Visualizações de página do mês passado

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Diários de quarentena - 26 de abril de 2020


O historiador brasileiro José Honório Rodrigues observou, em seu livro “Aspirações Nacionais” (1962), que a classe média brasileira se indignou mais do que influenciou. Tal indignação frequentemente se expressou – e segue se expressando –  por meio de um discurso contra a corrupção em prol da “recuperação moral” do país. Esse discurso, segundo o autor, nada mais é do que um instrumento da luta da classe média pelo poder, além de pretexto para “abafar os tolerantes nas lutas ideológicas e de pensamento”.

O autor ainda arremata: “É um caminho normal, no desvio histórico, que os indignados acabem indignos”.

Anos atrás, quando ainda cultivava o péssimo hábito de ler as caixas de comentários de portais de notícias, lembro-me de um comentário que dizia que Hitler matou muitos, mas pelo menos não roubou seu povo. Dias atrás voltei a ver esse raciocínio em um meme no Facebook: “Quando o presidente vira notícia por passar a mão no nariz e não do dinheiro do povo é porque estamos no caminho certo”.

O combate à corrupção é, para o brasileiro de classe média, um fim em si mesmo. Tudo bem matar milhões de judeus e fraquejar diante de uma doença que já matou mais de 200 mil em poucos meses, mas Deus nos guarde do horror da corrupção. 

Nos idos de 2013, quando o gigante começava a ensaiar seus primeiros passos, esse fetiche pela luta contra a corrupção sempre me pareceu uma piada ingênua. Mas com o gigante já crescido e descontrolado, a piada começa a inspirar cuidados. “Independência ou Morte”, de Pedro Américo, foi a obra que inaugurou o Brasil dos últimos duzentos anos. A obra que inaugurará os próximos duzentos certamente será um cidadão de classe média comemorando o fim da corrupção em meio aos escombros.

Para uma classe média historicamente obcecada pela moralidade, as eleições de 2018 foram um conto de fadas.

O itinerário de Bolsonaro até a presidência era o sonho de todo partido de esquerda brasileiro nos anos 1990: vencer as eleições estoicamente, em um partido pequeno, com pouco tempo de televisão, comunicando-se diretamente com o público, apelando a um discurso antissistema, atacando a Rede Globo e – cereja do bolo – sem financiamento privado de campanha.

Bolsonaro venceu, mas não veio sozinho. Trouxe consigo o Olavo-terraplanismo, que redunda na negação da pandemia, no elogio a teorias conspiratórias e outros absurdos propagados com enorme facilidade em redes sociais e aplicativos de mensagens. A disseminação desse obscurantismo força a esquerda a agarrar-se desesperadamente aos grandes veículos de comunicação como tábua de salvação. A luta pela mídia independente e por uma imprensa alternativa, típicas bandeiras da esquerda, coexiste sofrivelmente com a constatação de que, no mar da pós-verdade, a imprensa tradicional permanece um oásis de legitimidade.

A mídia se democratizou com as redes sociais. Hoje, até a sua tia pode formar opiniões sem sair de casa. As eleições também se democratizaram com o financiamento público de campanhas. Graças a isso, até o PSL chegou à presidência. Tudo se democratiza, mas quem menos se beneficia é a esquerda.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Diários de quarentena - 15 de abril de 2020

Em 1935, o acadêmico norte-americano Harold Lasswell escreveu que uma das maiores esperanças para a compreensão entre os povos seria o advento de uma ameaça global que colocasse o mundo inteiro em perigo.

Tal ameaça não viria de um ditador megalomaníaco com ambições expansionistas, mas da natureza. Certamente alguma pandemia letal. Ao ameaçar igualmente todos os seres humanos, independente de crenças ou ideologias políticas, tal pandemia exigiria a união de todos os países em prol de um objetivo comum. Colocar preferências políticas ou rivalidades históricas acima desta luta condenaria a humanidade. 

O livro de Lasswell - "World Politics and Personal Insecurity" - faz parte de minha lista de leituras para o doutorado. Quando o li, em janeiro ou fevereiro deste ano, quase tomei nota destes trechos. Infelizmente, achei que não seriam relevantes para minha tese e ignorei-os. Nem mesmo a epidemia de covid-19, que já grassava pela China naqueles meses, me convenceu a copiá-los. Afinal de contas, naquele momento o vírus ainda parecia uma ameaça distante. 

O mundo do entre guerras em que Lasswell escreveu tais linhas era propício a tudo, menos à união. 

Com Hitler na Alemanha e Mussolini na Itália, a Europa estava em lua de mel com o fascismo. A União Soviética controlada pelos bolcheviques, por um lado, e as democracias liberais (Estados Unidos, Reino Unido e França), por outro, formavam os outros polos desta complexa configuração de poder. Mas no mar de incertezas do período entre guerras, Lasswell não via a esperança para a paz mundial em instituições nem em chancelarias. Caberia a algum vírus ou bactéria letal a nobre e diplomática tarefa de obrigar a humanidade a optar entre a união e o extermínio. 

Como bem disse nosso exausto ministro da saúde hoje, ao anunciar sua saída iminente: "O vírus não negocia com ninguém. Não negociou com o Trump, não vai negociar com nenhum governo".

Quando a disciplina de Relações Internacionais se arrastava em calorosas discussões entre o pessimismo dos realistas e o idealismo dos liberais, Lasswell demonstrava grande sensibilidade para temas considerados de menor grandeza pelos analistas internacionais. Cultura, identidades, ideias, conceitos e aspirações: ao valorizar esses domínios, o autor antecipava preocupações que só entrariam no rol da disciplina de Relações Internacionais nos anos 1980. 

Por outro lado, os prospectos de Lasswell para a união mundial não vingaram.

"O vírus faz parte de um plano maligno da China!" - grita um.

"O vírus não passa de uma gripezinha!" - vocifera outro (não raro, o mesmo que proferiu a primeira frase!).

"O vírus vem sepultar a ordem neoliberal!" - conclui apressadamente um terceiro.

"O vírus marca o início do mundo pós-Ocidental!" - reflete o quarto.

O mundo não deu as mãos para combater o vírus, e dificilmente o fará. A batalha de narrativas que se cristaliza ao redor dos recentes eventos nos mostra que Lasswell subestimou Aristóteles. Animais políticos que somos, nunca perdemos a oportunidade de politizar até mesmo uma pandemia. 

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Diários de quarentena - 7 de abril de 2020


No final de 2016, em minha segunda passagem pela Alemanha, combinei de me encontrar com um amigo em um bar.

Enquanto aguardava por ele, pedi à balconista uma Coca-Cola. Seja pelo barulho ambiente, por um erro de pronúncia ou mesmo pela incredulidade da atendente ao ver que alguém em um ambiente daquele consumiria algo não-alcoólico, ela acabou me trazendo uma cerveja Corona. Antes mesmo que eu pudesse comunicar o equívoco ela já abriu a tampa, forçando-me assim a me contentar com a cerveja mesmo odiando bebidas alcoólicas. Custei a beber metade da garrafa. Quando fomos embora, o resto que não consegui tomar já estava quente.

Resignei-me àquela Corona calado, assim como me resigno ao atual.

Quando se vive em quarentena, tudo que vem de fora dos muros de sua casa é um intruso. O jornal do dia, as compras encomendadas, o ovo de páscoa pedido no aplicativo, os boletos para pagar: tudo que cruza o batente do portão é um potencial portador do temido vírus espreitando a melhor oportunidade para te atacar.

Na noite de domingo para segunda sonhei, pela segunda vez desde a quarentena, que eu era condenado por um crime que não cometi. Uma menina que nunca vi na vida me acusou de agredi-la quando eu tinha onze anos de idade, pelo que fui sentenciado a 20 ou 30 anos de cadeia. No primeiro sonho fui condenado à morte. O lugar de minha execução era nada menos que a cozinha de minha casa. O oficial de justiça ainda me deixou escolher entre o enforcamento ou a decapitação – sugeriu o enforcamento, alegando ser indolor.

Lembro-me de ter me angustiado muito mais no segundo sonho do que no primeiro, e nisto não há nada de surpreendente. É muito mais fácil se imaginar morto do que se imaginar recluso em uma cela por 30 longos anos.   

Em algum dia entre os dois sonhos tive outro sonho no qual eu também era injustiçado.

Sonhei que morava em uma república em Belo Horizonte, e em dado momento uma das meninas com quem morava entrou comendo um pedaço de pão e tomando um copo de café. Com uma naturalidade desconcertante, minha colega de apê pediu que eu pagasse pelo seu lanche lá na padaria. Diante de minha visível incompreensão, ela retrucou (erroneamente) que eu não contribuía com nada na casa: não fazia compras e não limpava as áreas comuns, de modo que pagar pelo seu café e pelo seu pão seria uma forma de me redimir pela minha negligência.

Não sou bom em interpretar sonhos, mas creio que estes não sejam tão difíceis. Enquanto passo a quarentena no conforto de casa, muitos se expõem – seja porque precisam trabalhar, seja porque sequer tenham uma casa. Talvez até a tenham, mas sem qualquer conforto. Fazer-me injustiçado por alguns momentos é a ingênua estratégia que o inconsciente achou para tentar reparar as injustiças da vida real.

Ser historiador é fazer uma incursão por todas as misérias humanas enquanto se pergunta (com medo da resposta) se você também viverá o suficiente para presenciar alguma.

Entro em sala de aula, dou bom dia aos meus alunos, falo sobre pestes, guerras, fomes, crises e medo com a frieza de um perito a analisar um cadáver. O alarme soa e eu me vou, não sem antes me desculpar por não ter conseguido terminar o conteúdo. Mas não faz mal. Na próxima aula haverá tempo de sobra para continuar falando de mortos e injustiçados com a serenidade que só o distanciamento temporal me permite. Até que um belo dia o horror se abate sobre meu próprio tempo, e eu sinto raiva de saber que daqui a 500 anos haverá um professor de História narrando minha desgraça com a mesma serenidade e leveza com que eu narrava a dos outros.

domingo, 5 de abril de 2020

Diários da quarentena - 4 de abril de 2020

O muro de minha casa é o túmulo da imprensa nacional.

É muito alto e muito próximo do telhado. Resta ao pobre jornaleiro, todas as manhãs, calcular muito bem onde arremessar o jornal para que ele caia exatamente no pequeno espaço que existe entre o muro e o telhado – o que nem sempre acontece. Hoje avistei um desses jornais que jaziam no alto do muro e empurrei-o de lá com uma vassoura. Pensei: vou recolhê-lo e logo depois lavar bem as mãos.

Nem foi preciso. O jornal era de outubro de 2019, quando o vírus sequer passeava pelo nosso país, nem mesmo pelo noticiário internacional.

O jornal, já roto e maltratado pela ação do sol e da chuva, era inofensivo. Contemplei-o por alguns instantes com um misto de nostalgia e inveja. Afinal, era como se ele viesse de outra época, de uma época feliz: sem Covid-19, sem toques de recolher, sem eventos esportivos suspensos nem ruas vazias. Em menos de um mês essa pandemia virou nossas vidas do avesso com enorme violência. Hoje olhamos para poucos meses atrás com o mesmo saudosismo enviesado com que um idoso se lembra de sua infância.

Não havia uma só notícia boa na primeira página, a única pela qual passei os olhos. Uma delas anunciava um artigo de opinião: “Reinações de Jairzinho”. Dizia que o presidente se elegera como excêntrico e continuaria pagando de excêntrico sabe Deus até quando. Outro artigo de opinião alertava para a direita democrática, esclarecida e tolerante que se vendeu para o terraplanismo olavista ao apoiar [Jairzinho] Bolsonaro.

Mas nem o circo lamentável da política me impediu de sentir saudades. Saudades de quando nosso maior problema era Jairzinho (não que hoje ele não seja mais). Mais saudades ainda de quando a classe média pseudomoralista venerava Joaquim Barbosa em lugar do “capitão”.

Hoje recusei, pela segunda ou terceira vez, um boteco virtual com amigos. Têm certas coisas na vida que ou se faz direito, ou não se faz. Se chegamos ao ponto de ter que marcar confraternizações por videoconferência, então já não há mais motivo para confraternização. Falou-se o dia inteiro na “Live do Jorge e Mateus” no YouTube: uma noite inteira de músicas que nos fazem lembrar os tempos de faculdade. Também recusei. Já tive minha dose diária de nostalgia ao encontrar o jornal de outubro de 2019.

O jornal também me contemplava, mas com pena. Ele cumprira sua função: noticiara os eventos daquele dia de outubro de 2019 com maestria invejável. Se não foi lido, não era culpa sua. Ele nada tinha a ver com o jornaleiro que não acertou o vão entre o muro e a telha, nem tampouco com o pedreiro que projetou um muro tão alto. Do fundo de suas páginas rasgadas e desbotadas, o jornal me olhava com um olhar inquiridor: e você, cumprirá a sua função?

Não soube o que responder, mas fiz a minha parte. Joguei o jornal na reciclagem como quem envia uma carta para o futuro. Façamos nossos votos para que dentro em breve aquelas mesmas folhas, redivivas, estejam anunciando o aniversário do fim da pandemia, e não um aumento exponencial no número de casos.