O historiador brasileiro José Honório Rodrigues observou, em
seu livro “Aspirações Nacionais” (1962), que a classe média brasileira se
indignou mais do que influenciou. Tal indignação frequentemente se expressou –
e segue se expressando – por meio de um
discurso contra a corrupção em prol da “recuperação moral” do país. Esse
discurso, segundo o autor, nada mais é do que um instrumento da luta da classe
média pelo poder, além de pretexto para “abafar os tolerantes nas lutas
ideológicas e de pensamento”.
O autor ainda arremata: “É um caminho normal, no desvio
histórico, que os indignados acabem indignos”.
Anos atrás, quando ainda cultivava o péssimo hábito de ler
as caixas de comentários de portais de notícias, lembro-me de um comentário que
dizia que Hitler matou muitos, mas pelo menos não roubou seu povo. Dias atrás
voltei a ver esse raciocínio em um meme no Facebook: “Quando o presidente vira
notícia por passar a mão no nariz e não do dinheiro do povo é porque estamos no
caminho certo”.
O combate à corrupção é, para o brasileiro de classe média, um
fim em si mesmo. Tudo bem matar milhões de judeus e fraquejar diante de uma
doença que já matou mais de 200 mil em poucos meses, mas Deus nos guarde do
horror da corrupção.
Nos idos de 2013, quando o gigante começava a ensaiar seus
primeiros passos, esse fetiche pela luta contra a corrupção sempre me pareceu
uma piada ingênua. Mas com o gigante já crescido e descontrolado, a piada
começa a inspirar cuidados. “Independência ou Morte”, de Pedro Américo, foi a
obra que inaugurou o Brasil dos últimos duzentos anos. A obra que inaugurará os
próximos duzentos certamente será um cidadão de classe média comemorando o fim
da corrupção em meio aos escombros.
Para uma classe média historicamente obcecada pela moralidade,
as eleições de 2018 foram um conto de fadas.
O itinerário de Bolsonaro até a presidência era o sonho de
todo partido de esquerda brasileiro nos anos 1990: vencer as eleições
estoicamente, em um partido pequeno, com pouco tempo de televisão, comunicando-se
diretamente com o público, apelando a um discurso antissistema, atacando a Rede
Globo e – cereja do bolo – sem financiamento privado de campanha.
Bolsonaro venceu, mas não veio sozinho. Trouxe consigo o
Olavo-terraplanismo, que redunda na negação da pandemia, no elogio a teorias
conspiratórias e outros absurdos propagados com enorme facilidade em redes
sociais e aplicativos de mensagens. A disseminação desse obscurantismo força a
esquerda a agarrar-se desesperadamente aos grandes veículos de comunicação como
tábua de salvação. A luta pela mídia independente e por uma imprensa
alternativa, típicas bandeiras da esquerda, coexiste sofrivelmente com a
constatação de que, no mar da pós-verdade, a imprensa tradicional permanece um
oásis de legitimidade.
A mídia se democratizou com as redes sociais. Hoje, até a
sua tia pode formar opiniões sem sair de casa. As eleições também se
democratizaram com o financiamento público de campanhas. Graças a isso, até o
PSL chegou à presidência. Tudo se democratiza, mas quem menos se beneficia é a
esquerda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário