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quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

A saga de N. (II)

E eis que N. era um jovem e exímio pintor, cujas mãos, mais do que pintar, faziam maravilhas com o pincel, a tinta e a tela. Seu talento era tamanho que atraía pessoas de todas as regiões ao redor para contemplar e adquirir suas obras, não se importando em pagar por elas preços exorbitantes, de tão lindas que eram. Duas pessoas tinham especial apreço pela obra de N.. Admiravam-no tanto, que até o contrataram como seu pintor particular.

Uma dessas pessoas era um senhor que morava sozinho e vivia em uma casa sombria. Todo final de semana, N. ia até sua residência e lhe pintava um quadro, cujo tema era sempre sugerido pelo senhor. Este, no entanto, tinha um gosto quase obsessivo por cores escuras e sóbrias, como o cinza e o preto. Sendo assim, sempre que julgava que o artista tinha abusado um pouco das cores vivas, o senhor o repreendia, batendo em sua mão esquerda com um martelo. Repetia tal atitude religiosamente, sempre que notasse qualquer manifestação de cores vivas no quadro, por mais discreta que fosse.

Por outro lado, N. também era o pintor particular de uma senhora que habitava uma casa amplamente iluminada pela luz do sol, à beira de uma simpática lagoa. A senhora gostava muito de cores vivas e pulsantes em seus quadros, de modo que, sempre que N. fizesse um uso significativo de cores tristes e escuras, ela o punia com uma martelada na mão direita. Por desprezível que possa parecer, a senhora nunca mostrou escrúpulos por tal atitude

N. sempre se resignava diante desses maus tratos. Sua mão doía e se danificava cada vez mais, mas cada vez mais ele procurava agradar a seus respectivos patrões. Quanto mais ele escurecia as pinturas do senhor, no entanto, mais exigente este se tornava e mais marteladas lhe dava; quanto mais clareava as obras da senhora, mais exigente se lhe apresentava e mais marteladas eram necessárias.

N. chegou aos seus quarenta anos de idade com ambas as mãos completamente deformadas e inutilizadas. Tão logo souberam que ele não mais poderia exercer seus ofícios de pintor, seus senhores correram para sua casa a fim de se vingarem da desfeita. Os dois gostavam tanto dos quadros de N. e confiavam tanto nele, que não podiam aceitar o fato de terem sido por ele traído de forma tão grosseira. Inconformados que estavam, começaram a espancar o artista. Não cessaram até que o tivessem matado.

Uma vez sepultado o cadáver de N. no quintal dos fundos, o senhor da casa sombria convidou a senhora da casa iluminada para uma xícara de chá. Ambos viriam a se casar três meses mais tarde.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Henrique, o historiador confiante

Esse é um dia na vida de Henrique. Henrique tem dezenove anos de idade e é estudante do primeiro período de História na UFMG. Todos os dias ele acorda cedo e vai pra aula, feliz, contente, confiante de que aquele será mais um dia de muito aprendizado.

No primeiro horário, sua primeira aula: Tópicos em História das Minas setecentistas: história da mineração diamantífera no Arraial do Tejuco, com um dos maiores especialistas no assunto. Ele se senta na primeira fileira, assiste à aula atentamente, anota, questiona, pergunta – até aquilo que já sabe – e tece comentários extremamente produtivos, repetindo com outras palavras o que já foi dito pelo professor. Ao fim da aula ele aborda o professor, atrasando ao máximo sua saída da sala. O conteúdo da conversa pode ser o mais diverso: desde o pedido de uma bibliografia adicional sobre o tema ministrado naquela aula até uma crítica edificante sobre algum artigo publicado pelo professor.

No intervalo entre as duas aulas Henrique não sai da sala; prefere se preparar mentalmente relendo os textos que serão o tema da matéria do próximo horário: Estudos de História Econômica de Minas Gerais: análise historiográfica dos cadernos de contabilidade das mercearias das Minas setecentistas. O procedimento adotado nessa aula é exatamente o mesmo, com a pequena diferença que agora Henrique tece menos comentários: por motivos ainda não conhecidos pelo garoto, o professor costuma ignorar suas falas, cortando-as com uma certa frequência. Mas Henrique é confiante e não desiste. Ao fim da aula ele aborda o professor. Dessa vez, o tema é bastante específico: está pleiteando um emprego no Museu do Pão de Queijo, iniciativa levada a cabo pelo docente. A fim de conseguir uma vaga, ele se mostra extremamente solícito para com o professor, carregando seus livros e sua pasta, comprando-lhe café na cantina e mandando-lhe e-mails no final de semana, que raramente são respondidos.

À tarde, Henrique almoça e vai para a biblioteca. Passa a tarde estudando os mais variados temas: lê artigos acadêmicos sobre as origens da pobreza em Minas Gerais, analisa a precariedade das condições sociais de Vila Rica no ápice da mineração, estuda a vida miserável que muitos homens livres levavam na capitania e se surpreende ao ler as terríveis condições nas quais muitos dos escravos mineradores trabalhavam. Henrique ainda acha tempo para estudar um pouco de francês, língua que ele acredita lhe conferir certo distintivo sócio-intelectual; o rapaz optou pelo francês por considerar o espanhol muito fácil, o inglês a língua do imperialismo e o alemão a língua do nazismo. Curiosamente, uma das poucas questões com as quais Henrique teve algum problema no vestibular foi uma que dizia respeito à guerra de independência na Argélia.

Às seis, Henrique tem sua última aula no dia: Teares e Pocilgas: uma análise da complementaridade entre a indústria têxtil e a criação de suínos nas Minas setecentistas. Henrique já está com sono, mas não se entrega fácil. Segue ligado na aula, mas infelizmente não tem mais paciência para abordar o professor no final. Tudo bem – ele pensa – , fica pra próxima.

Henrique volta pra casa ao final de mais um dia na universidade. Ao chegar em sua rua, busca se esquivar desesperadamente de um pedinte que lhe suplica moedas para comprar um pão. Olha com um certo nojo as condições nas quais os outros moradores de rua se instalam, embaixo de uma marquise, ao mesmo tempo que procura apertar o passo: precisa dormir cedo. No dia seguinte, Henrique tem uma defesa de tese de mestrado para assistir cujo tema é de seu interesse: Mais do Mesmo: história dos vícios e da dependência química nas Minas setecentistas. Ele entra em seu quarto, arruma sua mochila, deita e descansa um pouco. Reflete sobre os mendigos que viu e os que estudou; conclui que da próxima vez tomará um caminho mais longo do ponto de ônibus até seu prédio, a fim de evitar os pedintes.