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segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Aflições de Augsburg

2003: tudo me remete a esse ano. Tudo aquilo que sou, que deixei de ser, o que quero e o que não quero ser: todas essas perguntas me levam necessariamente a esse ano que permanece como um marco fundador na minha vida. Naquele ano o Brasil ganhava seu primeiro presidente oriundo das classes trabalhadoras, os Estados Unidos se mostravam cada vez mais dispostos a atacar o Iraque, o celular começava a se popularizar e aquele famoso som do ICQ ressoava por todas as internets discadas do país nos fins de semana; naquele ano uma jovem branquela metida a skatista conquistava fãs ao redor do mundo com seu estilo rebelde e sua retórica anti-Britney Spears, ao passo que aqui no Brasil figuras horrendas como Jammil e uma Noites se destacavam no carnaval. Enquanto isso, no interior de Minas Gerais, nascia mais um rebento da geração Kazaa: o então jovem de 15 anos de idade que agora vos fala.

De 2003 em diante minha vida se apegou à internet. Essa ferramenta estranha, que chegara à minha casa há seis anos atrás e cuja finalidade eu então mal podia compreender, se tornava de repente um gênero de primeira necessidade. Para alguém que não tinha muitos amigos, não bebia, não dançava, não saía e sequer conseguia conversar com uma menina, a internet era uma bênção. “Mas e os livros, Marcelo? Você não gostava de ler?”. Não. Meu gosto por livros foi interrompido em 2003 porque foi esse o ano no qual comecei a me preocupar com o vestibular. A partir de então, tomei ojeriza de tudo aquilo que fosse relacionado ao conhecimento, ao saber, à instrução... Justo no ano em que eu mais deveria ler e me informar eu me afastei de tudo isso. E foi justamente nesse momento que a internet me acolheu.

Sendo assim, grande parte do que sou hoje devo a ele: o Kazaa. Quem usou essa valiosa ferramenta para baixar músicas na internet há de se lembrar que ele tinha uma opção de buscar músicas por idiomas. Aquilo para mim era a glória! Uma lista enorme com os mais diversos idiomas à minha disposição: era só escolher uma língua, procurar e baixar qualquer música que viesse. Não importava se a música era rap, pop, rock ou romântica, o mais importante era o idioma. As minhas línguas preferidas eram o turco, o chinês, o árabe e o russo. Enquanto meus dias de semana se resumiam a acumular cada vez mais medo do vestibular, meus finais de semana eram consumidos baixando músicas que ninguém ao meu redor ouvia. No ICQ minha estratégia era semelhante. Até hoje me lembro da menina russa que morava na Síria e estudava literatura japonesa com quem eu conversava frequentemente. Hoje, 8 anos depois, eu vejo que essas experiências não foram de todo insignificantes. Minhas duas estadias no exterior me provaram isso muito bem. Por ter ouvido música de tantos países e em tantos idiomas, e por ter conversado com gente de tanto lugar, hoje, quando encontro alguém de algum país, por mais longínquo que seja, sempre tenho um assunto, algo para comentar: uma banda, um cantor, um ator, um personagem histórico ou político daquele país... E muitos são os que se surpreendem ao ver que um brasileiro conhece um cantor ou o presidente do país dele.

Sim, hoje digo com orgulho que todos aqueles sábados e domingos não foram simplesmente desperdiçados.

Mas minha vida seguiu e o destino me levou para a Malásia. O que foi a Malásia? Até hoje tento compreender. Naquele ano de 2004, porém, eu sabia bem o que ela significava: vitória! O menino que ouvia músicas estranhas em idiomas esquisitos finalmente teria alguém para conversar, visto que estaria em uma terra estranha com um idioma esquisito. Uma terra de maioria islâmica com minorias chinesas e indianas era o palco perfeito para meu triunfo: estava prestes a deixar para trás um país com o qual nunca me identifiquei (até porque pouco o conhecia) para ir a um lugar onde eu me sentiria em casa. Um jovem que queria ser monge budista na infância de fato jamais iria se identificar com um país de micaretas e axés, carnavais e bebedeiras. A Malásia era minha terra prometida. Senti-me retornando à terra natal onde nunca estive.

E eis que deu tudo errado. Os detalhes desse desastre são complexos, contraditórios e caóticos demais para explicar aqui. Nem mesmo em minha cabeça eu consigo formular direito como e porquê essa empreitada se esfacelou em mil pedaços. Diria apenas que chegando lá eu percebi quão ridícula era a ideia de um jovem do interior de Minas, descendente de índios, portugueses, alemães e espanhóis, que nunca tinha saído do seu país, querer encarnar um indiano, malaio ou chinês. Simplesmente não fazia sentido! Nem para mim, nem para eles. Esperei chegar a um país islâmico onde todos se voltavam para Meca cinco vezes ao dia, ouviam música religiosa e conclamavam à jihad contra o grande satã; o que de fato encontrei foram jovens fanáticos por futebol inglês que ouviam Britney Spears e Jennifer Lopez e sequer sabiam a diferença entre um muçulmano sunita e um xiita. Eles esperavam receber um brasileiro bom de bola e bom de papo, que fazia sucesso com as mulheres e estivesse interessado em se divertir; o que encontraram foi um enguiço introvertido que se mostrava muito mais interessado em visitar mesquitas, aprender a recitar o corão e entender o jogo de forças na política malaia do que em comentar o desempenho dos jogadores brasileiros no futebol europeu. E eu, que passei minha infância lendo relatos dos exploradores europeus sobre o choque cultural que sentiam nas terras recém-descobertas, fui aos poucos percebendo que em tempos de Kazaa, ICQ e globalização, o choque cultural é justamente o contrário: o ocidental quer ser como o oriental e vice-versa, e eles continuam não se entendendo (como no tempo dos grandes descobrimentos).

Até então minha vida no Brasil tinha sido uma tentativa constante de forjar para mim mesmo uma identidade cultural que nada tinha a ver comigo: músicas cazaques, vietnamitas e dos mais longínquos confins da Ásia; quando finalmente cheguei aos confins da Ásia, vi quão escabrosas e artificiais eram tais tentativas. Até porque se nem os malaios ouviam música malaia, o que eles pensariam de um brasileiro ouvindo-as?

O resultado disso foi que, após um ano na Malásia, retornei a um país no qual nunca havia estado. Não obstante, aquela mentalidade obsoleta pré-intercâmbio que reverenciava os outros países, as outras culturas e os outros povos permanecia de certa forma bem viva na minha cabeça. Isso me levou a optar pelo curso de Relações Internacionais na hora do vestibular. Claro, né? Ficar um ano exterior fazendo intercâmbio e depois voltar para estudar Relações Internacionais é um dos maiores clichês acadêmicos que já vi. O intercambista volta ao Brasil e opta pelas RI sob a justificativa mequetrefe de querer ajudar as criancinhas da África e salvar as vítimas de minas terrestres no Camboja, pouco se importando com o fato de que no Brasil também há criancinhas que precisam de ajuda.

O curso de Relações Internacionais me se mostrou para mim como um retorno da “era Kazaa” com outras roupagens. Toda aquela alienação, aquele fascínio pelo estrangeiro, por outros países, outras línguas e culturas havia retornado sob um disfarce acadêmico. O curso de Relações Internacionais foi para mim o que a Restauração foi para a Europa pós-napoleônica. Não! Acho que ele se assemelhou mais à revolução de 1830 na França: substituiu uma monarquia por outra de nome e dinastia diferentes, mas que pouco mudou justamente pelo simples fato de continuar sendo uma monarquia.

Na esteira dos acontecimentos, o curso de História foi o responsável por enxotar o Luís Felipe que havia em minha vida. Eu vi na História a oportunidade de abandonar essa mania que sempre tive de me interessar somente por assuntos internacionais. Passara 17 anos de minha vida com a nuca doendo de tanto se inclinar para olhar o que se passava lá fora. Quando me decidi pela História e passei no vestibular, finalmente conquistei a oportunidade de colocar meus pés no chão e olhar ao meu redor.

Mas aí veio a reação. A cavalo, imbatível, veio Luís Bonaparte. Inconformados com essa mudança de rumo, os setores mais conservadores da minha mente começaram a disparar impropérios contra o curso de História. Diziam que ele era viciado, chamaram-no de “curso de uma nota só”. E a partir daí suas exigências e sua ousadia só cresceram. Publicaram um manifesto ridículo intitulado “O homem doente da FAFICH” no qual deixaram claro, entre outras exigências pertinentes, sua aversão ao apego febril que muitos no curso de História da UFMG têm pelo estudo unicamente de questões mineiras. O ápice da reação foi o dia 4 de outubro de 2011: o dia em que parti para meu intercâmbio na Alemanha. A aristocracia ultraconservadora que insistia em não deixar meu cérebro convenceu-me de que era melhor ir para fora – de novo. Me convenceu de que eu devia estudar algo diferente, longe de escravos e mineração, longe de preocupações típicas da “história mesmice”.

Fugir do trinômio quadrado perfeito “escravismo, barroco, minas setecentistas” para estudar um tema como “Primeira Guerra Mundial” é, nos padrões da UFMG, um ato revolucionário. Assim, essa aristocracia internacionalóide, saudosa dos tempos das Relações Internacionais, manobrou seus argumentos de uma forma tal que eles passaram a ser os progressistas! Afinal, não é de praxe estudar apenas história do Brasil na UFMG? Não é revolucionário trazer temas novos relativos à história mundial? “Sendo assim” proclamava a aristocracia saudosa do pré-2004 “inclinem-se para a história do mundo vocês que são revolucionários, pois estudar história do Brasil é ser conservador nos padrões da UFMG!”.

Tinha então uma situação delicada: se eu optasse por dedicar-me à história do Brasil, seria um revolucionário por dentro e um reacionário por fora; se eu me dedicasse a algum tema relativo à história de outros países, seria um reacionário por dentro e um revolucionário por fora. Tentei, por meses e meses a fio, estabelecer uma solução de compromisso entre essas duas tendências que se digladiavam. Algumas duraram muito, outras muito pouco, mas todas fracassaram.

É justamente por essas razões que esse intercâmbio na Alemanha se mostrou como um dos episódios mais decisivos da minha vida. Minhas expectativas antes de vir para cá eram as maiores, bem maiores do que o dobro de todas as expectativas que tinha naquele mês de junho de 2004, antes de embarcar para a Malásia. Servirá esse intercâmbio para reforçar minhas convicções “revolucionárias-por-fora-e-reacionárias-por-dentro”? Ou servirá ele como um catalisador para mais uma revolta “revolucionária-por-dentro-e-reacionária-por-fora”? Não haverá aí caminho para uma conciliação de forças?

O atual estado de coisas sugere que a segunda opção é a mais provável. Temas como Segunda e Primeira Guerra Mundial são bem legais e fascinantes, principalmente para quem estuda História, e eu não sou exceção. Acontece que, estudando temas tão bisonhos como a Primeira Crise do Marrocos sinto-me como alguém chegando atrasado e de mãos vazias a uma festa para a qual não foi convidado. Kaiser, sultão, rei da Inglaterra e ministro francês... Como eu posso me enxergar nessas pessoas? De que maneira elas me dizem respeito? Esses temas me são tão estranhos quanto as músicas curdas, coreanas e mongóis que eu ouvia na minha adolescência.

E mais: que acadêmico europeu sério, em sua sã consciência, daria crédito a um pesquisador brasileiro que se mete a estudar um tema assim, tão alheio à história do Brasil? Quem na Europa quer ouvir o que um brasileiro tem a dizer acerca da Primeira Guerra Mundial (a menos, é claro, que seja algo relacionado à participação do Brasil no conflito – o que particularmente nunca me interessou), quanto mais da Crise do Marrocos? Isso sem contar que ao longo da minha pesquisa fui percebendo que muito, mas muito já foi publicado a respeito desses eventos. Tanto já se falou e se escreveu sobre isso que me vejo incapaz de dar contribuições mais significativas ao assunto. Quero estudar um tema no qual eu possa descobrir coisas novas, falar coisas que ninguém nunca antes falou... E não seguir caminhos já traçados milhares de vezes.

Sim, é assim que vejo a atual situação: a “reação-para-dentro-e-revolução-para-fora” está novamente perdendo espaço para a “reação-para-fora-e-revolução-para-dentro”. Isso me deixa feliz. Caso escolha trabalhar com um tema ligado à história do Brasil, finalmente poderei dizer com orgulho que, enfim, sepultei a “era Kazaa”.

Ao longo de minhas visitas à biblioteca da universidade um tema em especial atraiu minha atenção: a historiografia nazista. Não me refiro à historiografia sobre o período nazista, mas sim à historiografia que o regime nazista engendrou: quem eram e o que pensavam os historiadores que defendiam o regime nacional-socialista, qual era a visão de História que eles tinham e de que forma eles refutavam as duas visões de mundo predominantes até então – a doutrina comunista e o capitalismo. Esse é o tema que mais tem me atraído para uma possível pesquisa. Acho fantástico estudar as tentativas ao longo da história de se achar outro caminho, outra via possível ao comunismo e ao capitalismo, aos EUA e à URSS. No “Mein Kampf” Hitler deixa claro à exaustão o quanto despreza o comunismo e o capitalismo, e como os considera duas forças que, longe de se oporem, se aproximam.

Mas não apenas estudar a historiografia nazista, pois isso seria perpetuar a “era Kazaa”. Acho pertinente fazer um estudo comparado com a historiografia integralista no que tange ao teor anticomunista e anticapitalista das obras. Integralistas como Plínio Salgado e Gustavo Barroso têm obras sobre a história do Brasil sobre as quais nunca tinha ouvido falar e que parecem bem interessantes como objeto de estudo, principalmente se comparadas com a historiografia nazista. O fascínio que o nazismo despertou em muitos brasileiros como sendo uma alternativa viável ao comunismo subversivo e ao capitalismo imperialista é um objeto de análise que me agrada. Encontrei, na biblioteca da universidade de Augsburg, livros do “Reichsinstitut für Geschichte des neuen Deutschlands”, uma instituição criada pelo regime nazista para formular uma visão da História compatível com a nova ideologia. Seu grande mentor, Walter Frank, possui várias obras (já descobri 10 de seus livros no Bundesarchiv em Berlim) com tal intento. Os livros do “Reichsinstitut” foram escritos por diversos intelectuais aliados ao regime e tratam muito mais do antissemitismo do que do anticapitalismo ou anticomunismo. Vez ou outra, porém, eles sempre exploram o fato de Karl Marx ser judeu e a aparente inclinação desse povo ao comércio. Assim, minha hipótese é a de que na raiz do anticomunismo e anticapitalismo da historiografia nazista estava o antissemitismo, ao passo que na historiografia integralista as duas primeiras ideias eram mais fortes do que a última.

Creio, portanto, que o historiador deve se enxergar em seu objeto. Temas como o imperialismo alemão não permitem que eu me enxergue neles (e só fui perceber isso após já ter dado início às minhas pesquisas). O grande desafio que me aguarda agora, portanto, é de uma natureza especial: como fuçar no passado de um país justamente na parte que ele mais quer esquecer. Recentemente encomendei, em um sebo virtual, um livro de Walter Frank; deve chegar essa semana.

Claro, é uma oportunidade única estudar História e vir para a Europa fazer intercâmbio, ter aulas sobre nazismo, imperialismo germânico e Primeira Guerra Mundial. Não nego de forma alguma que tudo isso tem contribuído muito para minha formação. Mas olho com ceticismo para esse continente. Os jornais daqui estampam com cada vez mais frequência a crise do euro, o drama da Grécia, os dilemas de Portugal... Todo mundo aqui se amarrou um ao outro de tal forma que se um cair no abismo leva todos os outros junto. Não me vejo vindo para cá novamente nem mesmo em um futuro próximo. O fardo do homem branco se tornou tão pesado que até mesmo os homens de cor que habitam os trópicos estão ensaiando voos mais altos do que ele. As previsões para 2020 valorizam a China, a Índia, o Brasil, e não a França, a Inglaterra ou a Alemanha. Um dia, quando eu for bem idoso, vou contar para meus alunos que em 2011 viajei para a Europa para estudar um semestre e eles vão me olhar com assombro perguntando “2011? Justo na época da crise? Justo na época em que o Brasil começava a ultrapassar as nações europeias nos indicadores econômicos? Seria melhor ter ficado aqui mesmo!”. E eu não saberei responder a essa pergunta senão com um breve sorriso...


Aflições acadêmicas – e econômicas – à parte, aqui tudo vai bem. Fiz minha primeira prova no começo de dezembro, da matéria sobre imperialismo e colonialismo alemão. Recebi a nota esses dias. Tirei 2,7 em uma escala que vai de 1 até 6 (ou 7, não me lembro), sendo 1 a melhor nota possível. Fiquei impressionado comigo mesmo, mas acho que o professor me deu uma mãozinha salvadora também! Obviamente ele não corrigiu erros de ortografia (como ele mesmo já havia me dito).

Na minha última semana de aula resolvi faltar à aula de alemão para viajar. Fui para Dortmund, cidade no noroeste da Alemanha, sozinho. E não me venha de novo com essa história de “Marcelo, você não tem amigos?!” porque viagens para mim são sagradas! Jamais cancelaria uma viagem a um lugar que eu realmente queira conhecer por falta de companhia. Caso você esteja prestes a viajar para o exterior, carregue esse ensinamento: nunca fique dependendo de terceiros para viajar quando estiver em outro país. Um final de semana um não pode, no feriado o outro não pode, nas férias o outro já tem plano... Aí você vai adiando sua viagem até o momento em que você olha no calendário e descobre que na semana que vem é seu voo de volta – e você não viajou nada!

Não conheci quase nada de Dortmund, fiquei apenas hospedado por lá. Visitei cidades ao redor: Emmerich (uma cidadezinha à beira do rio Reno perto da fronteira com a Holanda), Wuppertal (onde me encontrei com um amigo) e Utrecht, na Holanda. De fato, a última foi a que mais me fascinou. Devo confessar que minha viagem para Utrecht foi uma das coisas mais mal planejadas que já fiz na vida. Simplesmente fui, sem saber de qualquer ponto turístico, atração ou coisas para se fazer por lá. Só o que sabia era que lá havia sido assinado um tratado no século XVIII que tinha, entre suas cláusulas, acertos de fronteiras entre a América Portuguesa e a América Espanhola (acho que foi isso que me motivou a visita-la).

Até agora me desconcerto ao falar da Holanda. Não sei bem o que dizer, como explicar... Precisaria passar um ano lá para poder formular opiniões inteiras sobre aquele país. De momento digo apenas que me surpreendi com a variedade cultural que se nota nas ruas e em todos os lugares (pelo menos em Utrecht): negros, chineses, judeus, muçulmanos, indianos – todos eles falando holandês e se sentindo em casa. A cada rosto não-europeu que eu via me lembrava do passado colonial holandês, suas conquistas, suas posses nos mais remotos cantos da terra, desde a Indonésia até o Suriname – e tentava descobrir de qual ex-colônia cada rosto vinha (típico exercício de um estudante de História que está sozinho em uma terra estranha sem ter o que fazer). Logo que saí da estação fui abordado por um jovem negro mais ou menos da minha idade. Foi aí que me dei conta de uma coisa para a qual eu nunca tinha atentado: eu não falo sequer uma palavra em holandês. Nem um “bom dia”, um “obrigado”, um “com licença”, nada... Fiquei meio bobo e depois disse a ele, em inglês, que eu não falava holandês. Ele então me perguntou em inglês se eu era de lá e eu disse que não, que era estrangeiro fazendo intercâmbio na Alemanha. Ele então sorriu e me disse “ok, então eu não vou te perturbar!”. Quando ele falou holandês a única palavra que pude entender foi “Greenpeace”. Acredito então que era algum ativista tentando recrutar membros para a causa. Nesse momento me lembrei das tumultuadas eleições do DCE na UFMG e dos corredores lotados com pessoas distribuindo panfletos de suas chapas. Parece que é minha sina!

A cidade de Utrecht parece duas em uma só: de um lado Ouro Preto, de outro Belo Horizonte. A parte histórica da cidade tem canais, ruas estreitas, casinhas pequenas e várias pessoas andando de bicicleta. A parte mais moderna tem prédios, lojas, trânsito intenso e mais pessoas andando de bicicleta – sem falar, é claro, naquela famosa rua com umas vitrines de luzes vermelhas que todo mundo já sabe o que é só de olhar de longe. Fiquei mais tempo no centro histórico, andei sem rumo durante muito tempo e passei até pelo arquivo histórico da cidade. Me arrependo de não ter entrado, pelo menos quem sabe para procurar o Tratado de Utrecht em sua versão original. À noite voltei para a estação e após uma longa viagem cheguei a Dortmund.

Meu tutor gentilmente convidou-me para passar o Natal na casa dele em Meitingen, uma cidadezinha perto de Augsburg. À tarde fomos à casa de sua avó, comemos biscoitos e tomamos chá. Conversei bastante com o primo e com a prima dela, ambos muito simpáticos. Presenteei a vó dele com um presépio de louça que eu havia comprado no dia anterior. Ela ficou muito feliz, acendeu as suas duas velas e logo o colocou para decorar a casa. O problema é que as velas esquentaram demais e de repente a estrela que ficava no alto do presépio simplesmente quebrou! Ela logo apagou a vela e disse que mais tarde iria colar. Essa situação deveria ter me deixado sem jeito, mas surpreendentemente não deixou. Mais tarde fomos à missa e depois fui para a casa do meu tutor. Lá comemoramos só ele, eu e a mãe dele. Eles não são muito animados com Natal, por isso fizeram uma ceia simples: batata cozida e linguiças fritas. Enquanto esperávamos a refeição, conversei com ele (o nome dele é David) sobre seus planos após se formar. Ele disse que quer ser professor de Inglês e História em alguma escola (atualmente está estudando para concurso em escolas do Estado). Perguntei sobre a possibilidade de seguir a carreira acadêmica e ele me disse que não, pois várias coisas na universidade eram, para ele, sem sentido. Pedi um exemplo e ele me falou que os textos de Pedagogia eram estúpidos, pois tratavam de temas óbvios como por exemplo “a sala de aula é um lugar heterogêneo, tem homens e mulheres, cada um com sua personalidade”... Enfim, coisas que todo mundo sabe e que, caso não saiba, irá aprender em apenas um dia de experiência. Disse ainda que em um dia do seu estágio com crianças de uma escola ele aprende muito mais que em um semestre todo na universidade. Percebi, com isso, semelhanças valiosas entre as queixas dele e a de muitos de meus colegas na UFMG. Após comermos ficamos os três sem ter o que fazer. Jogamos então um jogo de tabuleiro e depois o David me mostrou fotos de seu intercâmbio em Birmingham, na Inglaterra. Voltei pra casa antes das 22h.

Não reclamei: apesar de não ter tido uma ceia farta, com trocas de presentes e perto dos familiares, consegui o que mais queria, que era não passar o Natal sozinho. Nessa terça pela manhã viajo para Viena, na Áustria, onde passarei o Ano Novo, depois para Bratislava (na Eslováquia) e depois para Budapeste (na Hungria). Desejo a todos um feliz ano novo e agradeço/admiro a paciência de quem conseguiu ler até aqui! Peço desculpas pelo teor excessivamente subjetivo na primeira metade do texto, mas são reflexões que tenho feito com muita frequência nos últimos dias. Tratei de temas bem delicados os quais não devem ter ficado muito claros. Aceito, porém, críticas e sugestões a respeito.