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quarta-feira, 10 de agosto de 2016

No princípio, eram os mosquitos

São duas e quinze da manhã de um verão como outro qualquer.

Horácio acorda abanando a mão esquerda, ainda meio sonolento, tentando capturar um dos vários mosquitos que o azucrinam. Todo verão é a mesma história: os mosquitos se reúnem em massa nas redondezas da casa de Horácio, aproveitando a fartura de locais para se reproduzirem e alimentarem. Horácio não os suporta, nunca os suportou. E com verões cada vez mais quentes e infestações cada vez maiores, seu ódio cresce mais e mais.

- Já não durmo mais – diz Horácio a Cléber, o balconista da padaria, na manhã seguinte.

- É a mosquitada de novo?

- Sempre eles.

Antes mesmo dos idos de janeiro, Horácio não sabia mais o que fazer. Não dormia direito, em consequência não trabalhava direito e não se relacionava direito. Não demorou muito até que ele cultivasse verdadeiro ódio dos pequenos animais, declarando-lhes uma guerra de morte.

Chegava em casa exausto do trabalho todos os dias, mas não dava o braço a torcer. Matava todos os mosquitos que apareciam. Com o jornal, com um livro, com a raquete, com as duas mãos e às vezes até com uma, caso a outra estivesse ocupada.

Cada dia era uma luta nova, vários mosquitos mortos e a sensação do dever cumprido. Faltavam poucos minutos para as duas da madrugada quando Horácio finalmente caía na cama, exausto de tanto matar mosquitos. No dia seguinte, o ciclo se repetia.

Os dias, que sempre foram iguais para Horácio, tornavam-se mais iguais do que nunca. O ódio lhe subira à cabeça. Nada o tiraria de lá.

Dias havia em que ele saía do trabalho mais cedo na esperança de que o elemento surpresa poderia conspirar a seu favor. Aos poucos, Horácio foi perdendo sua civilidade, deixando-se dominar por comportamentos animalescos. Corria pela casa derrubando enfeites e mobília atrás dos mosquitos. Dava gritos de alegria a cada corpo dilacerado que via na parede ou em suas mãos, mas também urrava de ódio a cada mosquito que lhe escapava, perseguindo-o com ainda mais brutalidade.

Bastava ver mosquitos ou ouvir o zunido ao seu redor que ele salivava de raiva. Sentia nojo, repulsa, asco daquelas pequenas criaturas que o infernizavam.

- Canalhas! Canalhas! – gritava, erguendo e balançando o braço, sempre que os mosquitos lhe escapavam pela janela. Voltem aqui! Lutem como homens!

Traçava planos mirabolantes para surpreendê-los atrás da geladeira, embaixo do filtro ou na porta menor do guarda-roupas. Discutia, consigo mesmo, estratégias de ação. Bolava fugas e contra-ataques infalíveis, ou nem tanto. Declamava discursos de ódio abominando seus inimigos e conclamando à luta:

- Essas criaturas abjetas sem decoro não podem prosseguir em sua ação dissolvente, caftinizando-nos! Cumpre esvurmá-los. Urge escorraçá-los, vapuleá-los, zurzi-los, vergalha-los, zupá-los, azorraga-los, vergastá-los, taganteá-los, chicoteá-los, relhá-los!

Imaginava complôs que explicassem a origem de tamanha repugnância em forma de vida. Dizia que foram enviados por seu colega de trabalho invejoso. Depois mudava de ideia e afirmava categoricamente que eram obra de sua ex-namorada. Depois, desiludido, repetia consigo mesmo que aquilo não era possível, pois que sua ex já não pensava mais nele. Os mosquitos eram, isso sim, obra daquela mulher com quem tivera um caso no ano passado e que lhe trouxera mil desgostos.

E a cada novo desafeto que fazia, Horácio achava uma maneira de enquadrá-los: o açougueiro que subiu o preço da carne; o novo chefe que o perseguia no serviço; a vizinha de trás que caçoava de seus ataques nervosos; o sobrinho do carteiro que urinava no batente da porta.

- Sim... Foram eles! Foram todos eles! Em conluio ou separadamente! Não há outra explicação!

As horas de sono, cada vez mais exíguas, tornaram-se quase inexistentes. A batalha contra os mosquitos exigia vigília constante. Horácio chegava para trabalhar todos os dias com os olhos vermelhos de raiva e sono. Quase não se comunicava com os colegas de repartição. Usava o intervalo para cochilar e sonhar que exterminava mais mosquitos.

Cléber, percebendo o nível a que chegara o ódio e a paranoia do freguês, demitira-se do emprego na padaria e começara a vender artigos para combater mosquitos: raquetes eletrizadas, velas de citronela, repelentes naturais e industrializados, incensos milagrosos e sprays importados.

Artigos para matar mosquitos! Que dádiva.

Horácio tornou-se seu freguês número um. Toda semana fazia uma limpa na loja, que ficava estrategicamente localizada a poucos metros de sua casa. Chorava de emoção ao ver a eficiência com que as raquetes eletrizadas exterminavam vários mosquitos de uma só vez:

- Máquinas de matar formidáveis! – declarava, orgulhoso.

Cléber ganhava, no novo serviço, quase o triplo do que ganhava na padaria. A ambição de Horácio não conhecia limites. No auge de sua loucura, gastava mais da metade de seu orçamento com produtos para exterminar mosquitos. A cada semana Cléber vinha com uma novidade:

- Raquetes eletrizadas, seu Horácio!

- Já tenho, Cléber! Você mesmo me vendeu.

- Não essas. Essas são eletrizadas de outra forma.

- Como?

- Mais potência. E têm menos espaços na tela, tá vendo? Nem os miudinhos escapam.

- Bom! E o que mais?

- Esse spray importado da Groenlândia... Mata quatro vezes mais que o nacional!

- E desde quando há mosquitos na Groenlândia, Cléber?!

- Ora, Horácio... Já não os têm por causa desse spray!

- Fala sério?

- Seguramente.

- Levo cinco.

- E o novo repelente natural?

- À base de que?

- Um óleo extraído da seiva de uma árvore raríssima. Só tem na Guiana.

- Funciona?

- Alguma vez já ouviu um cidadão da Guiana reclamando de mosquitos?

- Não, mas também nunca conheci guianense algum.

- E se conhecesse certamente ele não reclamaria.

- Certo. Mas levo apenas três.

- E a tela especial de assar mosquitos que chegou ontem? Não quer ser o primeiro a levar?

- Mas o spray e a raquete já não servem para isso?

- Claro, homem! Mas enquanto a raquete dá choque e o spray envenena, essa tela queima lentamente. Dá até pra ver a agonia do mosquito se contorcendo!

- Hum... Jura?! – Horácio revirava os olhos de prazer ao imaginar a cena.

- Palavra! Não vai perder essa, vai?

- Não, levarei uma para testar.

- Perfeito.

Nair, o agente de saúde do bairro e velho amigo de Horácio, com quem mantinha longas conversas na padaria todas as manhãs, prometeu visitá-lo no final de semana para ver como poderia solucionar o problema dos mosquitos. Encontrou, batendo à porta de Horácio, o aguerrido Cléber. Estava com um incenso novo que fazia os mosquitos explodirem em pleno voo.

- Quando vários mosquitos explodem juntos parece até uma mini-queima de fogos! – caçoou o vendedor com Nair.

Horácio saiu à janela, convidou-os a entrarem e ofereceu café. Dispensou a oferta de Cléber – já não tinha mais dinheiro – e ouviu Nair com atenção:

- É só lacrar a caixa d’água e eliminar os recipientes que acumulam água no seu quintal que os mosquitos desaparecem – garantiu o experiente agente de saúde. Lacro a caixa d’água hoje e na segunda volto para eliminar os criadouros de larva no jardim. Há também um pé de romã no terreno ao lado que precisa ser podado. As romãs atraem muito esses mosquitinhos, sabe? Algumas delas acabam caindo aqui no seu quintal.

- Perfeitamente! – concordou Horácio.

Não demoraram mais que meia hora na casa de Horácio. Na segunda, conforme o prometido, Nair voltara à casa do amigo para ajudá-lo a retirar os recipientes com água, bem como limpar os restos de romã espalhados no seu quintal e podar o pé de romã ao lado. Após um mês e meio sem mosquitos em casa, Horácio começou a surtar.

- Onde estão? Onde estão? Sei que estão aí sim... Estão preparando um ataque surpresa quando eu estiver desprevenido. Onde estão?! Saiam, covardes! Saiam!

Não entrava em sua cabeça que aquelas criaturas repugnantes haviam simplesmente sumido. Já não se contentava em ter os mosquitos longe. Não! Era necessário matá-los. Era necessário dilacerá-los. Precisava exterminar todos, um por um, seja com as mãos, com as raquetes, com o spray ou com qualquer outra ferramenta mirabolante que o velho Cléber tivesse a lhe oferecer. Tamanha repugnância não podia ficar impune.

- Eu quero vê-los mortos! Todos eles, sem exceção! – salivava de ódio Horácio enquanto procurava desesperadamente pelos mosquitos. Na ausência destes, atacava uma pluma que se soltava, uma folha que caía, um restinho de poeira que se erguia no ar... Qualquer coisa que tivesse a mínima chance de ser um mosquito.

Não mais contente do que Horácio estava Cléber, que via as vendas caindo vertiginosamente. Seu grande freguês simplesmente o abandonara. Fazia quase dois meses que Horácio não dava mais as caras no estabelecimento. Situação preocupante. Foi quando se lembrou do que dissera o Nair: as romãs atraíam os mosquitos. Resolveu então comprar algumas romãs no hortifrúti para espalhar seus restos ao redor da casa de Horácio na calada da noite, sem ninguém suspeitar. Uma vez espalhadas as romãs, os mosquitos voltariam e seus lucros também.

Mas Nair visitava Horácio quase diariamente a fim de assegurar que o amigo estivesse seguindo fielmente as recomendações. E sempre que via os restos de romãs espalhados pelo pátio jogava-os no lixo, não sem antes dar uma bela bronca em Horácio, que jurava não ter conhecimento da origem das frutas.

O arranca-rabo silencioso entre Cléber e Nair se desenrolou por dias e mais dias: Nair pacientemente jogava fora todos os restos de romã que Cléber espalhara na noite anterior, mas Cléber nunca dava o braço a torcer. Pelo bem de seu negócio. Não demorou muito até que Clóvis, velho amigo de Cléber e colega de balcão na padaria, se demitisse do emprego de balconista e abrisse um hortifrúti bem ao lado da loja de Cléber. Era farto o hortifrúti de Clóvis: maçãs, laranjas, abacaxis, mamões, bananas e – especialidade da casa – romãs.

Romãs! Que dádiva.

Cléber tornou-se seu freguês mais assíduo. Quanto mais Nair limpava o terreno de Horácio, mais Cléber comprava de Clóvis. Nesse ritmo, não demorou muito até que os mosquitos voltassem a infernizar Horácio – e que este último voltasse a comprar de Cléber.

O pobre Horácio estava no auge da obsessão anti-mosquitos. Já destruíra quase metade da mobília de casa em suas caçadas. Chegou a ficar nove dias seguidos sem aparecer, mas pouco se importou quando foi demitido. Já não colocava o trabalho como prioridade na sua vida. Assegurar a integridade de seu lar contra a ameaça entomológica era muito mais importante. A perigosa combinação entre desemprego e compras cada vez mais frequentes no Cléber logo endividou Horácio. E foi nesse momento que, ao lado do hortifrúti de Clóvis abriu a filial de uma agência de empréstimos. Era daquelas que apareciam a todo o momento fazendo propaganda em programas de auditório. “Sem consulta ao SPC! Sem consulta ao SERASA! Sem consignado! Sem frescura e sem dor de cabeça: só dinheiro!”.

Dinheiro fácil! Que dádiva.

Seu gerente era Cláudio, um discreto frequentador da mesma padaria na qual Horácio tomava café e na qual Cléber e Clóvis trabalhavam antes de se tornarem empreendedores. Horácio foi seu primeiro cliente. Em menos de um mês já devia à agência mais do que nunca antes havia devido em toda a sua existência.

E assim se processavam as coisas naquele miolo da cidade. Para cada problema o seu ator, e para cada ator o seu papel. Os mosquitos atacavam Horácio, que se endividava com a agência de empréstimos para comprar do Cléber, além de pedir ajuda a Nair, que descartava os restos de romã, fazendo Cléber comprar de Clóvis.

Foi quando, numa manhã de sábado, Nair passou mal logo após tomar seu habitual café da manhã na padaria. Foram cinco dias acamado até vir a óbito, para a tristeza da esposa, dona de casa, e das duas filhas. A história nunca ficou muito bem esclarecida, apenas para alguns poucos. O quadro de Horácio, por sua vez, só piorava: tanto o financeiro como o psiquiátrico. Ele sequer chorou a morte de Nair. Pelo contrário: passara a suspeitar que o falecido amigo também estava por trás dos mosquitos. Todos aqueles conselhos de gastar menos energia matando mosquitos e mais energia limpando o quintal o deixaram com o pé atrás:

- Pois como não irei gastar minha energia exterminando esses crápulas?! São eles a culpa da minha insônia, foram eles os culpados pela minha demissão, são eles que aparecem para zunir no meu ouvido irritantemente justo quando quero dormir, e são eles que me deixam todo empolado de coceiras. Só mesmo um dementado como o Nair pra ficar passando a mão na cabeça de mosquito. Pois que o diabo o carregue!

Com Nair misteriosamente fora do caminho, Cléber lucrava como nunca, pois os mosquitos atacavam como nunca e já não gastava tanto como antes para repôr as romãs. Cada dia um novo produto mais mortal aparecia em sua venda, seduzindo o pobre Horácio em sua cruzada ensandecida contra o exército em miniatura.

Os lucros eram tão fabulosos que Cléber convidou o amigo Clóvis para comemorar. Foi uma noite inteira de muita bebida, cigarro e conversa jogada fora. Altas horas da noite, já embebedado de cerveja, vodca e licor, Cléber foi surpreendido por Clóvis, igualmente bêbado, a lhe apontar uma arma. Gelou de medo o pobre comerciante:

- Clóvis, que porra é essa? Abaixa essa arma!

- Tudo sua culpa, Cléber! Tudo sua culpa! – repetia Clóvis, balançando levemente a cabeça em sinal de reprovação.

- Culpa minha o que, estais louco? Abaixa essa arma! Você tá bêbado! Vamos... Vamos que te levo em casa.

Mas Clóvis o afastou de um só movimento, mirando com dificuldade na testa do amigo:

- Já não tenho o que dar de comer para minhas filhas. Já não consigo pagar minhas contas. Os gastos com cartão de crédito, já não consigo saldá-los. Estou quebrado, Cléber! Quebrado! E a culpa é toda sua!

Cléber ficava cada vez mais confuso. E Clóvis seguia com seu gesto de reprovação:

- Você acha que ninguém sabe, Cléber? Você acha que ninguém sabe que o malandro da padaria que envenenou Nair recebeu ordens suas? Você acha que ninguém sabe que o dinheiro torrado pelo Horácio com você pagou a bala que matou o Nair? Você acha?!

Cléber, até então amedrontado, retomou a compostura e tentou se justificar:

- Ao diabo, Clóvis! Você bem sabia que com aquele sacripanta no caminho meu negócio ia pro brejo. Se eu deixasse o sujeito vivo, em pouco tempo já não ia haver mais mosquito pra infernizar o Horácio! Você via o tanto de romãs que ele jogava no lixo a cada vez que visitava o infeliz? Até das mais bem escondidinhas o filho da mãe conseguia dar cabo.

- Não se faça de desentendido! Você quis se livrar do Nair, mas bem lá no fundo o que queria mesmo era se livrar de mim. Sem o Nair no caminho eram menos romãs no seu orçamento, mais lucro pra você e menos vendas pra mim. Acha que eu não percebi?!

- Hã?! – Cléber finalmente se tocava do que estava acontecendo ali.

- Pois agora é a minha vez de me livrar de você.

Um estrondo rasgou a noite. Assim como a morte de Nair, a de Cléber nunca foi muito bem esclarecida, exceto para alguns poucos. Clóvis tentou adquirir a loja de artigos contra mosquitos que pertencia a Cléber, mas foi em vão. As dívidas contraídas no período de fartura não o deixaram prosseguir em seu intento inicial. Desesperado, logo precisou recorrer aos empréstimos de Cláudio. Foi falar pessoalmente com ele, quase ao final do expediente, na esperança de que seus laços de amizade o fizessem conseguir um empréstimo em condições mais vantajosas. Cláudio o recebeu muito bem. Entre um café aqui e uma piada ali, a noite caiu, a agência se esvaziou e ambos se viram a sós lá dentro. Foi quando Cláudio abandonou as cortesias e abriu o jogo. Levantou-se da mesa, dirigiu-se à janela, acendeu um cigarro e emendou a seguinte ladainha, enquanto contemplava o horizonte:

- No princípio, eram os mosquitos. Ah... Os mosquitos! Os mosquitos que atrapalhavam Horácio, que pediu ajuda a Nair, que atrapalhou Cléber, que matou Nair, que ajudava Clóvis, que matou Cléber, com quem se endividava Horácio, que pedia dinheiro emprestado a Cláudio, mas que agora, com Cléber morto, já não pede mais. Pobre Cláudio! Onde encontrarei outro Horácio de quem arrancar o couro? Pobre Clóvis! Já não tem mais amigos, só dívidas.

O corpo de Clóvis só seria encontrado na noite seguinte, nos arrabaldes da cidade. O caso também nunca foi devidamente esclarecido, exceto entre alguns círculos restritos. Em pouco tempo, Cláudio adquiriu os estabelecimentos de Cléber e Clóvis. Daí em diante, era ele quem fornecia os equipamentos para matar os mosquitos, era ele quem distribuía a romã no pátio de Horácio e era ele quem fornecia os empréstimos para Horácio continuar levando a cabo sua heroica e destemida cruzada.