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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O homem doente da FAFICH

Em fins do século XIX, o Império Turco-Otomano era conhecido como o homem doente da Europa. Às voltas com rebeliões internas, problemas econômicos e um aparato burocrático que tropeçava nas próprias pernas, o velho Império ia sendo aos poucos desmembrado, fragmentado, corrompido pelo vício e pela letargia, evidenciando a iminência de sua ruína. Toda a pompa de seus sultões não passava de um verniz. Armas, símbolos, brasões, títulos, poses imponentes para fotos, somados ao orgulho de uma civilização que outrora inaugurara um novo período da História ao suplantar o Império Bizantino, eram apenas a vistosa fachada de uma mansão prestes a desmoronar. E às forças centrífugas que ameaçavam a coesão do Império, os imponentes sultões opunham cada vez mais repressão, cada vez mais força, cada vez mais intransigência. Revelavam, com isso, uma desesperada tentativa de se manterem de pé, enquanto o resto da Europa prosperava às custas do Império adoecido. A Sérvia, a Bulgária e a Grécia que o digam.

Pois o mesmo mal que acometeu o homem doente da Europa faz agora outra vítima: o curso de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Tal como um físico que morre ao cair de um prédio, ou um químico que padece ao inalar gases tóxicos, os historiadores foram vítimas de seu próprio objeto. Enquanto as demais graduações da FAFICH esbanjam vitalidade com bolsas, projetos de pesquisa e oportunidades aos seus alunos, o curso de História da UFMG se mostra moribundo, cambaleante, definhando ante os próprios vícios e pouco disposto a reagir. Tal como os otomanos, a História vai aos poucos se desmembrando: perde seus herois, seus grandes nomes. No lugar dos professores que se vão ficam outros tantos, alguns dos quais acabamos desejando que também tivessem partido – ou que nunca tivessem chegado. Todo o vigor que o curso ostentava no passado começa a se desvanecer e fica cada vez mais evidente que não há máscaras para camuflar sua putrefação.

O curso de História, que a princípio deveria ser um local de aprendizado, de discussão e debate de ideias, que nos permitissem refletir de forma crítica o mundo em que vivemos, acaba se tornando um espaço vazio e medíocre. A História tem vícios que a corroem, tal como o Império Otomano: o apego, o tradicionalismo, o eterno reinado da mesmice e do enfado. Todo aquele que ousa se levantar contra esse estado de coisas, propondo algo diferente, é visto com horror pelos demais, sendo logo convidado a se calar e a voltar para seu lugar. Escravidão, barroco, Minas Setecentistas: é esse o trinômio quadrado perfeito ao qual tudo no curso de História deve se conformar; é com esse triunvirato que todo aluno deve se comprometer, caso queira seguir sua carreira acadêmica. A História rica e diversa que vimos no ensino médio é logo limitada a esse eixo; qualquer tema fora dele é uma aberração para a comunidade acadêmica, que se recusa a reconhecer nele qualquer valor. Temas cada vez mais batidos sempre voltam à tona; ano após ano são virados e revirados, e por algum motivo nunca deixam de cativar a atenção dos acadêmicos, que os fuçam incessantemente como cães fuçam o lixo, na tola esperança de achar algo novo.

Mas, na tentativa de esconder esse apego doentio aos tradicionais objetos de estudo, nossos acadêmicos fingem forjar algo novo, diferente de tudo visto até então. Aqui tem início a História-picuinha, ainda mais decrépita e horrenda do que a História-mesmice. Trata-se de construir o saber histórico como quem decora a vitrine de uma loja de brinquedos: sempre levando em conta quem está vendo de fora. Gastam-se cada vez mais tempo e recursos com pesquisas medíocres, que buscam responder a questões ainda mais medíocres por razões não menos medíocres. Emerge aqui uma História inusitada, descolada, bacaninha, quase como que uma apropriação acadêmica das curiosidades que vinham nas figurinhas de chicletes com títulos do tipo “Você sabia?”. A História que problematiza, analisa e critica, perde seu valor. Os suplementos infantis dos jornais de domingo invadem a produção acadêmica com o imperativo de “Aprender brincando!”. A História se esvazia e só passa a fazer sentido na medida em que diverte o público. Vemos surgir pesquisas engajadas em esclarecer questões de extrema relevância, do tipo: “quantas vezes D. João VI copulava por semana?”, “quantos botões havia na camisa que D. Pedro I vestia quando ele proclamou a Independência?”, “qual era o prato preferido de D. Maria I?”, “com quantos anos o Visconde de Barbacena perdeu a virgindade?”. O fazer histórico adota a metodologia do marketing e da propaganda.

E os nossos sultões, o que dizem disso?

Eles, que se arrogam o direito de nos ensinar História. Mas como podem nossos professores ter a ingênua pretensão de nos ensinar algo que são incapazes de aprender? Eles estudam, ao longo de sua vida acadêmica, todos os males que caminham com o homem em sua trajetória histórica, só para depois reproduzi-los a nível micro em sala de aula. Professores tão irresponsáveis quanto o mais ineficiente presidente da Velha República; tão autoritários quanto o mais enérgico déspota oriental; tão indiferentes ao seu trabalho quanto o mais incompetente burocrata soviético de fins dos anos 1980. Eles sabem o que ensinam, mas não sabem por que o ensinam; aprendem a História, mas não aprendem com a História.

Mas não sejamos exigentes demais com nossos sultões, afinal, eles têm outras preocupações. A comunidade acadêmica é tão cruel como a sociedade do Antigo Regime, e por isso os sultões precisam cuidar de sua aparência: posam de grandes intelectuais, competem para ver quem tem mais artigos, mais citações, mais conferências, mais orientandos, mais títulos de nobreza acadêmicos... Quase se sacrificam para turbinar seus Lattes, mas dão pouca ou quase nenhuma importância a uma frase que soa cômica em seus currículos: dedicação exclusiva. Pois nem um biscateiro trata com tanto desdém o seu ofício. Há professores que se atrasam sem o menor constrangimento; professores que faltam pois têm compromissos mais importantes; e professores que vão mas que, ao fim, acabamos desejando que nem ao menos tivessem vindo, tamanha a mediocridade de suas aulas. Aparecem na sala de aula quando querem, saem quando querem e fazem o que querem.

E nós, meros súditos? A nós, o que resta?

As ordens que partiam dos palácios deviam ser prontamente aceitas em toda a extensão do Império Otomano. Do mesmo modo, as ordens que vêm do Quarto Andar devem ser acatadas de imediato por todos os estudantes. O aluno que não consegue acordar a tempo para a aula é tachado de irresponsável; o professor que não consegue acordar a tempo para a aula reúne-se com a alta cúpula e, em uma canetada, muda o turno do curso para a tarde. O aluno que não consegue conciliar os estudos com o trabalho é visto como desinteressado; o professor que não consegue conciliar o ensino com a pesquisa novamente se reúne com a alta cúpula e, mais uma vez de forma arbitrária, institui o horário corrido em toda a semana. Pior: asseguram-nos orwellianamente que tudo foi feito de maneira democrática, que houve votação, que os estudantes puderam participar e acusam aqueles que manifestam sua insatisfação de estarem fazendo escarcéu.

História: ame-a ou deixe-a.

Mas nem tudo no Império Turco-Otomano estava perdido. Em princípios do século XX, ganha força o movimento dos “Jovens Turcos”, algo mais ou menos parecido com o nosso “tenentismo”, guardadas as devidas proporções. Os Jovens Turcos eram contra o governo corrupto e viciado dos sultões. Defendiam a modernização econômica e política do país, o revigoramento do nacionalismo turco e o fim de um Império calcado no autoritarismo e no primado dos interesses personalistas.

No entanto, nossos Jovens Turcos se mostram tão realistas quanto seus próprios sultões. A eles, pouco importa resolver os problemas que afligem seu curso. Aliás, a grande maioria nem ao menos se dá conta deles. Estão todos muito satisfeitos com o jeito como as coisas andam. Mesmo os que percebem os defeitos temem assumir uma postura mais ofensiva, pois não querem contrariar seus sultões e arriscar suas preciosas bolsas. Aqueles que entram no curso com uma mentalidade que foge ao trinômio quadrado perfeito citado anteriormente logo se conformam a ele.

Enfim, nossos Jovens Turcos estão muito mais preocupados em cortejar seus sultões do que em levantar a voz contra eles. São todos ex-cristãos que, uma vez na FAFICH, enfrentam uma crise de fé e tentam achar em seus professores tudo aquilo que não mais podem achar em Deus; com isso, temem perturbar sua ira com manifestações heréticas. O Deus que tudo controla do céu é substituído pelo professor que tudo controla do quarto andar. E quanto mais raios, tempestades e fúria os professores mandam para os andares de baixo, mais nossos estudantes os adoram e menos se dispõem a contrariá-los.

A Jovem História perpetua o legado da História-mesmice e se mostra entusiasta da História-picuinha; não propõe, não cria, não inova, não vê além. Nossos Jovens Turcos são meretrizes acadêmicas. Diferente das meretrizes comuns, que ostentam sua bolsa para depois ficarem de quatro, as meretrizes acadêmicas ficam de quatro para depois ostentarem suas bolsas. Afinal, ninguém ascende ao quarto andar se não souber seduzir seus sultões.

E enquanto a Jovem História não perceber que é súdita de um Império que agoniza narcotizado, estaremos fadados a jamais achar a cura para ela. Se optarmos por descansar diante da agonia de nosso curso, não obstante o cheiro da putrefação que insiste em nos acordar, eis que descansará em paz o homem doente da FAFICH.