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sábado, 22 de março de 2008

Tipos ideais: o cinéfilo

Hoje resolvi retomar o tema dos tipos ideais, seja porque já faz um tempo que não escrevo, seja porque minha tentativa de dedicar um post aos micareteiros não logrou êxito - e eu, então, continuei sentindo a necessidade de alfinetar alguém. Acredito que esta é uma semana propícia para escrever, dado o atual estágio evolutivo de minhas forças sentimentais...
O tipo ideal aqui retratado será o do cinéfilo - essa figurinha quixotesca que habita os principais sebos, cinemas alternativos e mostras de cinema de todo o país.
O cinéfilo é, antes de mais nada, aquele sujeito ao qual não se pode nem sugerir o nome de um filme comercial que ele já te olha com aquela cara de bunda e diz: "ah...esse aí é comercial não é?" ou, no caso dos mais agressivos, "desculpe, não assisto a filmes comerciais". Pois bem, o cinéfilo é dotado de uma doce e ingênua ilusão que o faz pensar que os diretores de filmes alternativos - estes, suas grandes paixões - são apenas figuras com muito dinheiro e pouca coisa pra fazer que, num belo dia, se levantam de suas poltronas e dizem: "estou entediado...acho que vou gravar um filme!". Em suma: esses diretores não fazem qualquer questão de lucrar com seus filmes - só os grandes diretores das super-produções cinematográficas se atrevem a saciar sua fome capitalista de lucros por meio da produção de filmes.
O cinéfilo ideal adentra o cinema munido de um incrível complexo de superioridade, que o faz olhar do alto todos os outros que ali estão, seja por diversão, seja pra namorar ou porque simplesmente não arrumaram outro programa para o final de semana. Aos olhos dele, toda aquela gentalha, com um baldão de pipoca e um copo de Coca-Cola, de mãos dadas, acompanhada da família ou dos amigos e conversando animadamente, não passa de um monte de "profanadores do templo da sétima arte", incapazes de "enxergar a beleza oculta em um filme", "insensíveis à essência da arte de se contemplar uma produção cinematográfica". Em suma: só ele se enxerga com um propósito nobre ali, naquela noite.
Logo que entra, o cinéfilo senta - claro - bem lá na frente, a fim de se livrar dos incrédulos. As primeiras fileiras, além de manterem-no bem próximo da tela, são, segundo ele, propícias a que possam fluir suas "reflexões e elucubrações a respeito da obra" - note que um cinéfilo raríssimas vezes chama o filme de filme, salvo quando vai esculachá-lo, o que, como veremos, não raro acontece.
O cinéfilo não pode jamais se ocupar de outras atividades enquanto assiste a um filme. Não surpreende, então, o fato de ele considerar uma afronta pessoas que comem ou namoram durante a exibição. Tanto é assim que, quando ele leva sua namorada não-cinéfila ao cinema, esta não pode nem pensar em segurar sua mão ou lhe pedir um humilde beijo alegando carência, no meio do filme. Tem mesmo é que se contentar em ver o seu amor de olhos vidrados em cada cena: ou com a cabeça levemente inclinada para frente - como quem é submetido a sessões de hipnose - ou com a mão segurando o queixo - apenas pra bancar de intelectual. E ela que não se atreva a lhe fazer qualquer tipo de pergunta a respeito do filme, pois que será duramente repreendida com um tapão na coxa, seguido ou não da dura: "presta atenção que você entende!", geralmente pronunciada com voz baixa e ríspida, tudo para puni-la pelo pecado de ter interrompido um cinéfilo durante sua apreciação - note também que os cinéfilos não assistem a filmes; eles apreciam-nos, ou, quando a obra é muito boa, degustam-na).
O acender das luzes seguido da exibição dos créditos finais é, diria eu, a parte mais traumática da convivência com um cinéfilo ideal. É nesse momento que ele esbanja seu acurado saber a respeito do tema, seja para fazer comentários inteligentes e confusos, que nem ele mesmo compreende - comentários estes expressos em alto e bom som pra que todos os demais ouçam e se embasbaquem com seu QI cinematográfico - seja para criticar e expressar sua insatisfação, alegando que esperava mais daquele diretor, "dados seus vários sucessos em produções como..." e ele se põe a citar todos os filmes do indivíduo em questão, tudo pra assegurar e provar seus conhecimentos, e talvez afrontar qualquer potencial divergente.
Um cinéfilo ideal saindo de uma sala de cinema é como uma mulher descendo da balança: raríssimas vezes está satisfeito. Por vezes ele alega que viu alguns erros de gravação que passaram desapercebidos pelos diretores. É comum também que ele reclame que o jogo de luz e sombra nas cenas mais soturnas do filme não seguiu os padrões adotados pela maioria dos diretores daquela geração, ou ainda que o grau de abstração dos diálogos entre figurantes e coadjuvantes foi deveras que ofuscou qualquer possível identificação protagonista-telespectador, fundamental para uma apreciação saudável da obra. Seguem-se a essas importantes observações algumas comparações entre o papel dos protagonistas naquele filme e suas atuações passadas. Ao não-cinéfilo que ouve essa série de fundamentais e relevantes considerações acerca do filme, só resta duas opções: passar por cinéfilo e concordar categoricamente com tudo aquilo que ele diz; ou ter a cara de dizer, sem qualquer escrúpulo: "ah, pois é... acho que depois que voltei do banheiro entrei na sala errada."
Sinceramente, não sei que conclusões tirar a respeito dessa figura. Só quero deixar claro que não pretendo, de modo algum, fazer desse texto uma auto-crítica, tendo em vista que sou freqüentador assíduo dos cinemas alternativos de Belo Horizonte. Ademais, também tenho minhas birras com aquela gente que assiste a um filme movida unicamente pelo seu estrondoso sucesso de bilheterias ou porque o ator/atriz principal é um/uma gostoso/gostosa (tal justificativa seria válida em caso de um filme pornô, mas isso já é assunto pra outra discussão). É a gente dessa laia que poderíamos dar o nome de anti-cinéfilos, por terem um comportamento diametralmente oposto ao deles - mas igualmente bizarro.
Mas anti-cinéfilos existem aos montes, e não sei se um estudo detalhado deles se faz interessante. Afinal de contas, como outrora disse um sujeito (que vem a ser, ninguém mais ninguém menos que eu mesmo): a graça de um artigo está escondida nas coisas que se escondem de nós (espero que isso faça algum sentido ao leitor).