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domingo, 28 de julho de 2013

O curioso ano de 2013

Normalmente, fazemos a retrospectiva de um ano quando ele já está chegando ao fim. Entretanto, nesse ano de 2013 têm borbulhado tantos acontecimentos marcantes que eu simplesmente não consegui esperar até que ele acabasse. É possível que ao fim do ano seja necessário rever algumas de minhas conclusões precipitadas, mas isso não é um problema.

Pra começo de conversa, 2013 fechou um ciclo em minha vida, pois no último dia 9 de julho concluí minha graduação. Esse ciclo não começou em 2009, quando iniciei o curso de História, nem tampouco em 2007, quando comecei a minha longa e indecisa peregrinação pelo mundo acadêmico. Esse ciclo começou há exatos dez anos, no triste ano de 2003, quando ingressei no primeiro ano do ensino médio.

A verdade é que minha vida desde 2003 foi de incertezas: sempre soube mais ou menos qual caminho eu queria seguir, embora esse “mais ou menos” persistisse com a força de cem Hércules por todos esses anos. Passei nos dois vestibulares que tentei para dois cursos diferentes. Fiz um curso. Tranquei. Fiz o outro. Tranquei. Voltei ao primeiro. Tranquei novamente. Percebi que não era nada daquilo o que eu queria e prestei vestibular para História. Iniciei minha trajetória no curso em 2009, mas foi resolver uma indecisão para outra logo surgir: pra que área da História migrar? Foi a pergunta que me acompanhou ao longo de quase todo o curso. E só depois de defender minha monografia consegui me sentir seguro diante dela. Era a primeira vez, em dez anos, que eu podia afirmar, confiante, que eu sabia qual caminho queria trilhar.

Mas você sabe o que é escrever uma monografia? No meu caso, foi um exercício de intelecto e medo ao mesmo tempo. Em meu trabalho, dediquei-me a estudar a forma pela qual o Sr. Gustavo Barroso (importante liderança do integralismo brasileiro) analisava a ascensão do fascismo no mundo entre guerras. Ao longo de meus estudos, pude perceber que, para o dito autor, o fascismo seria o “espírito do século XX”, de modo que a ascensão do fascismo em diversas partes do mundo constituía, para ele, quase uma primavera, a ponto de ele proclamar: “nacionalistas de todos os países, uni-vos!”.

Pois bem. Alguns meses depois de começar a redigir meu trabalho, nossa cidade foi pega de surpresa pela divulgação de fotos de um trote na Faculdade de Direito da UFMG. Em uma delas, um aluno segurava uma caloura “fantasiada” de escrava com uma corrente presa ao seu pescoço. Em outra foto, três alunos faziam a saudação nazista enquanto um calouro estava amarrado a uma pilastra. Pra dizer a verdade, tais fotos não me chocaram tanto, até porque sempre soube que acontecem coisas bem piores em trotes de outras universidades e que, por isso mesmo, nem ao menos são fotografadas. Mas, aos poucos, diversos sites foram divulgando informações acerca de um dos alunos, apontando-o como membro de uma organização nacionalista de extrema-direita de inspiração fascista. Vi que o dito rapaz admirava Hitler, ridicularizava quem acreditava no Holocausto e até tecia elogios a importantes líderes fascistas, como Sir Oswald Mosley, líder fascista inglês. E eu, na minha santa ingenuidade, achando que Gustavo Barroso era uma figura caricata de uma espécie cujos principais exemplares haviam se esgotado nos anos 1930, fui obrigado a olhar para meu próprio trabalho de um modo diferente. A princípio, o que me motivou a escrever minha monografia foi ver o quanto o fascismo era louvado até mesmo no Brasil, em contraste com os dias de hoje, nos quais o termo “fascista” virou sinônimo de “truculento” e “repugnante”. Após o famigerado evento na vetusta casa, percebi que meu trabalho era bem mais atual do que eu julgava.

Os eventos da Faculdade de Direito foram uma bomba atômica sobre todos aqueles que haviam se acostumado a traçar uma fronteira entre a universidade e o resto da sociedade, associando esta à barbárie e aquela à civilização. De repente, todos percebemos, estupefatos, que os bárbaros estavam entre nós. Os bárbaros não eram os “vagabundos” sustentados pelo Bolsa Família, os “oportunistas” que ingressavam na universidade por meio de cotas nem os moradores de rua que nos assediavam pedindo esmolas. Os bárbaros haviam penetrado a “elite intelectual” do país e estavam ali mesmo, ao nosso lado, dentro dos muros da universidade, puxando calouros por correntes, prendendo seus colegas a pilastras e se orgulhando disso tudo. Roma havia caído e ninguém percebera!

Mas as coisas não pararam por aí. Pouco tempo depois dos trotes, veio à tona outra foto na internet: um skinhead neonazista enforcava um morador de rua em plena luz do dia na Praça da Savassi. “BH pirou!”, comentou um amigo de um amigo meu no Facebook. Foi isso mesmo o que pensei: BH pirou. Sempre achei que neonazistas fossem um fenômeno restrito ao estado de São Paulo e ao sul do país. Nunca tinha ouvido falar desses elementos por aqui. Fuçando pela internet, vi outras fotos de outros neonazistas de BH. Em uma delas, uma frase que me trespassou como uma estaca: “Belo Horizonte é fascista!”. Confesso que fiquei atordoado ao ler essa máxima. Consumiu-me, de súbito, um medo horrendo de que ela estivesse certa. E novamente eu olhava para minha monografia com um pé atrás, temendo pelas palavras que eu mesmo escrevia. Foi com profundo pesar que precisei admitir que a crença no “fascismo redentor” talvez não fosse mero passadismo. Pelo visto, os “ecos da Giovinezza” não haviam repercutido apenas no espaço, mas também no tempo.

Como fomos descobrir depois, o neonazista da Savassi conhecia o fascista do Direito, mas detestava-o. Chamava-o de “nazi-nerd”, ridicularizando-o por ser alheio à “realidade das ruas”. Aliás, acho que isso é inerente mesmo ao fascismo: uma arrogância tremenda que te faz desprezar tudo e todos que não são exatamente iguais a você, mesmo quando eles se esforçam por sê-lo. Voltemos nossos olhares ao Sr. Gustavo Barroso, sobre quem escrevi. Por maior admirador que ele fosse de Hitler e de sua política, não acho difícil visualizar um desfecho alternativo para a Segunda Guerra no qual tropas nazistas, após tomarem as colônias francesas e inglesas no Caribe, invadissem o Brasil desembarcando nos “verdes mares bravios” do Ceará, pisoteando o solo no qual o pobre integralista havia crescido.

E pra fechar com pompa o primeiro semestre desse estranho e curioso ano, no mês de junho nosso país foi sacudido por ondas de protestos de rua engrossados por aquela mesma juventude que todos acusavam de “acomodada”. A reação imediata da mídia foi desacreditar o movimento. Num segundo momento, quando viram que não ia ter jeito, decidiram aturá-lo. Por fim, criou-se um mantra repetido à exaustão em quase todos os telejornais na hora de noticiar as manifestações de rua. Segundo esse mantra, todo protesto começa pacífico, sem violência, democrático, lindo, maravilhoso, jubiloso, uma gracinha... até o momento em que uma minoria mascarada se infiltra e avacalha tudo. E eu, que já participava de manifestações de rua antes de ser modinha (i.e., antes de ser elogiado pela mídia), aos poucos fui me deparando com a curiosa cena de vários amigos no Facebook demonstrando todo o seu apoio às manifestações – aqueles mesmo amigos que me olhavam com desdém quando eu saía às ruas para protestar há anos atrás. Mas não posso fazer nada, não é? Se a mídia falou que os protestos são legítimos, então todo mundo protesta. Errado era eu de fazer isso antes de a mídia aprovar.

Acontece que aquelas pessoas que saíam às ruas não eram exatamente as mesmas que saíam antes de virar modinha. Havia muita gente nova, que nunca tinha estado ali. Aos poucos, começou a se falar em uma “primavera brasileira”. Meu Facebook nunca esteve tão esquizofrênico como naqueles dias: meus amigos de direita postavam mensagens alarmistas que davam como certo um terrível golpe comunista; meus amigos de esquerda arrancavam os cabelos de medo de um iminente golpe militar. Aliás, se existisse Facebook nos anos 1960, acho que ele estaria desse mesmo jeito na madrugada do dia 31 de março de 1964.

Não só esquizofrênico, o Facebook também estava estranho – tão estranho que quase não o reconheci. Por pelo menos duas semanas seguidas haviam desaparecido daquela rede social os homéricos quebra-paus entre torcedores rivais, as mais batidas mensagens de autoajuda, as fotos de baladas e de comida. Só se falava no “gigante acordado” que saía às ruas sedento por mudanças. Os telejornais do fim da tarde, acostumados a noticiar chacinas, estupros e tantas outras atrocidades, também mudaram: só se mostravam os protestos, nada mais. A sensação que tive naquelas duas semanas foi a de que o tempo estava suspenso, a normalidade fora cancelada. E eu não conseguia fazer nada direito; não conseguia terminar minha monografia, não me concentrava no trabalho e não conseguia sequer comer. Chegava em casa e ia direto para a internet acompanhar o caminhar dos protestos de rua. Com os olhos vidrados na televisão e no notebook, assistia ao desenrolar de todas aquelas passeatas sem acreditar direito que aquilo tudo era real. Foram dias eletrizantes, como eu raramente presenciara. Todas as noites eu ia dormir pilhado e custava a pegar no sono. Foram duas semanas quase mágicas para nosso país, embora não poucas vezes eu tenha me angustiado ao temer por meus amigos que estavam nas ruas, especialmente diante das informações desencontradas que circulavam pela internet.

Infelizmente, não pude participar de forma mais ativa da “primavera brasileira” porque outra primavera me preocupava: a “primavera fascista” dos anos 1930, da qual minha monografia tratava. Não obstante, das poucas vezes em que estive presente, pude notar algumas ocorrências até então inéditas para mim. Uma delas era a hostilidade quase doentia a todos os manifestantes ligados a partidos. Segundo algumas correntes internas de manifestantes, ali não havia partido, de modo que só bandeiras nacionais deveriam ser permitidas. Outro fenômeno frequente eram as palavras de ordem contra as cotas e programas sociais do governo, além dos clamores por um grande salvador da pátria que pudesse retirá-la do mar de lama no qual ela se afogava. Em suma: sem partidos, sem divisões, a nação acima de tudo, a espera por um grande líder. Não foi sem estarrecimento que percebi que aquela primavera começava a se parecer cada vez mais com a primavera que eu estudava.

E assim caminhou o primeiro semestre desse ano de 2013: o fascista do direito, o neonazista da Savassi, os ultranacionalistas das manifestações e eu, às voltas com minha monografia, que deveria tratar do passado, mas dialogava cada vez mais com o presente.

Mas um dia a Copa das Confederações acabou, as manifestações arrefeceram e a normalidade foi restabelecida. Voltou a rotina, voltaram as mensagens de autoajuda no Facebook e voltaram os acontecimentos sangrentos nos jornais do fim da tarde. A Copa das Confederações acabara, mas a Libertadores não. E aqueles que usavam as redes sociais para vibrar com os gols do Galo eram muitas vezes os mesmos que tachavam de “alienados” os usuários que haviam comemorado os gols do Neymar e do Fred na seleção brasileira. As manifestações não cessaram por completo, elas só deixaram de ser o centro das atenções. Mesmo com o fim da "primavera brasileira", tivemos eventos como a concentração de pessoas em frente à casa de Cabral, no Rio, e as ocupações da Câmara Municipal e da Prefeitura de Belo Horizonte. A diferença é que agora os manifestantes voltaram a ser os "vagabundos" que sempre tinham sido antes de o "gigante" acordar. Acabaram-se as regalias. Acabou a bajulação da mídia e a simpatia da opinião pública, acabou o consentimento dos motoristas presos no engarrafamento dizendo que "aquilo tudo é por uma boa causa", acabou o pessoal acenando das janelas dos prédios em apoio aos manifestantes. Se os filhos da classe média saem às ruas para protestar contra a FIFA e a corrupção, tudo bem. Agora, protestar contra o despejo de famílias carentes e exigir a revisão dos contratos com as empresas transportadoras já é vandalismo. Mas agora não adianta mais reclamar. Ano que vem tem Copa do Mundo, e quem sabe aí os protestos de rua recuperam o seu glamour.