do jovem, que não parecia se intimidar.

No final, tudo o que ele queria era uma tomada para carregar seu celular. Alguém lhe disse que ele poderia fazê-lo no banheiro, o único lugar do trem que possuía tomada.

No ápice da tensão, com o trem já em movimento, um jovem croata resolveu abrir sua mochila, tirar uma garrafa de cerveja e oferecê-la ao referido refugiado. Em menos de um minuto, toda aquela tensão que carregava o ambiente se desfez com uma simplicidade ridícula. A frase “quebrar o gelo” nunca fez tanto sentido como naquela ocasião.

Os dois conversavam amigavelmente em inglês. O jovem era um refugiado afegão que tentava entrar na Itália. Enquanto o jovem croata conversava com o rapaz, seus familiares (que também haviam olhado para os refugiados com uma hostilidade feroz) aos poucos começaram a se interessar pela situação. Uma mulher que parecia ser a mãe do rapaz veio me perguntar algo em croata (provavelmente querendo saber se eu entendia o conteúdo da conversa dos dois). Respondi, em tom embaraçado e em inglês, que eu não falava croata. Ela deu um breve sorriso desconcertada e voltou a se sentar.

Mas não demorou até que os pais do menino croata se envolvessem na conversa. A mãe do garoto (uma das que havia olhado com horror para os incômodos passageiros) se sensibilizou a tal ponto que até distribuiu uma bandeja de doces para os refugiados que permaneceram sentados. Conversa vai, conversa vem, uma das mulheres que acompanhavam o rapaz croata (imagino que era sua tia) fez uma interessante confissão: ela também já havia sido uma refugiada, nos anos 1990, durante a guerra civil da Iugoslávia. É impressionante a capacidade que o ser humano tem de passar por uma situação de vulnerabilidade, superar essa condição e, logo depois, hostilizar alguém que está passando exatamente pela mesma situação. Quase como se não tivéssemos absolutamente nada com aquilo.

Com o tempo, reuni um pouco de coragem e comecei a conversar com o jovem afegão também. Ele me contou que era a quinta vez que falhava no intento de entrar na União Europeia. A Sérvia era passagem estratégica, já que fazia fronteira com a Croácia, país-membro da UE. Tinha planos de trabalhar em algum restaurante na Itália para poder enviar dinheiro a seus familiares no Afeganistão. Ele me mostrou fotos de seu pai já bem doente, sua mulher e sua filhinha pequena. Falando com desembaraço e tranquilidade, o afegão ainda me confessou que não sabia a própria idade ao certo, pois não tinha documentos de seu nascimento, o que dificultava ainda mais seu acesso à UE. Acreditava que tinha cerca de 32 anos. Mostrou-me também fotos dos certificados que ele ganhou da OTAN pelos serviços prestados na luta contra o Talibã. Ele me contou que operava escavadeiras que ajudavam a resgatar veículos americanos que caíam nas montanhas, além de também fornecer a localização de guerrilheiros talibãs. Perdeu as contas de quantas vezes recebeu telefonemas anônimos ameaçando ele e sua família de morte. E isso tudo pra que? Para chegar à Europa e ser chamado de terrorista.

Ele não tinha medo. Falava com uma resignação quase sobrenatural: “só Deus pode tirar a minha vida”. Repetia essa frase quase como um mantra sempre que perguntado dos perigos que rondavam sua vida: seu pai doente, sua filha, sua família ameaçada, a truculência dos policiais europeus (a polícia búlgara havia quebrado seu braço uma vez)... Nada lhe abalava a confiança.

O trem chegou à estação de Belgrado no comecinho da noite. Todos desceram, e eu desci junto com o rapaz afegão. Paramos e continuamos conversando por algum tempo. Seus amigos continuaram andando e o chamavam a todo o momento. Ele me disse que iriam dormir em um setor da estação, mas que ele não queria dormir mais lá porque fazia muito frio. Continuou repetindo seu mantra: “só Deus pode me tirar a vida”, e nos despedimos.

A partir de então, cada um tomou seu rumo. Ele em busca de um chão minimamente confortável para passar a noite e eu em busca de meu hostel. Ele temendo os policiais. Eu, temendo ser assaltado no caminho (já era noite). Ele, esperançoso de finalmente sair da Sérvia e atingir a terra da promissão: a União Europeia. Eu, empolgado de conhecer um país tão diferente. Dois mundos tão diferentes, duas situações tão antagônicas, duas vidas brevemente unidas por uma viagem de trem.

O jovem croata que estava no trem ficou espantado de saber que eu era brasileiro e que estava na Sérvia a turismo. No final das contas, ele deu a todos uma ótima lição. Muitas vezes, a melhor diplomacia é o álcool.

Quando ainda estava na Eslovênia, recebi um e-mail avisando que o hostel originalmente reservado em Belgrado estava com um problema de falta de água, e me oferecendo uma cama em outro hostel, do mesmo dono. Aceitei, pois estava com preguiça de procurar outro lugar para ficar. Fui da estação até o hostel a pé. O local era meio sujo e pouco organizado, mas era barato e por isso não reclamei. Entre os hóspedes, apenas homens. Cerca de 15 a 20 hóspedes. Todos homens, e nenhum parecia estar ali a turismo. Poucos falavam inglês.

Meus colegas de quarto eram quase todos do norte da África: marroquinos, tunisianos, argelinos... Logo que cheguei, um tunisiano que não falava inglês tentou se comunicar comigo. Mostrou-me alguns clipes de rappers tunisianos e franceses estilo ostentação que ele gostava de ouvir. Esse rapaz se mostraria um tipo curioso. Não saía do hostel e raramente saía da cama. Quando eu acordava cedinho para passear ele estava lá, deitado. Quando eu voltava, já à noite, lá estava ele novamente. Posteriormente ele protagonizaria uma situação bastante delicada.

Logo na minha primeira noite em Belgrado, enquanto caminhava por um calçadão central, fui abordado por um imigrante sírio clamando por dinheiro para ajudar sua filha bebê que passava necessidades. Recusei em um primeiro momento. Porém, a lembrança daqueles refugiados com quem compartilhei algumas boas horas de viagem me fez mudar de ideia, retornar ao local e oferecer algum dinheiro ao rapaz.

Minha primeira noite naquele hostel foi um lixo. Dormi cedo, pois estava bem exausto da viagem. Por pouco não me lembrei que aquela noite era o primeiro jogo da final da Copa do Brasil: Atlético X Grêmio. Dei graças a Deus de não estar no Brasil e principalmente em Minas. Não queria ter que aturar cornetas e foguetes. Mas isso teve seu preço. Às 01:30 da madrugada, acordei com o recepcionista do hostel gritando escandalosamente ao telefone. Ele xingava, esbravejava, e fazia isso andando de um lado ao outro, como se quisesse que todos ali escutassem seu show. A única coisa que consegui entender da conversa é que seu interlocutor se chamava Natasha, pois ele constantemente repetia: “Natasha! Natasha!”, antes de disparar nova artilharia.

Custei a dormir novamente. Fiquei matutando o que era pior: aquela mala sem alça berrando ou o foguetório e buzinaço do Barro Preto em dia de jogo decisivo.

E ainda vivenciaria outro problema naquele hostel (além do principal, que contarei mais adiante). Eu dormia na cama de baixo de um beliche, pois detesto dormir na parte de cima. Porém, logo depois chegou um hóspede que se alojou na parte de cima. Era um homem alto, levemente gordo, que fazia o beliche todo ranger sempre que se mexia. Tentei conversar com ele, perguntando se ele não gostaria de ficar embaixo, já que lhe causaria menos transtornos, pois era difícil para ele escalar até o alto. Mas ele falava muito mal o inglês e se manteve irredutível na decisão de permanecer em seu lugar original. E eu permaneci ouvindo aquele rangido insuportável toda vez que ele se mexia.

Belgrado, a capital sérvia, é uma cidade em que se respira política por todos os cantos. Até as lojas de souvenirs são politizadas. Bandeiras sérvias, bonecos e camisas de Vladimir Putin, canecas e jaquetas com motivos nacionalistas... A Sérvia como a conhecemos hoje nada mais é do que o último remanescente da antiga Iugoslávia, um país formado entre os anos 1920 e 1930 que reunia diversas repúblicas. No começo dos anos 1990, com o fim da Guerra Fria e o colapso do mundo comunista, teve início o processo de “balcanização”: a Iugoslávia começou a se dissolver, pois várias repúblicas proclamavam sua independência, em um processo mais ou menos similar ao que acontecia na União Soviética. A Eslovênia foi a primeira a se separar, ainda em 1991, em um processo relativamente pacífico. A Macedônia, mais ao sul, também se separou de forma pacífica. Porém, duas outras repúblicas conquistaram sua independência sob preços altíssimos: Croácia e Bósnia-Herzegovina. Isso se deu porque, nesses locais, havia uma elevada presença de sérvios, que era a etnia que controlava a Iugoslávia. Os sérvios que viviam na Croácia e na Bósnia-Herzegovina não suportavam a ideia de ter que viver sob outro governo.

Em 2003, a Iugoslávia deixa de existir oficialmente e passa a se chamar Sérvia e Montenegro, as duas únicas repúblicas que haviam restado. Em 2006, Montenegro declara sua independência por meio de um plebiscito e em 2008 foi a vez do Kosovo, uma região de população albanesa, se declarar independente da Sérvia.

A cena cultural em Belgrado também é bastante forte. Em todos os lugares se veem galerias de arte, teatros e ateliês. A cidade transpira história em cada monumento ás vítimas de alguma das várias guerras que assolaram a região, em cada memorial, em cada ruína dos prédios bombardeados pela OTAN em 1999. Naquele ano, os sérvios promoveram uma carnificina para impedir que a região do Kosovo se separasse. Em frente ao parlamento (um dos mais belos prédios da cidade), havia uma extensa faixa pedindo justiça, com as fotos de todos os sérvios vitimados pelos bombardeios da OTAN e pelos confrontos com as forças albanesas. Um dos passeios turísticos que peguei passava pelos bunkers usados para se proteger das bombas nazistas e terminava em uma adega com uma degustação de vinhos. Como não bebo álcool, aproveitei a experiência bem menos que os demais.

Mas o lugar mais fascinante é, sem dúvidas, o museu histórico da cidade, onde se acha o mausoléu do marechal Josip Broz Tito, que governou a Iugoslávia entre 1945 e 1980. Tito converteu-se em uma das mais populares lideranças socialistas, além de ser um ícone na luta dos países não-alinhados. Nos países da ex-Iugoslávia não é diferente. Tito é venerado entre os sérvios, que ainda exibem fotos suas em estabelecimentos comerciais. Apesar do carinho e da admiração que nutrem pelo seu antigo líder, a maioria dos sérvios não parece ser favorável ao retorno do socialismo. O discurso mais recorrente é o da resignação: Tito foi e sempre será um mito, o socialismo foi bom enquanto durou, mas já não serve mais. O importante agora é abrir os mercados e ganhar dinheiro.

A cada história da guerra que nosso jovem guia turístico contava da guerra no Kosovo, eu me lembrava de mim mesmo naquela época. Daquele distante ano de 1999, quando eu, do alto dos meus onze anos, abominava os Estados Unidos em todos os sentidos e com todas as minhas forças, desde o bombardeio ao Iraque em 1998. E extravasava meu ódio de diversas maneiras – uma delas, praguejando contra as boy bands americanas que estouravam na época. Lembro-me de ler nos jornais o quanto os mísseis da OTAN erravam seus alvos. Um deles chegou mesmo a atingir a embaixada chinesa, desencadeando verdadeira crise diplomática. E a Rússia, em seus últimos e gloriosos dias de Boris Yeltsin, ameaçando retaliar. Lembrava-me de meu ódio a Bill Clinton e às potências ocidentais – isso porque eu ainda não conhecia Bush e Trump! Mas também do meu choque ao ver as atrocidades cometidas pelos sérvios contra os albaneses. Na época minha avó até achou, no jornal, uma foto de um grupo de refugiados que tinha uma criança parecida comigo quando pequeno, inclusive até com uma jaquetinha vermelha igualzinha à que eu tinha.

Em uma de minhas muitas andanças pela cidade, visitei o prédio da universidade de Belgrado. Passeei pelos corredores das humanidades, tentei desvendar, nos murais de recados, o conteúdo da grade curricular do curso de História. E foi observando esses murais de recados que eu descobri que exatamente naquela noite estava acontecendo uma palestra com o historiador britânico Albert Hourani, autor do livro “Uma História dos Povos Árabes”. Tirei uma foto do anúncio e tentei achar desesperadamente o local. Do lado de fora do prédio se formava uma fila monstruosa para assistir a algum evento. Temi que pudesse ser a palestra de Hourani. Pedi informações a uma jovem que ajudava a organizar a fila. Ela me indicou em que direção ficava o prédio da palestra que eu pretendia assistir. Infelizmente, tão logo entrei e me sentei no auditório, foram menos de cinco minutos até que a palestra se encerrasse.

Uma pena.

De volta ao hostel, minha estadia estava ficando insustentável. Não gostava das pessoas, do ambiente, muito menos da máquina de lavar que era antiquíssima, custava a lavar e parecia que ia queimar minhas meias. Uma vez até suspeitei que um pé de meia meu que eu deixei secando na cama havia sumido. Perguntei ao tunisiano da cama ao lado se sele sabia de alguma coisa e ele acusou o rapaz que dormia na parte de cima do meu beliche. Senti raiva. Parece que existe alguma força do universo que age constantemente no sentido de separar meus pés de meia, mas era a primeira vez que essa força se materializava em uma pessoa.

Posteriormente, acabei descobrindo que na verdade não faltava nenhum par – eu que havia contado errado. Ou talvez faltasse, mas o sujeito que o subtraíra resolveu devolvê-lo sabe-se lá por qual motivo.

Em uma noite, após uma longuíssima andança, cheguei exausto ao hostel. Nem bem cheguei, fomos surpreendidos por batidas na porta. O homem dizia, em inglês: “police, open up!”. Era a temida polícia sérvia. O policial entrou em nosso quarto. Era um recinto mal iluminado, com a janela fechada por causa do inverno. Por isso ele adentrou nosso quarto com uma lanterninha e um olhar inquiridor. Poucas vezes na minha vida me senti como um criminoso – essa foi uma delas.

A autoridade pediu os passaportes de todos. Fiquei tão transtornado com a situação que custei a me lembrar de onde havia deixado o documento. Demorou um pouco até eu me dar conta que o rapaz tunisiano no beliche ao lado havia se escondido sorrateiramente sob as cobertas tão logo ouviu o policial bater à porta. E escondido ele permaneceu durante toda a abordagem. O policial também não o notou e, para a sorte dele, sua cama ficava numa posição relativamente discreta do quarto que não levantou suspeitas. Quem olhasse naquela direção veria apenas lençóis e cobertas desarrumados.

Após uma breve revista pelos outros quartos, o policial trocou algumas palavras com outros hóspedes, perguntou quem era o dono do estabelecimento (o sujeito da recepção não estava naquele momento) e depois devolveu nossos passaportes com relativa simpatia.

No dia seguinte, acordei decidido a sair de lá o quanto antes. Nesse mesmo dia, havia marcado um passeio turístico a Novi Saad, cidade do norte da Sérvia, na província de Vojvodina. Fomos eu, o guia, o motorista do carro e três turistas israelenses de meia-idade com as quais ainda mantenho certo contato até hoje. No caminho passamos por um mosteiro ortodoxo em meio às montanhas, bem como por um enorme monumento em homenagem aos partizans iugoslavos que morreram na resistência contra os nazistas. Em Novi Saad, comemos uma comida deliciosa e conversamos bastante. Sentar à mesa com um sérvio e três israelenses é uma experiência fascinante. Todos eles tinham lembranças de guerras para contar. Todos eles narravam suas experiências de usar máscaras de gás e se esconder em abrigos após o soar do alarme, e isso com a naturalidade de quem conta uma visita ao museu ou uma ida ao cinema.

Na volta para Belgrado, paramos em uma cidade minúscula e adivinhem! Mais uma degustação de vinhos... Dessa vez na casa de uma família que cultivava uvas já há muitas gerações. Na frente da casa, duas crianças brincavam com pistolas de plástico. Quem nos atendeu foi uma linda jovem de 24 anos que, como descobriríamos mais tarde, era a mãe dos meninos. Pedi para o guia turístico explicar a ela que eu bebia pouco por não gostar de álcool, e não porque o vinho não me agradasse. Não quis ser descortês. Ainda tivemos tempo para passear pela cidadezinha, que mais parecia uma cidade do interior de Minas: um colégio antigo, uma pracinha com coreto e uma igreja. Depois da missa, todos se reuniam na praça.

No caminho de volta para Belgrado, as turistas israelenses me contaram mais sobre Israel. Disseram que, por ser um país ainda jovem, todo israelense tem uma ascendência estrangeira. Uma delas era descendente de russos, outra de romenos e outra de marroquinos. Quando contei a elas sobre meu trabalho de mestrado, ficaram surpresas de saber que existia antissemitismo no Brasil nos anos 1930. E também ficaram surpresas ao saber que duas das mais importantes celebridades da TV brasileira (Silvio Santos e William Boner) eram judias.

Uma vez em Belgrado, o guia turístico se compadeceu de mim e me indicou um bom hostel não longe dali. Até ajudou-me a carregar minhas coisas até lá. O ambiente era mais limpo, a equipe mais agradável e os hóspedes mais amigáveis.

Minha estadia na Sérvia durou quase uma semana. Uma das semanas mais intensas de minha vida. A Guerra do Kosovo ainda estava tão gravada na minha memória que era quase como visitar algum cenário de minha infância. À exceção da Malásia e talvez do Paraguai, não acho que criei com qualquer outro país um laço tão grande quanto o que criei com a Sérvia. E devo dizer que até hoje nutro profundo carinho por aquela terra. Imaginar aqueles prédios por onde passei, aquelas pessoas com quem conversei, aquelas praças em que descansei e aqueles restaurantes em que comi, todos debaixo de bomba, é aterrador. Acho que uma das coisas boas de viajar é isso: aprendemos a ter empatia. Acho que não teria coragem de mandar bombardear Belgrado se eu fosse um estadista.

Em meu último dia na Sérvia precisei levantar bem cedo para outra longa viagem de trem, desta vez até Sofia, na Bulgária. Antes de partir, olhei rapidamente meu celular. Uma notícia me chocou: relatos de que o avião com a equipe da Chapecoense havia caído na Colômbia. Sem maiores detalhes.

Cheguei à estação com pouquíssimos minutos de folga para pegar o trem. Passaria a viagem inteira pensando naquele desastre aéreo. No caminho até a Bulgária, paramos na estação de Niš, cidade-natal do famoso imperador romano Constantino.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Balcanizando - Parte I: Na terra dos poetas

Era um domingo frio do outono de 2016 quando acordei bem cedo, já com as malas todas prontas e a roupa preparada para a viagem. Um dia antes havia comprado um pequeno livro introdutório sobre a história dos Bálcãs em alemão: “Geschichte des Balkans”, de Edgar Hösch.

Estava de volta à Alemanha desde o princípio de outubro, mas queria mais. Queria conhecer tudo aquilo que não tivera a oportunidade de conhecer da primeira vez em que estive por aqui. O meu destino era certo antes mesmo de deixar o Brasil: os Bálcãs. Aquela parte do mundo que frequentou assiduamente a pauta de todos os telejornais ao longo dos anos 1990, mas que, desde que se pacificou, já não aparece muito na mídia – ao menos não na mídia brasileira, embora as telenovelas brasileiras fossem uma constante por lá.

E por que justo os Bálcãs? Talvez porque ninguém que eu conheça tenha ido lá. Ou talvez pela própria fascinação de ver de perto países que, durante a minha infância, estiveram no epicentro da geopolítica mundial. Os conflitos de grande envergadura, as ameaças nucleares e os grandes ditadores dos quais o século XX foi profícuo nunca fizeram parte da minha realidade. Nasci em 1988, quando o mundo já estava quase se encaixando nos eixos (não que isso seja algo bom), quando a “História” já havia chegado ao fim (dá-lhe, Fukuyama!), na tênue fronteira entre os séculos XX e XXI. Conforme deixei claro em meu texto de janeiro de 2014 (“Do Consenso ao Crepúsculo”, http://hiperativo-categorico.blogspot.de/2014_01_01_archive.html), a Cortina de Ferro sempre fora, para mim, uma realidade tão distante quanto a Alemanha nazista; a Guerra Fria era tão pouco contemporânea minha como a Segunda ou a Primeira Guerras. De maneira que as guerras nos Bálcãs que desencadearam a desintegração da Iugoslávia nos anos 1990 eram o mais próximo que cheguei de entender o que era viver em um mundo em conflito.

Recordo-me bem de uma prova de História Contemporânea que fiz em 2012. Uma das questões afirmava que este momento em que estamos é o momento propício para o historiador começar a abordar o nacionalismo. Isso porque em um pós-89 cada vez mais marcado pela globalização, a nação e o Estado já não teriam mais o significado que possuíam nos séculos XIX e XX. Só em um contexto no qual as grandes empresas sobrepujavam as nações é que o nacionalismo poderia ser um objeto de quem estuda o passado. O historiador, como a coruja, só levanta voo quando todos já adormeceram.

Em plena desintegração do bloco socialista e triunfo do capitalismo, os Bálcãs ainda carregavam uma forte carga de século XX (nacionalismos, guerras, massacres, etc.) quando as águas do século XXI já tocavam os pés do restante do mundo ocidental.

Tragicamente, entretanto, em uma era de Putins, Trumps e Bolsonaros, tem sido mais fácil pensar que nós é que nos precipitamos em achar que o século XXI seria muito diferente. Ele não será.

O caminho de Munique até Ljubljana, na Eslovênia, foi maravilhoso. O trem cruzou a fronteira com a Áustria passando por paisagens de tirar o fôlego, até parar em Villach, a última cidade austríaca antes da fronteira eslovena. A ferrovia que unia dos dois países estava passando por reformas, então tivemos que pegar um ônibus. A paisagem eslovena não deixava por menos: grandes vales e montanhas cobertos por uma neblina que fazia lembrar aqueles contos de fadas. Cheguei exausto à estação de ônibus de Ljubljana – cansaço da viagem e de ter acordado tão cedo. Com bastante custo encontrei minha acomodação: um simpático hostel, bem pequeno e meio escondido, mas muito limpo e aconchegante.

A Eslovênia mais parece uma cidade do interior de Minas do que propriamente um país. Com pouco mais de dois milhões de habitantes, foi o primeiro país a se separar da Iugoslávia, em princípios da década de 1990. Diferente das outras repúblicas iugoslavas, a secessão da Eslovênia se deu de forma relativamente pacífica. E essa paz parece se desdobrar de diversas maneiras. "Ljubljana" significa "a amada". Na praça central de Ljubljana domina a estátua de um grande poeta nacional: France Preseren. Conforme deixou claro a guia turística, “nós, eslovenos, não celebramos os guerreiros, e sim os poetas; enquanto na maioria das capitais europeias você encontrará o monumento de um monarca ou guerreiro empunhando uma arma, aqui na Eslovênia você encontra um poeta segurando um livro”. Acima do poeta, uma musa com os seios descobertos. Tiveram que posicionar esse monumento estrategicamente atrás de uma árvore, pois os fiéis que deixavam a igreja depois da missa reclamavam de ter que encarar uma figura nua em plena praça.

Em minha primeira noite no país resolvi visitar o Metelkova Mesto, um famoso centro cultural underground. Quem me sugeriu foi o próprio funcionário do hostel. Disse que era pra eu não ter medo, pois, apesar de ser um lugar um pouco sombrio, era seguro.

Não consigo achar uma definição melhor para o Metelkova Mesto do que a FAFICH ou a FFLCH eslovena. Talvez até uma Rua Augusta, embora sem o mesmo glamour e com muito menos gente (ainda mais em baixa temporada). Em alguns pontos também me lembrou o Beco do Batman em São Paulo. Trata-se de um quarteirão relativamente afastado do centro da cidade, com algumas construções antigas nas quais funcionam bares alternativos. O local é repleto de exemplares de arte de rua: grafite, pichações e esculturas de sucata. Confesso que adentrei o ambiente com um pouco de medo. Estava tudo meio escuro, pois já era final de tarde. Aquilo tudo parecia um terreno abandonado. Algumas poucas pessoas estavam do lado de fora fumando ou bebendo. Na frente de uma das casas, mais iluminada, duas jovens conversavam. Resolvi entrar nessa. Lá dentro, um chão bem sujo, várias portas fechadas e mais trabalhos artísticos.

De uma dessas portas fechadas vinha um barulho de pessoas cantando, conversando e eventualmente batendo palmas. Devo ter ficado entre cinco e dez minutos refletindo se eu deveria ou não entrar. Chegava, me aproximava, tentava escutar melhor o que se passava, mas sempre acabava recuando. Fiquei com medo de interromper alguma reunião, alguma solenidade, algum evento particular. Mas ao mesmo tempo pensava que, se fosse algo tão restrito assim, haveria alguém para controlar a entrada. E não havia.

Cansei de pensar. Me deu vontade de ir ao banheiro. No frio, como não suamos ou suamos pouco, o líquido sempre insiste em sair por outros meios. O banheiro era quase tão sujo e grafitado quanto o da FAFICH. Tinha vários adesivos sobre prevenção de DST’s e orgulho LGBTT. Naquele momento, alguém abriu a porta do recinto de onde vinham os barulhos. Fiz minhas necessidades e tomei coragem para entrar.

Lá dentro, uma pequena sala muito escura. Um balcão cheio de guloseimas e bebidas, e bastante gente em pé e sentada. Não demorou para perceber que era um evento da comunidade LGBTT. Havia muitos casais de gays e lésbicas, além de transgêneros. O evento consistia em um recital de músicas e poemas (alguns em inglês) sobre as lutas diárias de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros diante dos preconceitos diários. Infelizmente, dada a lotação do local, fiquei em um ponto que não me permitia ver o palco. Imagino que devo ter ficado lá por uns dez ou quinze minutos, depois dos quais resolvi sair e retornar ao hostel.

Acho que naquela mesma noite, antes ou depois de visitar o centro cultural, fui abordado, enquanto comia na praça, por um jovem de uns vinte e poucos anos. Perguntou-me se eu gostava de rock, disse que era de uma banda de rock estoniana independente chamada “Illumenium” e que estavam fazendo um tour pela Europa para arrecadar fundos. Disse ainda que sua banda não dependia de patrocinadores e já havia tocado em vários países. Resolvi comprar um CD para ajudá-los, pois ele foi muito simpático e demonstrou bastante confiança nas suas palavras. Contei-lhe que queria muito visitar a Estônia e as demais repúblicas do Báltico, ao que ele respondeu: “you’re always welcome!”.

Ao longo de minha estadia em Ljubljana, ainda seria abordado várias vezes pelos outros membros da banda.

Em minhas andanças pelos becos, ruas e vielas daquela simpática capital, acabei conhecendo Martina, uma estudante de Letras da Universidade de Ljubljana – mesma universidade onde estudaram figuras tão díspares como o filósofo marxista Slavoj Zizek e a atual primeira-dama dos Estados Unidos, Ivana Trump. Martina me contou que o funcionalismo público esloveno é uma grande família, no sentido mais estrito do termo. Não há concursos públicos para nenhum cargo e a única maneira de ingressar é tendo contatos lá dentro. Ela inclusive disse que chegou a trabalhar em repartições nas quais todos os funcionários tinham o mesmo sobrenome. Como o país é muito pequeno e tem muito pouca gente, o funcionalismo acaba ficando restrito a uns poucos círculos de familiares e amigos. O fato de o homem cordial narrado em “Raízes do Brasil” não ser um monopólio brasileiro realmente não me surpreendeu. O que me surpreendeu foi tê-lo encontrado na Eslovênia.

Minha longa experiência no Sudeste Asiático me fez concluir que a Malásia ainda precisa encontrar seu Gilberto Freyre. Um país com três raças, que, apesar de conviverem harmonicamente (ao menos segundo o discurso oficial), praticamente não se misturam, precisa ter seu “Casagrande e Senzala”. De forma análoga, a Eslovênia precisa encontrar seu Sérgio Buarque de Holanda.

Martina ainda me falou sobre os poetas eslovenos do século XIX. Nesse quesito, a semelhança com o Brasil salta ainda mais à vista do que no caso do funcionalismo público. Aquele famoso roteiro de viver na boemia – estudar Direito – apaixonar-se por uma mulher mais rica – compor versos a ela sabendo que nunca iria conquistá-la – morrer pobre, de tuberculose, antes dos 35, também era seguido à risca pelos poetas românticos eslovenos. Inclusive, a alguns metros da estátua de France Preseren, em uma casa não muito distante, está o busto da amada que ele tanto desejou. Se você observar bem, ambos estão se olhando.

Em meu segundo ou terceiro dia na Eslovênia, o hostel em que estava recebeu uma leva de jovens ucranianos que pareciam ter no máximo 16 anos. Era uma equipe de judô que estava competindo num ginásio não muito longe dali. Impossível não lembrar-me dos meus tempos de judoca, das viagens que fazíamos, do quão tormentosa era nossa rotina. Dormir no chão frio de uma escola em pleno mês de junho, acordar cedo pra passar quarenta minutos na fila, esperando pra tomar banho gelado num banheiro que quase sempre alagava. Isso sem contar o assédio dos alunos veteranos sobre os mais jovens, ameaçando passar trotes ou fazendo piadas de duplo-sentido que nossa tenra idade não nos permitia entender. Que inveja das mulheres da equipe! Enquanto nós dormíamos em 30, elas eram no máximo quatro ou cinco, em uma sala tão grande como a nossa, além de ter o banheiro só pra elas. E quão sortudos eram aqueles judocas ucranianos de poderem se alojar em um lugar tão aconchegante durante suas competições!

Em meu último dia na Eslovênia resolvi fazer uma breve viagem à vizinha Croácia. Peguei o trem bem cedo para Zagreb, capital croata. Cerca de duas horas e meia de viagem, podendo ser um pouco mais, a depender da rigidez da imigração. Quando o trem para na fronteira, as polícias de ambos os países entram e vão pedindo os documentos de todos os passageiros. Alguma coisa em mim não pareceu bem aos olhos da policial croata. Olhou meu passaporte com um interesse incomum, como um comerciante que recebe uma nota falsa. Perguntou-me de onde eu vinha, para onde eu ia, o que ia fazer em Zagreb, se eu tinha acomodação reservada. Pediu para abrir minha mochila. Olhou meu caderninho de anotações, perguntou o que estava escrito. Respondi que eram os locais em Zagreb que eu queria visitar. Tornou a folhear meu passaporte. Perguntou se eu tinha mais bagagem, ao que respondi negativamente. Depois dessa revista completa, a jovem guarda devolveu meu passaporte e foi em busca de outra presa.

Aquilo foi um aviso: “Você não está mais na Europa Ocidental, você está nos Bálcãs!”. Me lembrou até aquela passagem do filme “Avatar”: “You are not in Kansas anymore, you are on Pandora!”. E isso porque a Croácia – assim como a Eslovênia – ainda faz parte da União Europeia. Depois que o trem seguiu viagem, me veio um aperto no coração: “Sérvia!”. No imaginário internético (memes, vídeos, páginas de Facebook), a Sérvia é sempre associada a um nacionalismo ferrenho, a militares fortes e bravos, ávidos por se lançarem sobre o primeiro estrangeiro desavisado que ousar avançar sobre suas fronteiras.

Mas a Sérvia era assunto para depois. Após uma viagem tranquila em um trem um tanto antigo – possivelmente alguma relíquia da ex-Iugoslávia comunista –, passei um dia agradabilíssimo em Zagreb após trocar meus euros por kunas, a moeda local. Voltei para Ljubljana naquela noite exausto. No dia seguinte, seguiria viagem para a Sérvia.