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segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

O Processo no Século XXI

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Ana Maria deu por si na cama metamorfoseada numa terrível celebridade virtual. Estava deitada sobre seu celular, que vibrava forte a cada notificação. Após apanhar o aparelho com a mão esquerda, visualizou, ainda sob o efeito do sono, o frisson que emanava de cada um dos aplicativos que a colocavam em contato com o mundo. Todos – amigos, parentes, conhecidos e principalmente desconhecidos – tentando entrar em contato com a jovem. Uns alertando, outros lamentando, outros tantos reprovando. A maioria escarnecendo.

“Que me aconteceu?” – pensou. Não era nenhum sonho. O quarto continuava exatamente o mesmo da noite anterior. Alguém devia ter caluniado Ana Maria, visto que naquela manhã acordara abarrotada das mais gravíssimas acusações, embora ela não tivesse feito qualquer mal. A mãe de Ana Maria, que todos os dias, pelas 8 horas, aparecia para lhe desejar bom dia e abrir as cortinas do quarto, não aparecera naquela manhã. Tal coisa jamais acontecera. Ana Maria ainda se deixou ficar um instante à espera; entretanto, deitada, com a cabeça reclinada na almofada, observou os jovens da república em frente que, por sua vez, contemplavam-na com uma curiosidade fora do comum.

Neste momento bateram à porta, e um homem que Ana Maria jamais vira em sua casa entrou no quarto:

- Quem é o senhor? ― perguntou Ana Maria, soerguendo-se imediatamente na cama.

- Vim para te ajudar no seu processo.

- Qual processo?

- Este do qual já deve estar inteirada em seu celular.

Fez-se breve silêncio. Ana Maria quis emendar nova pergunta, mas antes que pudesse fazê-lo o homem afirmou, puxando a cadeira que se achava em frente ao computador da jovem:

- Sente-se. Traga seu celular também.

Talvez porque não entendesse direito o que se passava, talvez porque estivesse curiosa para saber para onde seria conduzida, a moça obedeceu ao senhor sem questionar. Este, sentado na beirada da cama, ao lado de Ana Maria, mostrava os vídeos postados há apenas dois dias em um site hospedado nas Ilhas Fiji, mas rapidamente disseminado pelas mais diversas páginas de vídeos on-line, humor, blogs, redes sociais e aplicativos de mensagem instantânea. Por cinco ou seis minutos a garota observava, em silêncio, o furor que seu vídeo causara. Quis bocejar de sono, mas até nisso foi interrompida pelo senhor:

- Estou aqui para garantir que você tenha uma compreensão plena do processo ao qual está sendo submetida.

- Processo? Mas não fiz nada de errado.

O senhor, como se já estivesse acostumado a ouvir – e ignorar – perguntas daquele tipo, apenas deu continuidade ao raciocínio iniciado anteriormente:

- A Justiça é a internet. É direito de todo cidadão de bem conhecê-la. Seu crime não possui nenhuma relevância em particular. Foi mais um entre muitos do mesmo tipo, talvez variando um pouco aqui e ali em intensidade, mas nada fora da regra.

Ana Maria quis protestar novamente que não havia cometido nada de errado, que não possuía antecedentes criminais e que, portanto, o senhor certamente estaria a confundi-la com outra pessoa. Porém, lembrou-se de que o senhor já havia ignorado seu primeiro protesto, e com isso achou mais sensato permanecer em silêncio. O senhor prosseguiu com sua explicação, agora em tom mais douto do que nunca:

- Como já disse, a Justiça é a internet, mas ela é dividida em várias instâncias. Aqui, por exemplo, está a Gerúsia, o Conselho de Anciãos. Pessoas de cinquenta anos ou mais responsáveis por registrar que a repugnância de seu comportamento naquele vídeo é digna dos novos tempos, que no tempo deles não havia nada disso, pois as mulheres se davam o respeito.

Ana Maria achou graça daquilo. O peso da culpa ainda não havia caído sobre ela. Enquanto isso, apenas acompanhava os comentários com um misto de curiosidade e desdém. Chegava até a divertir-se com um ou outro. Ao perceber que o senhor não parecia ter intenção de proferir novas palavras, a moça achou que seria prudente finalmente exprimir as suas. Estava curiosa por saber qual teria sido seu crime, mas preferiu começar com outro questionamento:

- Como...? Como conseguiram me filmar? Quem me filmou?

- As estratégias de colocar todo o poder nas mãos de um ditador já se mostraram suficientemente trágicas ao longo do século passado. Todas acabavam degringolando cedo ou tarde, tropeçando nas próprias pernas, fuziladas pelos próprios soldados, decapitadas pelas próprias guilhotinas. Para que um Grande Irmão vigiando a vida de todos se podemos ter vários grandes irmãos fazendo o mesmo serviço e com ainda mais competência? Para que polícia política, serviço secreto, agentes de espionagem e câmeras espalhadas cidade afora se podemos simplesmente armar cada cidadão com uma câmera? E nem precisamos pagar-lhes cursos de treinamento. Eles sabem exatamente como devem agir sempre que presenciam algo suspeito.

- E os grandes irmãos que filmaram meu crime... Eles também não têm pecados?

- Certamente.

- Então?

- Não é um sistema perfeito, mas é o melhor que temos. Enquanto não conseguirmos vídeos ou fotos dos seus pecados, pouco há que possamos fazer.

- Então os grandes irmãos também fiscalizam um ao outro?

- Idealmente sim, mas é um sistema ainda em aperfeiçoamento.

- E será possível que nenhum desses grandes irmãos tenha filmado a pessoa responsável por disponibilizar meu vídeo on-line? Porque, convenhamos, esse tipo de exposição é crime.

- É esse o seu problema, Ana Maria – disse o senhor, reportando-se à jovem pelo seu nome pela primeira vez. Você ainda acredita na justiça do mundo real, na justiça de carne e osso. Está mais do que na hora de saber que ela é inútil. Tribunais, fóruns, cortes, não passam de museus. Há mais vida no sarcófago de Tutancâmon do que nesses ambientes empoeirados. Advogados, procuradores e juízes são, hoje, múmias vivas. Nada há que se possa esperar deles. Digo-o pela terceira vez: a Justiça é a internet.

O senhor mirava Ana Maria em silêncio, como que já aguardando novo protesto por parte da moça. Esta nada dizia, não porque nada tivesse a dizer, mas porque não sabia por onde começar. Após muito hesitar, a moça afirmou:

- E qual garantia esse Conselho de Anciãos me dá de que, naquela época, há trinta ou quarenta anos, as pessoas não fizeram o mesmo que eu fiz?

- Nenhuma. Naquela época não havia grandes irmãos para registrarem-no. Por isso os grandes irmãos representam um avanço tão grande em nosso sistema judiciário. De agora em diante, cada vez menos crimes ficarão impunes.

- O comportamento desse Conselho de Anciãos... O senhor não o acha anti-histórico? Julgam-me tendo como parâmetro os valores do passado, mas os tempos mudaram tanto.

- É uma reclamação plausível. Mas não se preocupe com a Gerúsia, geralmente são inofensivos. Aqui está – disse o senhor, voltando o olhar para a tela do computador – uma instância que inspira cuidados: é a Ala Sacerdotal. Eles julgarão seu comportamento de acordo com a moral religiosa. Vê-se, pelos comentários, que sua postura no vídeo não agradou ao deus deles, de maneira que também acho extremamente improvável que a Srta. seja absolvida nessa instância.

Ana Maria começou a ler os comentários, que ultrapassavam os mil e duzentos. Prisão, estupro corretivo, cinta, correia, medidas disciplinares, morte. Os mais cautelosos exigiam o pagamento de uma multa simbólica ou serviços sociais para o resto da vida.

- Não são esses os discípulos do homem que exortou a jogarem pedras todos aqueles livres de pecado?

- Esses mesmos.

- Então?

- Quanto a isso a Srta. pode permanecer tranquila. Nosso processo civilizador atingiu um tal estágio que apedrejamentos não são mais permitidos como em outros tempos. Sua integridade física permanecerá inviolável.

- E por que as penalidades se adequaram aos novos tempos, mas os parâmetros de julgamento permanecem arcaicos, como vimos no caso da Gerúsia?

- Já disse que não é um sistema perfeito.

- E esses aqui? – perguntara a moça, após um longo suspiro no qual seu sono residual se misturava ao desdém pelas normas daquele processo que ia conhecendo aos poucos.

- Essa é a Ala Liberal.

- Estão a meu favor?

- Não. Acham que o que fez foi repugnante e asqueroso.

- Mas não são liberais?

- Sim, pois apesar da repugnância com que agiu, acham que podem desfrutar de algum proveito disso.

- Então não me defenderão?

- Apenas se estiver disposta a fazer, com eles, o mesmo que fez no vídeo.

Pela primeira vez, desde que acordara naquela manhã, Ana Maria exalava preocupação. A seriedade da situação começava a se desenhar em contornos mais fortes e menos imprecisos. Já não era tão engraçado como antes.

- Um Conselho de Anciãos, uma Ala Sacerdotal e uma Ala Liberal, todos unidos no consenso de me condenar?

- Exato.

- Ninguém a me defender?

- Chegaremos lá. Agora veja mais estes. Formam a Comissão de Disseminação de Conteúdo. Não são declaradamente favoráveis nem contrários a você. Seu trabalho, como o de qualquer comissão séria, é puramente técnico: consiste apenas em difundir seu vídeo pelos mais diversos canais a fim de que atinja o maior público possível, angariado assim mais pessoas para te julgar. Alguns até se dão ao trabalho de colocar legendas ou explicações em outros idiomas a fim de que pessoas em outros países também possam dar seu veredicto.

- Parece um serviço pesado. O que ganham com isso?

- Comentários, curtidas, compartilhamentos. É essa a moeda de troca nesse ambiente. Mais um exemplo que atesta o quanto a Justiça avançou. A Srta. deveria ser grata por isso. Há não muito tempo, trabalhava-se apenas por bons vencimentos. Era horrendo como certos promotores se lançavam a processar um indivíduo inofensivo, cujo crime mais bárbaro havia sido baixar músicas na internet, com o único objetivo de aferir lucros do processo. Hoje não se vê mais essa luta encarniçada e renhida por bens materiais. Nossa Justiça evoluiu espiritualmente. Seus funcionários sentem-se plenamente realizados apenas com curtidas e comentários. A palavra venceu o dinheiro.

Após ouvir essa longa exposição, Ana Maria achou por bem fazer a pergunta que a atormentava desde o início. A garota se deixou levar com tamanha facilidade pelo discurso do senhor que acabou se esquecendo de questionar a validade mesmo de todo aquele processo:

- Qual foi o meu crime? Diga-me, senhor, qual foi?

- A essas alturas da exposição, a Srta. ainda tem dúvidas?

- Filmaram-me fazendo algo que não contraria nenhuma lei escrita e querem me processar por isso?! – Ana Maria expressava os primeiros sinais mais patentes de revolta.

- Preciso lembrá-la mais uma vez – e agora será a quarta – de que a Justiça é a internet?

- Não há lei, regra, norma que fundamente tais acusações. Não há!

- A Srta. vai insistir na Justiça tradicional? Fique à vontade. Os tribunais estão aí: entra-se e sai deles com toda a facilidade do mundo. A Srta. também pode recorrer a um deles. Tudo o que irá encontrar é poeira, ratos e teias de aranha. Com sorte, uma ou outra múmia aguardando sua aposentadoria. Nenhuma estará interessada em ouvir suas histórias, e ainda que estivesse, nenhuma delas irá livrá-la do julgamento da internet.

Ana Maria raciocinava a mil. Tentava controlar-se, mas era difícil:

- Me atacam sem qualquer tipo de reflexão ou questionamento. A execração veio antes da culpa. Sou culpada unicamente porque fui execrada!

- E os ditadores do século XX achavam que estavam fazendo um bom trabalho, hein?! – redarguiu o senhor, pela primeira vez em tom jocoso, ensaiando um sorriso no canto da boca.

Ana Maria sentia-se cada vez mais desamparada. Ao passar os olhos por tantos comentários enfurecidos, raivosos e sarcásticos, teve ânsia de desmaiar. Como era possível que ela, uma simples estudante nos seus vinte anos, que não saía, não dava entrevistas e não tinha pretensões a qualquer tipo de fama, da noite para o dia se metamorfoseasse em alvo de tantas e tantas atenções? Os tempos mudaram. Hoje, vira-se estrela num piscar de olhos, para o bem ou para o mal. A velocidade das informações atingiu níveis nunca antes vistos.

Enquanto refletia sobre isso, Ana Maria se deu conta de que o senhor desaparecera. Ela também precisava ir. Estava atrasada para o estágio. Ao abrir a porta de seu quarto, deu com seus familiares reunidos na sala em tom fúnebre. Sua chegada não causou o menor abalo no ambiente. Era como se já esperassem a garota. Era como se todos quisessem dizer alguma coisa, mas ninguém tivesse a coragem de começar. Diante do impasse, Ana Maria deu de costas e foi tomar banho. Já havia sido suficientemente humilhada na internet. Aproveitando o ensejo, seu pai, que desde o início mal conseguia controlar seu tremor, foi tomado por um impulso irrefreável e disparou a emitir impropérios contra a filha:

- É um absurdo! É lastimável! É repugnante e asqueroso tudo isso! Como pode ser?!

Ana Maria virou-se na tentativa de se defender, mas antes que desse por si caiu em lágrimas. O pai continuou, furioso:

- Quando me separei de sua mãe, fiz o possível e o impossível para que você continuasse sendo a menina que nós criamos desde a infância, para que continuasse recebendo tudo do bom e do melhor, inclusive muito amor, educação e respeito! Olha só o que você fez! Estragou tudo!

- Você passou dois anos e meio sem dar notícias nem pagar pensão, Rogério – interrompeu a mãe, mas foi ignorada.

- Acha certo uma moça de família agir assim dessa forma? Acha certo uma menina educada, que nunca sofreu qualquer tipo de privação material ou espiritual, desonrar assim a sua família que sempre te acolheu nos seus momentos de dificuldade? Acha justo fazer uma sem-vergonhice dessas e ainda espalhar para toda a cidade, para todo o mundo ver? Eu aposto que isso é má-influência daqueles gays com quem você anda na faculdade! Por isso não os queria aqui no seu aniversário.

- Você perdeu a virgindade com quinze anos num puteiro, Rogério – interrompia novamente a mãe. O pai seguia impávido:

- E agora, o que é que eu vou falar no trabalho? O que é que vou falar na minha roda de amigos? O que é que vou falar na igreja? O que, Ana Maria? Me diz, o que?!

O pai quase veio às lágrimas, mas não podia demonstrar fraqueza. Ana Maria chorava copiosamente. Já não se importava mais em refletir se sua atitude, gravada em vídeo e amplamente divulgada em todas as esferas, era moralmente aceitável ou não. Sua família estava contra ela, e era isso o que importava.

- Sabe o que você é? É uma ingrata! Isso sim... É uma ingrata! Depois de tudo o que sempre fizemos por você, você nos retribui desse jeito! Não sente vergonha?

- Você não demonstrou o menor pudor quando te peguei me traindo com sua aluna, Rogério – manifestou-se a mãe novamente. O pai não descansava:

- Tá todo mundo vendo a merda que você fez nos computadores e celulares! Todo mundo!

- Eu já te peguei vendo pornografia de adolescentes no seu celular, Rogério – emendava novamente a mãe.

O pai, que até então estivera indiferente às intervenções da mãe, dessa vez reagiu. No ápice de sua fúria, pegou uma maçã da fruteira e atirou-a contra a filha, embora, em seu coração, o alvo fosse a ex-mulher. A maçã acertou em cheio a nuca de Ana Maria, que corria para seu quarto, e deixou-lhe uma marca roxa. Tão logo se trancou no quarto, outro objeto, dessa vez sinceramente dirigido à moça, acertou o canto superior direito da porta. Era a estatueta de bronze que o pai havia jogado.

Estavam todos desolados.

Ana Maria não foi para o estágio. Passou o dia trancada em seu quarto, pois sabia que se saísse de lá seria novamente agredida. O movimento na casa da jovem foi intenso. Seu pai, que raramente aparecia, não foi embora naquele dia. A cada vez que resolvia encostar o ouvido na porta escutava sua voz, embora fosse incapaz de distinguir o que ele dizia.

Naquele dia, Ana Maria não tomara café nem almoçara. Também não foi para a aula à noite. E ainda bem, porque, segundo os informes que recebia em seu celular, todos na faculdade já estavam sabendo. Houve até quem procurasse a menina em sua sala para poder importuná-la. Apenas quando o relógio anunciou oito da noite foi que a fome começou a perturbá-la com força. Não sabia como reagir. Abriu cuidadosamente a porta de seu quarto, apenas o suficiente para ver se havia condições de ir à cozinha, pegar uma fruta e logo voltar ao recolhimento. Quando ia terminar de abrir a porta para colocar seu plano em prática, foi surpreendida por seu irmão mais novo que surgiu de repente e balbuciou algumas palavras. Ana Maria fechou a porta de sobressalto, trancou-a duas vezes e caiu sentada no chão. Saciou um pouco da fome com alguns biscoitos que guardava em seu armário. Adormeceu pouco tempo depois.

Acordou, no dia seguinte, com alguém batendo à porta. Quem quer que fosse, já deveria estar batendo há algum tempo. As batidas finais expressavam resignação. Alguns minutos depois, alguém jogou uma marmita de comida pela janela. A marmita bateu no estrado da cama e se espatifou no chão, mas a menina devorou o conteúdo com gosto. Sentia muita fome. Chegada a hora do almoço, o ritual se repetiu. Com o ouvido esquerdo pregado à porta, a menina conseguiu captar alguns trechos da conversa de seus familiares na mesa do almoço. Eles instruíam o irmão caçula a não caçoar da irmã e a não se aproximar dela. Diziam que ela precisava descansar, que estava muito exausta, e que por enquanto era melhor deixá-la em paz.

O irmão mais velho concordava com tudo e lembrava a todos na mesa que eles possuíam parentes distantes que moravam numa cidade em outro estado, e que talvez pudesse ser uma boa ideia mandar a menina para lá. A ideia não agradava à mãe. Ela só foi convencida de que aquele era o melhor caminho a seguir depois de muita confabulação com o filho e o ex-marido. Num dado momento, os tons de voz se tornaram mais baixos e Ana Maria não conseguiu mais identificar o conteúdo dos diálogos.

Foi nesse momento que o senhor da manhã anterior apareceu novamente, sentado na beirada da cama da moça e mirando-a fixamente, como se estivesse a aguardá-la para um compromisso com data e hora marcada da qual ela já deveria estar ciente. Assim que Ana Maria sentou-se à frente do computador, o senhor não fez cerimônia:

- Hoje vou te mostrar sua defesa. São essas pessoas aqui, com fotos coloridas no perfil e óculos de armação grossa que gostam de fazer abajur de garrafa pet, aplaudir o nascer do sol, comer tofu e frequentar shows de bandas idiotas com nomes toscos que ninguém conhece.

- E por que são eles a minha defesa?

- Porque não sobrou mais ninguém.

- Como irão me defender?

- Com longos textos amplamente compartilhados nas redes sociais, carregados de reflexões, questionamentos e ponderações, com amplo embasamento teórico.

- Parece uma boa defesa.

- Não é.

- Não?

- Definitivamente não. Seus textos são compridos e complicados de entender. Pouquíssimos são os que os leem até o fim. Desses poucos, uma parcela ainda menor consegue compreendê-los e dentro dessa parcela minoritária, uma porção ainda mais ínfima concorda com eles.

- Não há mais ninguém para me defender?

- Sua família está contra você, Ana Maria. Você não está em posição de decidir quem advoga em sua causa.

A moça baixou a cabeça com um olhar reflexivo.

- Continuando – prosseguiu o senhor –, devo alertar de que minha função aqui não é protegê-la ou atacá-la. Fui enviado com o único intento de ajudá-la a entender o funcionamento do processo ao qual está sendo submetida.

Naquele momento, Ana Maria explodiu:

- Pare de falar em processos! Não cometi crime algum. Isso está tudo errado! Estão todos se voltando contra mim sem motivos. Estão todos errados! Assisti a esse vídeo duas, três, oito vezes, e quanto mais o assisto mais convicta estou de minha inocência. Hoje mesmo vou sair e dar um jeito nisso. Não pode ficar assim.

A jovem ameaçou mais uma vez romper em lágrimas, mas dessa vez resistiu. Estava convicta de sua inocência, isso era fato. Não era apenas força de expressão. O senhor assistia ao protesto de Ana Maria incólume. Quando ela já parecia se acalmar, ele disse:

- Vai sair para dar um jeito nisso? Com quem vai falar? As pessoas que te acusam e defendem estão todas aqui no mundo virtual. Sair por aí à cata delas é inútil. Precisaria rodar literalmente o mundo inteiro para alcança-las e não temos muito tempo.

- Não posso seguir confinada nesse quarto. Já não aguento mais. Quero minha vida de volta.

Enquanto Ana Maria desligava o computador e o celular para evitar ser molestada, o senhor desapareceu. Ela mal deu com seu sumiço. Queria sair do quarto, tomar um banho, vestir novas roupas e tomar um ar. Não podia ser prisioneira sem um crime pelo qual pagar. Abriu a porta do quarto e deu de cara com o pai ajudando o filho mais novo com a lição de casa na mesa da sala. Ao ver a filha, o pai puxou o filho pelo braço, tapou seus olhos e mandou-o para o quarto. Ana Maria permanecia imóvel à porta do quarto, encarando o pai, que a olhava com seriedade.

- Aonde vai?

- Viver.

- Espere até que as coisas se acalmem.

- A única pessoa aqui que tem direito a exigir um pouco de calma sou eu. Estou definhando desde ontem de manhã.

O pai tentou contemporizar, mas Ana Maria estava decidida. Tomou um banho, vestiu sua roupa e saiu. Sua caminhada pela cidade, no entanto, foi sofrível. Os lojistas não a atendiam, os ônibus não paravam para ela entrar, as pessoas com quem tentava falar a ignoravam e as igrejas fechavam as portas sempre que a avistavam. Os jovens saindo das escolas praguejavam contra ela e, entre as senhoras que se reuniam na praça no final da tarde, grassava um burburinho infernal sempre que ela passava.

Chegando em casa ao final do dia, Ana Maria foi recebida com desespero pela sua mãe:

- Minha filha! Onde esteve? Por onde andou? Estamos ligando no seu celular o dia todo.

- Desliguei meu celular, mãe. Não aguento mais tanta gente me importunando.

- Mas minha filha! Você já se expôs demais... Não pode continuar se expondo assim nas ruas. Precisa ficar aqui em casa, pelo menos até que tudo volte ao normal.

- Sua mãe e eu estamos tentando superar nossas diferenças para te ajudar, Ana Maria. Por favor, não dificulte.

- Eu não fiz nada do que deva me arrepender! E vocês, que deveriam querer apenas o meu melhor...

- Mas nós queremos – adiantou-se a mãe.

- ...vocês estão contra mim assim como todo o mundo. Eu não mereço isso, ninguém merece!

Antes que a mãe pudesse consolá-la, Ana Maria trancou-se em seu quarto. Teria sido má ideia sair de casa? Talvez. Talvez fosse melhor escutar seus pais e ficar reclusa até que a poeira abaixasse e os dedos julgadores também.

Os dias que se seguiram transcorreram calmamente. Ana Maria decidira permanecer encerrada em seu quarto. Não queria sair para ser exposta a novas humilhações. Seus pais e o irmão mais velho decidiram barrar qualquer nova tentativa da moça de sair. Fizeram até uma escala para que sempre houvesse, a qualquer hora do dia e da noite, alguém a guardar a porta. Mas como Ana Maria abandonara a ideia de sair, pouco trabalho tiveram.

Demorou um pouco até que a moça fosse lentamente readmitida nos demais cômodos da casa. Em algumas semanas ela até já estava comendo na sala, junto com o resto da família – exceto com o irmão caçula, que sempre era mandado para a casa de avós, tios ou amigos minutos antes de Ana Maria sair do quarto. Os pais não queriam correr o risco de expor o filho de apenas onze anos a influências perniciosas. Com alguns meses, Ana Maria já era readmitida até nas reuniões familiares, embora seu contato com os primos mais novos fosse interditado pelos motivos acima referidos. Além disso, apenas alguns dos familiares aceitavam a moça em suas casas. Havia tios e primos que nem com muita negociação cediam e raramente compareciam às reuniões em que Ana Maria estivesse presente.

Ana Maria também retomou sua rotina original de aulas na faculdade. O alvoroço inicialmente criado em torno da jovem foi rapidamente dissipado por medidas duras por parte do reitor. A jovem finalmente conseguiria voltar a estudar em paz. Especialmente agora que até seus amigos da faculdade a haviam abandonado, horrorizados que estavam com seu comportamento reprovável. Ela chegava sozinha, lanchava sozinha, estudava sozinha e ia embora sozinha. Sempre em paz. No estágio não foi muito diferente.

Demorou algum tempo até que o senhor que a auxiliava em seu processo fizesse nova aparição. Quando, em uma noite quente, ele finalmente reapareceu, foi apenas para sanar as dúvidas que a jovem ainda pudesse ter sobre o desenrolar do processo. Ana Maria aproveitou o ensejo para perguntar-lhe sobre suas penas, caso fosse condenada. O senhor riu:

- Penas? Que penas, Ana Maria?

- Caso eu realmente seja considerada culpada nesse processo... O que pode me acontecer?

- Você já é culpada, Ana Maria. Desde o começo, você sempre foi culpada. As leis da internet são muito mais dinâmicas e eficientes. É um mundo novo esse em que vivemos: as informações chegam mais rápido, os veredictos também. Da noite para o dia torna-se celebridade, e também da noite para o dia se é julgado. Ninguém mais tem tempo para longos processos que se arrastam por anos e anos. As pessoas querem conclusões rápidas. Quanto menos reflexão melhor. Roubou? Bandido. Fumou? Drogado. Transou? Puta. Filmou? Mais puta ainda.

- Mas isso é cruel!

- Cruel? Não conheço nada mais humano. Sua integridade física permanecerá inviolável. Todas essas pessoas continuarão a praguejar e maldizer seu nome, talvez por muitos e muitos anos ainda, mas nenhuma delas irá te tocar. Você não será presa, não sofrerá castigos físicos, não será torturada nem precisará enfrentar longas sessões judiciais. Há milhares de pessoas ao redor do mundo que já te condenaram, mas ainda assim você continuará livre, já que nenhuma dessas milhares de pessoas tem o poder de te colocar na prisão. A internet humanizou a justiça: tornou as coisas mais rápidas e menos doloridas. Num estado de barbárie, as desavenças são resolvidas em duelos ou emboscadas: quando você menos espera, alguém te mata. No Estado de direito, tais desavenças são solucionadas recorrendo-se a instâncias superiores e, caso seja julgado culpado, o réu é punido dentro dos limites da lei. Por fim, o mundo virtual é o coroamento do processo civilizador: não será morta, não será presa, não será agredida. Será apenas difamada nas redes sociais. Nada que te impeça de ir e vir.

- Mas... Mas e a minha defesa?!

- Sua defesa consiste em um bando de esnobes arrogantes que ninguém tem saco para ouvir, muito menos para ler.

- Ora essa! Mas e...?

- Agradeça por ter nascido nesses novos tempos, Ana Maria! Há algumas décadas atrás você certamente estaria em situação muito pior. Você foi condenada por um vasto tribunal por pessoas das mais diferentes classes, profissões, idades e origens, e ainda assim pode continuar frequentando suas aulas, estagiando, comendo fora e desfrutando da companhia de seus familiares sem sequer precisar de uma tornozeleira eletrônica. Ontem mesmo você esteve naquele jantar na sua avó. Quando, em toda a história da humanidade, se poderia imaginar uma coisa dessas?

- É claro que não preciso de uma tornozeleira eletrônica. Quem precisa de uma tornozeleira eletrônica quando se tem milhares de grandes irmãos espalhados por aí pra me monitorar, não é mesmo?

A jovem pronunciou essas últimas palavras num tom de voz tão seguro de si que o senhor, pela primeira vez desde o início de seus encontros, dera mostras de estar acuado. Tanto que apenas limitou-se a dizer:

- Meu trabalho termina aqui. Como já lhe disse: não estou aqui para proteger ou para condenar, apenas para esclarecer.

Ana Maria teve repulsa. Apesar de nunca ter simpatizado com a figura daquele senhor, pela primeira vez sentia ânsia de agredi-lo, espancá-lo, talvez até de esfaqueá-lo. Caiu desolada em sua cama e cerrou os olhos de exaustão – tempo suficiente para que o senhor desaparecesse. Ao sair de seu quarto para tomar uma água e se acalmar, deu com seus primos e o irmão menor brincando na sala. Seu tio também estava lá. Ao ver a jovem, interrompeu a leitura de seu jornal e orientou os filhos e sobrinhos:

- Já para o quarto!

Como as crianças não demonstrassem interesse de sair, essa ordem foi reafirmada com ainda mais vigor mais duas ou três vezes, até que todos se fossem e a sala se esvaziasse, restando apenas Ana Maria e seu tio, que disse:

- Nós já temos a solução.

- Para o que?

- Para você.

- Problemas precisam de solução. Não sou um problema.

O tio ignorou esta última frase e prosseguiu com seriedade:

- Você vai para a casa do meu primo no interior, onde a internet ainda é pouco difundida e lenta e as pessoas provavelmente ainda nem sabem das suas aventuras.

- Aqui eu tenho estudos, tenho estágio, tenho amigos.

- Lá vai poder trabalhar e continuar seu curso à distância. Eu e sua mãe já acertamos todos esses detalhes. No seu novo emprego vai ganhar um salário ainda melhor que o de estagiário, com a diferença de que estará vivendo em uma localidade com custo de vida muito menor.

Ana Maria ouvia o tio atentamente, mas balançava a cabeça num sinal de desdém.

- Quanto aos seus amigos, sejamos realistas. Esses te abandonaram há muito tempo. Já dizem por aí que ninguém mais fala com você na faculdade nem...

- Vocês também estão me abandonando!

- Queremos o seu melhor, minha filha! – adiantou-se a mãe, que até então observava tudo de seu quarto em silêncio.

- Eu não quero, eu não vou a lugar algum! Condenam-me por um crime que nunca cometi. Não sentem vergonha de si mesmos?

- Você vai sim – interrompeu o pai, que apareceu atrás de Ana Maria. Conforme seu tio disse, já está tudo organizado. O caminhão de mudanças chega amanhã pela manhã. Peço mais uma vez sua compreensão, Ana Maria. É tudo sempre pelo seu bem.

A jovem entrara em desespero. Olhava para seu tio sério, para sua mãe aflita, para seu pai decidido. Não via um aliado em nenhum deles. Não podia contar com ninguém ali. Foi quando avistou o irmão mais velho a retirar as coisas do quarto dela e colocá-las próximas à porta.

- O que está fazendo?! – berrou a jovem.

- Não precisa me ajudar. Eu me encarrego de tudo. Apenas sente-se e descanse. O jantar já vai ser servido.

Sua mãe tentou conduzi-la para a poltrona, mas a jovem resistiu:

- Não! Vou embora. Não mereço isso... Nunca mereci.

Tentou desesperadamente abrir a porta, mas estava trancada e com uma fechadura nova. Saiu então pela porta dos fundos, na cozinha, aos berros do pai que ordenava seu retorno, da mãe que clamava aos céus e do tio, que apenas dizia: “Deixa-a ir, logo mais ela volta!”.

Entre exilar-se por um crime que nunca cometeu e sair pelo mundo sem rumo, Ana Maria fez sua escolha. Saiu correndo na noite mal iluminada pelas luzes dos bordéis que se proliferavam e pelos cigarros acesos dos pais de família que os frequentavam. Nunca mais foi vista por aquelas bandas. A família nutria esperanças de que voltasse após alguns meses, mas ela nunca voltou. A diretoria do lugar em que a jovem estagiava mandou vários e-mails ameaçando desliga-la caso ela não retornasse às atividades imediatamente. Seu chefe demonstrava solidariedade e dizia que o comportamento abusivo da moça não iria interferir na relação entre ela e a empresa, que era estritamente profissional. Ao mesmo tempo, porém, instou-a a apressar-se porque eles dependiam muito do trabalho dela. Na faculdade se deu coisa semelhante. À medida que os meses passavam e ela não comparecia às aulas, ia sendo sumariamente reprovada, até chegar o momento em que foi reprovada por falta em todas as seis disciplinas. A faculdade também lhe enviou um e-mail para comunicá-la. No celular de Ana Maria, que caíra no meio da rua enquanto a jovem fugia, esses e-mails eram apenas algumas poucas notificações entre centenas de outras a assediá-la e a reprová-la por mais essa atitude lamentável de abandonar sua família.

Decorridos seis meses de sua fuga, o quarto de Ana Maria foi transformado em quarto de despejo pelo pai, que voltara a morar com a mãe, embora ainda oficialmente divorciados. Na família, as coisas foram progressivamente voltando ao normal, até que já não mais se tocasse no assunto nem mesmo em conversas mais reservadas. Um ano e dois meses após o vazamento do vídeo de Ana Maria, outra menina da cidade foi flagrada em vídeo cometendo crime semelhante. Era o suficiente para que Ana Maria fosse esquecida de vez e sua família voltasse a ter a paz que tanto almejara.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Passeando por Belo Horizonte em uma tarde esturricante do penúltimo domingo de setembro de 2012

Cidade planejada de republicanos sonhos
Que a Monarquia sepultaram em cova rasa
Como o atestam os olhares tristonhos
Do busto de Pedro diante da Casa

Da tarde, quase uma hora
Raios fortes sobre o asfalto
O sol a pino chora
E do desencanto vira arauto

Quente, muito quente
Brasa, cinzeiro, lava
Chamusca o sol no horizonte
Secura, cansaço, falta d’água

Despede-te de tuas quimeras, rapaz!
Foram-se todas embora
A neve, que em nossa janela caía assaz
Amacia lábios que te bendisseram outrora

E aqui o cerrado

Como Roma na Europa de Dante
Como Moscou nos anos 50
O palácio do Azul Mirante
É aquele que te orienta

Não sonhe, não ouse, não voe
Sem antes consultar o Azul Mirante
Não sorria, não ame, não louve
Sem ordens do palácio distante

A tarde segue incessante, traiçoeira
Chicote de fogo a nos queimar a rabeira
É a hora terceira, o relógio anuncia
Triunfa a barbárie! O amor silencia

Calçada quebrada, rachada de sol
Asfalto impávido, bonito e formoso
Cai sobre os carros macio lençol
E sobre os pedestres, roldão furioso

Edifícios, concreto, vidro espelhado
Refletem a imagem de moça e curral
Quem ousa espiar fica envergonhado
Pois vê apenas sua cara de pau

Um shopping center desponta ao longe

Oásis de ar-condicionado
Miríade de sonhos e oportunidades em aberto
Alívio imediato a quem vem cansado
Triste cilada a quem se sente incompleto

Non plus ultra, fim da História
Não há mais para onde ir
Só no Mirante Azul há vitória
Sê sempre fiel, sem transgredir

Já passa das quatro

Grito! Ouço um grito... Sarcástico e irônico
Berros de arranhar a garganta
Olhar tímido, medo crônico
Tomba-me a cabeça, não mais se levanta

Erguida em nome da res publica
Que o Império abalou de um golpe certeiro
De Cícero a Franklin se lamenta e suplica
Pois aqui a Ideia encontrou seu coveiro.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A Saga de N. - IV

N. não criara o mundo, já o recebera assim.

Repetia sempre para si mesmo esse mantra em voz baixa o jovem mestrando em História. Também não fora ele quem criara as regras do jogo: apenas jogava em conformidade com elas, sem se perguntar se eram moralmente aceitáveis ou não.

Era o que a vida lhe ensinara.

No secundário, não adiantava criticar o vestibular: primeiro seja aprovado, depois reclame dos processos seletivos e faça alguma coisa para mudá-los. Na vida acadêmica não é muito diferente: primeiro tire seu mestrado, doutorado, pós-doutorado, publique artigos e livros a rodo, apareça bastante na TV e depois, do alto de sua erudição, afirme que é preciso mudar a academia. Você não vai conseguir mudar nada, mas pelo menos as pessoas vão te ouvir.

Por isso N. já se armara desde os primeiros anos de sua graduação: iniciação científica, apresentação de trabalhos, publicação em anais, publicação em revistas, mais iniciações científicas, mais apresentações de trabalhos, mais publicações em anais e em revistas. Sua aprovação no mestrado veio quase que naturalmente, para a surpresa de ninguém, exceto para a sua própria, que esperava uma colocação melhor no processo seletivo.

Mas o que mais enchia N. de orgulho era sua publicação – única, até então – em uma revista de Qualis A2. Publicar em revista A2 era atingir quase o topo da escala evolutiva na produção acadêmica, era beirar o ápice da cadeia alimentar intelectual e chegar bem perto do ponto culminante das letras universitárias. No dia em que N. viu seu artigo publicado na referida revista, sua vida nunca mais foi a mesma. Mudou para melhor.

Não era mais um reles autor de revistas Qualis B ou C. Não! Livrara-se daquela mediocridade. Escapara daquele humilhante calabouço. Ascendera, voara voos mais altos, subira a cumes mais íngremes. Não chegara ao topo, mas bem perto. Vislumbrava, lá de longe – mas não tão de longe quanto antes – o suprassumo da excelência acadêmica: "A1, A1, A1!" - como diriam os espartanos do filme "300"! "A1, A1, A1!", ladravam os cães, a celebrar prematuramente seu triunfo próximo.

A academia era implacável. Por isso era preciso estar sempre à frente. E era com esse pensamento que ia dormir todas as noites: sempre à frente, sempre à frente. Se isso era uma forma saudável de agir, pouco importava. Não criara o mundo: já o recebera assim.

Sua família pequeno-burguesa vivia a alertá-lo:

- Olha lá o seu primo, ganha 8 mil por mês e só tem o ensino médio.

- Olha lá o seu amigo, passou num concurso e ganha 10 mil por mês sem trabalhar quase nada.

- Olha lá o seu irmão, vai passar no concurso pra oficial de justiça e vai ganhar 12 mil por mês.

- Olha lá sua madrasta, fez uma faculdade de moda de apenas dois anos e tá viajando a Europa inteira.

- Olha lá o seu Clodoaldo da farmácia, entrou pra política e já tem três carros importados.

Mas era tudo inútil. N. simplesmente não conseguia mirar-se nos grandes exemplos ao seu redor.

N. carregava um tipo bastante especial de fardo: era o fardo da escolha equivocada. Como errara na hora de escolher seu curso, ou ele dava a volta por cima e mostrava a todos que também poderia “ser alguém na vida”, ou dava o braço a torcer, tornando-se o protagonista de uma crônica de uma morte anunciada, de uma self-fulfilling prophecy.

Por isso era preciso estar sempre à frente. Chegaria um dia o concurso para docente superior, e para não se curvar ainda mais ante à dor do fardo, necessário era estar sempre à frente. Muito à frente. Por isso sua publicação A2 o enchia de orgulho.

Triste foi o dia em que, num momento de ócio, sem muito o que fazer, ao passar os olhos pelo relatório da Capes descompromissado, N. constatara de forma aterradora que não havia A2, que na realidade a revista que publicara seu artigo era, desgraçadamente... B4!

N. demorou a processar aquela informação. Como poderia ser? Certificara-se bem, antes de submeter seu artigo, da avaliação do periódico. Não, não podia ser! Ou podia? Podia ser que a Capes tivesse reduzido a nota do periódico. Acontece sempre nos mais diversos contextos. Há poucos meses mesmo o Brasil tivera sua nota rebaixada pelas agências de risco, de BAA2 para BAA3, tornando-se assim um mau pagador. A presidente e sua equipe econômica correram atordoados à mídia a dar explicações. N. temia ter que fazer o mesmo. Mas a quem daria explicações? E por que meios? Qual canal de rádio ou TV abriria 10, 5, 2 minutos de sua programação que fossem, a fim de que N. pudesse se explicar?

Mas podia ser que a nota da Capes não tivesse nada a ver com isso. Podia ser que N. tivesse se confundido ao mandar seu trabalho. Com tantos nomes parecidos, não era de se surpreender.

Ele pode ter enviado seu artigo para a “Temporalidades Históricas”, quando na verdade a revista A2 era a “Historialidades Temporais”. Ou pode ter enviado para a “História Temporal”, quando na verdade deveria ter enviado para a “Temporal Histórico”. Ou ainda, era bastante provável que tivesse submetido seu precioso artigo à “Tempo da História” pensando estar submetendo-o à “História do Tempo”. Mas o mais provável é que tenha confundido a “História e Tempo” com a “Tempo e História”.

B4, B4... Desgraçadamente B4! De um sopro, N. regredira à escória da cadeia produtiva.

Não conseguia mais se olhar no espelho, pois tudo o que via era um acadêmico B4. Já não se achava mais no direito de desfrutar das companhias costumeiras. Estas, que há até bem pouco tempo pensariam ter um neto, filho, sobrinho, irmão, primo, amigo, colega, conhecido ou ficante A2, agora nada mais tinham do que um neto, filho, sobrinho, irmão, primo, amigo, colega, conhecido ou ficante B4. Como se explicaria para tanta gente?!

O fardo da escolha equivocada foi se tornando cada vez mais irresistível para N.. Cada vez que abria a planilha com as notas da Capes e via aquele B4, aquele maldito B4, tão despretensioso e insignificante em fonte Arial tamanho 10, totalmente ignorante da aflição que causava, N. tinha espasmos de tristeza e raiva.

O primo com seus 8 mil, o amigo com seus 10 mil, o irmão com seus 12 mil, a madrasta na Europa, o Clodoaldo com seus carros importados... Tantos bens e cifras giravam na mente do jovem acadêmico, imprimindo-lhe um misto de vertigem e delírio: “Malditos! Malditos sejam todos! Ao inferno com essa gente! Ao inferno com seu dinheiro, seus carros e suas viagens! Ao inferno!”.

8 mil... 10 mil... 12 mil... Europa... carros... E N. com seu humilde B4. Um simples A2 no Lattes já não significava muito diante de 30 mil, viagens à Europa e carros importados. B4 menos ainda. E era o máximo que ele tinha a oferecer.

Já não estava tão à frente como antes. Nunca estivera, na verdade.

Chegara ao seu prédio estupefato ao fim daquele dia. Pegou o elevador até o oitavo andar. A partir dali seguiria de escada. Já não ouvia mais o grito dos espartanos nem o ladrar dos cães. Só o que ouvia era uma inocente canção que seu cérebro compusera quase que espontaneamente durante seu martírio, baseada em uma antiga melodia:

Não era A2...
Não era!
Não era A2 era...
B4, B4, B4.

Pensou em deixar um bilhete de despedida, mas desistiu. Se não era digno de uma revista A2, não queria mais escrever. Ao saltar do terraço do prédio percebeu o quanto não estava preparado para aquilo. Seu estômago trincou, sua garganta secou repentinamente e seu coração levou um choque, fazendo-o vir a óbito segundos antes de se esborrachar no chão. Sempre à frente, como sempre.

Sua morte foi anunciada no obituário do jornal no caderno A, página 2, mas seu corpo permanece sepultado na quadra B, lápide 4 do cemitério local.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

A heroica saga do professor Cidinho

Acordara atônito o professor Alcides naquela quente manhã – quase tarde – de domingo. Procurou ao redor para descobrir o motivo de tamanha angústia, mas tudo o que achou foi sua aluna deitada no outro lado da cama. Não, não era ela o motivo. Já fornicara com outras alunas antes – o número a perder de vista – e nunca se abalara com isso. Outra coisa estava deixando incomodado o quase sempre seguro e autoconfiante professor do melhor cursinho pré-vestibular de Belo Horizonte.

Com o sol a maltratar seu jovem rosto, as cortinas a balançarem sob efeito do tímido vento que entrava pelo quarto, Cidinho (como era carinhosamente chamado pelos alunos) pôs-se a refletir sobre os eventos da noite passada. Era mais uma das muitas festas que seus alunos haviam dado, convidando o simpático professor. Lembrava-se das alunas que beijara na noite, mas não se lembrava exatamente de qual havia levado para cama.

Cidinho voltou para casa a fim de se recompor e passou o resto do dia deliciando-se com as fotos da festa, especialmente com aquelas nas quais havia sido marcado. Apesar de visivelmente bêbado, não perdia a pose. Ao menos não diante de suas alunas, que rasgavam elogios ao querido professor comentários afora. Nada melhor que um professor carismático, jovial e cheio de si para aliviar os corações e mentes de jovens adolescentes do fardo da pressão de passar nos cursos mais concorridos do país, preservando assim o orgulho de suas famílias e perpetuando a fama de seu cursinho.

Cidinho sabe que dará aula na manhã seguinte, mas aquilo não o abala. Preparar aulas é pra perdedores. Foi essa autoconfiança que o levou até onde está agora. Afinal de contas, até que fazer uma licenciatura não foi tão ruim como ele temia, lá no início de sua vida universitária, ainda sob o influxo de seus fracassos nos vestibulares para medicina e engenharia. Apesar de detestar estudar, de não ter paciência para livros e de não gostar de sala de aula, Cidinho apelou a seus contatos e terminou como uma das grandes atrações do cursinho mais glamouroso da capital mineira. A caminhada para o estrelato foi árdua, incerta, mas valeu a pena. E isso nosso querido professor comprova todos os dias ao fim de cada aula. Raras são as vezes em que não sai de sala cercado por uma turba de alunos e alunas: alguns elogiando-o por seu desempenho na última festa, outros tantos convidando-o para a próxima.

Quando o Audi A3 prata desponta na garagem do cursinho, até o mais desavisado aluno já sabe: é o professor Cidinho chegando. Abaixa os vidros escuros do carro a fim de ver e retribuir os acenos dos alunos admirados e das alunas aficionadas, mas não sem antes aumentar o volume do som, potencializando assim seu triunfo. Instantaneamente todos abrem espaço para o professor passar. Alguns quase se curvam, e a maioria comenta:

- Tá de carro novo – comenta um.

- Não, ele tem dois – emenda o outro.

- A camisa polo dele é nova – repara ainda uma outra.

- Sim, mas essa verde é feia. Preferia aquela lilás, lembra? – responde a amiga.

- Não combina com o cabelo dele.

- Mas combina com o Rolex.

É assim todos os dias da semana em que Cidinho leciona. Chega, bonapartísticamente, passando em revista seus súditos do alto de sua carruagem e reafirmando sua supremacia. Tambores rufando, lágrimas de emoção, tiros ao alto, em uma encenação que faria marejar de inveja o mais poderoso monarca prussiano.

Sua chegada não é uma rotina: é um marco. Não há quem não tenha visto, não há quem não se admire.

Mas o dia começou mal para nosso professor. O funcionário da limpeza o cumprimenta com um triste desdém:

- Bom dia, professor!

- “Bom dia, professor?”. Sou autoridade aqui... Estudei 4 anos à toa não, ouviu?

- Pe... perdoa-me o professor – responde o funcionário encabulado. Desejo um bom dia à sua digníssima pessoa!

Mas o apressado professor mal ouve a última frase e as portas do elevador se fecham, levando-o até o andar ordenado e separando-o do pobre faxineiro.

É a hora do intervalo, os corredores estão apinhados de alunos e funcionários, mas todos os caminhos se abrem ao nobre professor. Destemido, intrépido, autoconfiante, do alto do seu ego ele cavalga todo o longo caminho até a sala, não sem antes travar breves conversas com alguns de seus alunos mais próximos. Provoca os primeiros por causa da derrota do time deles para seu time no último clássico. Escarnece dos segundos por conta do vexame na festa de sábado à noite. Aos terceiros lança olhares maliciosos: são as alunas que ele planeja abocanhar na próxima festa.

Quebrando à direita, quase não percebe a aluna com quem fornicou no mês passado e vai logo confabular com um grupo de oito rapazes que conversam em tom descontraído próximo à escada. O professor Cidinho ouve as aventuras de cada um no fim de semana – eles estavam em outra festa. Entre uma e outra história, Cidinho gaba-se de fazer mais sucesso entre suas colegas do que eles próprios. Os alunos discordam da boca pra fora, mas Cidinho sabe que, lá no fundo, todos se curvam diante de sua majestade.

Triunfa mais uma vez o professor Cidinho!

No dia seguinte, repete-se o triunfal ritual de Cidinho em seu carro.

- Ele me adicionou no Face! – se empolga uma aluna.

- Ele curtiu uma foto minha – responde a outra.

- Ele já pegou uma amiga minha – acrescenta mais outro.

- Aquela que dá no primeiro encontro?

- Não, essa foi o professor de inglês.

Mas repete-se também a triste cena do funcionário da limpeza desavisado. Dessa vez, o audacioso faxineiro quase não nota a presença do professor, resumindo-se a um tímido e breve “oi”.

- Como é?! – pergunta o professor, atordoado.

- Ah, não, nossa...! É o senhor...?

- E quem mais?

- Vossa reverendíssima me perdoe a displicência. Não notei...

- O cursinho inteiro notou!

- Não, nossa... Veja que... bem... Sua reverendíssima senhoria me desculpe a falta de atenção. Desejo um ótimo dia de trabalho, com muita felicidade e prosperidade a sua magnificência e...

Fecham-se as portas do elevador antes que Cidinho ouça o resto. As aulas transcorrem normalmente. Ao chegar em casa à tarde, Cidinho se dedica à segunda parte de seu trabalho: ajudar a fazer o material didático do cursinho. Isso mesmo: Cidinho não se contenta em ser um excelente professor. Ele também dá a sua contribuição na elaboração do texto da apostila. Cidinho nunca gasta mais de uma hora e meia nessa tarefa. Algumas questões rapidamente formuladas da sua cabeça, alguns textos copiados e colados da internet e outras tantas questões copiadas e levemente modificadas e pronto: Cidinho termina seu trabalho. O resto já não é mais com ele. Dá até tempo de abrir uma cerveja e ir para o Facebook postar fotos de sua última viagem ao Peru e Equador.

- Lindoooooooo, profe! – é o primeiro comentário.

- Ameeeei! – lê-se no segundo.

- Aiiii... Qdo cresce qro ser q nem vc prof... conhecer o mundo!!! Que tudo! – proclama o terceiro. E assim vai.

Em menos de cinco minutos seus álbuns de viagem já possuem enxurradas de curtidas e comentários de alunos e alunas. Cidinho tem 1631 amigos no Facebook, mais do que qualquer outro professor do cursinho. A maioria são alunos do cursinho e das aulas particulares. Cidinho tenta se fazer sempre presente na vida de todos eles, mesmo à distância. É por isso que ele não passa um dia sem atualizar seu perfil, seja com uma foto de sua mais recente viagem – Cidinho já conheceu 31 países –, seja apenas de uma garrafinha de cerveja que ele resolveu abrir ali para se distrair após um dia atarefado. Jovem e solteiro, o professor Cidinho atrai a reverência da imensa maioria de suas alunas e ex-alunas. Raríssimas vezes suas postagens possuem menos de 50 curtidas.

Na quarta-feira, Cidinho só dá aula mais tarde. Graças a esse feliz destino, ele evita o desprazer de se encontrar novamente com o faxineiro mal-educado. No elevador, vê um grupo de monitores a quem cumprimenta com o desdém que sua potestade lhe autoriza. No caminho para a sala dos professores, porém, tromba com o infeliz faxineiro. Já mais preparado, o faxineiro pronuncia:

- Bom dia, excelentíssima magnificência!

- Estamos melhorando.

- Às ordens! – diz o funcionário, com um misto de embaraço e alívio.

Após confabular com seus colegas professores, vai ter com um grupo de alunos. Mais conversas, mais piadas, mais triunfos a exaltar: de seu time e de si próprio. Os alunos ponderam se Cidinho já se relacionou com mais meninas daquela sala do que todos juntos, ao que o nobre soberano replica que obviamente sim. Abstém-se, contudo, de citar nomes – talvez porque não se lembrará de todos, talvez porque três ou quatro delas são namoradas de meninos que ali estão. Diante da negativa em fornecer os nomes, os alunos duvidam do professor. Mas Cidinho não se abala. É confiante demais para cair nas maquinações de meros adolescentes.

Ao dirigir-se a seu Audi A3, novo encontro com o funcionário da limpeza:

- Vossa sumo reverendíssima supra-sacro-santíssima bem-aventurada a suma magnificência de vossa magna potestade!

- (...).

Na quinta Cidinho não dá aula. Terá tempo de sobra para fazer e enviar as questões do próximo simulado. Finalmente Cidinho se lembrou por que acordou tão atordoado no domingo anterior! Que bobagem. Elaborar questões só leva um segundo. Tão logo termina seu trabalho, envia as questões à editora. Antes, porém, telefona ao seu colega, coordenador da área, a fim de assegurar que todas as suas questões serão escolhidas para o próximo simulado. Cidinho precisa daquele dinheiro para ajudar a terminar de pagar sua última viagem.

Sexta-feira a chegada de Cidinho é mais triunfal do que de costume – afinal de contas, sexta é quando ele sai para beber com os alunos após as aulas do turno da tarde. Mas o encontro com o faxineiro é o mesmo:

- Vossa sumo reverendíssima magnificente sacro-santíssima, ultra-potentíssima e sumo digníssima excelentíssima majestadíssima!

Como é sexta-feira e o professor está de bom-humor, ele responde:

- Bom dia!

No corredor, alguns alunos revisam a matéria para um vestibular que está próximo:

- Isso aqui no livro tá errado – observa um.

- Como sabe? – questiona o outro.

- O Cidinho não ensinou assim – emenda um terceiro.

- Mas o Fausto sim! – responde o segundo.

- Confio mais no Cidinho – intervém ainda outro.

- E por que?!

- Porque é o Cidinho, ué! O Fausto tá aqui há menos tempo.

- É... é verdade – concluem todos, quase em uníssono, dando ganho de causa ao glorioso... Que aparece logo em seguida:

- Bom dia, galera!

- Bom dia, professor! – novamente em uníssono.

- Já tá sabendo da festa amanhã?

- E a de domingo?

- E a de hoje?

- E a do mês que vem?

- E a da Aninha?

- Você vai?

- Não vai?

- Por que?

- Sério?

- Qual?

- Que horas?

- Com o Audi ou o Toyota?

- Comprou outro?

- Qual?

- Hidráulica? Automático?

- Prata...? Branco...? Vermelho...?

- Vermelho é de viado, hein!

- Prata?

- Meu pai tem um.

- Meu pai vai me dar se eu passar no vestibular.

As aulas de sexta transcorrem normalmente. Cidinho encena situações para explicar a matéria, faz teatrinhos, leva músicas, dança, canta, sobe na cadeira, interage com os alunos que filmam e tiram fotos de tudo. E nesse show business nosso professor vai se projetando no imaginário de todos os alunos da região.

Terminadas as aulas, como prometido, sai para beber com os alunos. Não pode se demorar, porém, pois tem uma festa às 23h – na qual também não poderá se demorar, pois no sábado marcou almoço com uma aluna e pretende chegar apresentável.

- Já vai, professor?

- Cedo!

- Não aguenta bebe cum nóis!

- Aguenta!

- Sim?

- Não!

- Mas já?

- Onde?

- Me dá carona?

- Perto da sua casa!

- Domingo? Claro!

sábado, 14 de março de 2015

Enquanto você dormia

Eu saúdo você, meu amigo!

Você que, após um longo período de sono profundo, acordou de supetão em junho de 2013, metade atordoado, metade empolgado em meio aos gritos que vinham das ruas. Antes de mais nada, como mandam os bons costumes, gostaria de te desejar um bom dia – com um ano e meio de atraso, é claro. Mas pra quem passou cinco, dez, quinze, vinte ou até trinta anos de sua vida dormindo, um ano e meio de atraso no “bom dia” é o menor dos problemas.

Eu vim para lhe colocar a par dos acontecimentos que se desenrolavam em nosso país enquanto você dormia.

Eu noto que você anda meio cabreiro com certas notícias que desfilam pela mídia. Você acordou, e antes mesmo que tivesse tempo para calçar seus chinelos e ir tomar café, já demonstrava profunda irritação com a política externa do atual governo. Manter relações diplomáticas com a chavista Venezuela? Fazer negócios com a revolucionária Cuba? Selar acordos com o ortodoxo Irã? Quanta falta de caráter e bom-senso do PT ao escolher os países com os quais nos relacionamos – você comentava. Ditaduras, todas ditaduras – você bradava.

Sorte sua ter acordado só em junho de 2013. Se tivesse acordado uns quinze ou vinte anos antes, veria como eram infames os amigos com quem trocávamos figurinhas. Teria visto nosso governo e nossas empreiteiras firmarem sólidos acordos comerciais (inclusive no setor militar) com a Arábia Saudita (país governado pela mesma família desde os anos 1930, que proíbe as mulheres de dirigir e estudar e decapita presos em praça pública), com a Líbia de Muammar Khadafi (ditador que governou o país com mão de ferro por várias décadas) e com o Iraque de Saddam Hussein (dispensa apresentações).

Mas pra que incomodar os muçulmanos – suficientemente estigmatizados como radicais – se podemos falar dos ainda mais frequentes acordos que nosso país firmou com a China, um dos países que mais executam presos por ano (grande parte deles, presos políticos)? Consulte os dados da Anistia Internacional ou da Human Rights Watch e verá que a China deixa a Venezuela no chinelo. E não, não foi o PT quem criou laços com a China comunista. FHC esteve lá nos anos 1990, só para citar um dos numerosos exemplos de como nossas relações com esse monstro vermelho são bem anteriores a 2003.

Mas você estava dormindo quando tudo isso acontecia. Por isso não me surpreende que você tenha vibrado quando, no debate presidencial do segundo turno no ano passado, o candidato tucano vociferou que o governo Dilma mantinha relações com ditaduras que desrespeitavam o Poder Judiciário. Você se borra de ódio ao ver os governos do PT mantendo relações com regimes diariamente escrachados pela mídia. Romper com o Irã é necessário; romper com a Venezuela é urgente; romper com Cuba é um imperativo. Mas romper com a China não pode, afinal de contas, é lá que são fabricados (com força de trabalho escrava, diga-se de passagem) os iPhones por meio dos quais você acessa o Facebook para convocar marchas contra o PT.

E quando a presidente Dilma defendeu o “diálogo” com os carniceiros decepadores do Oriente Médio? Horror! O Estado Islâmico é mesmo uma aberração. E quem se importa se, enquanto você dormia, os Estados Unidos matavam mais afegãos e iraquianos inocentes do que os jihadistas do Iraque e Levante jamais poderiam sonhar? Mas com eles a gente não pode cortar relações, afinal de contas, lá tem Playstation 4 barato e Disneylândia.

Ah, mas o Estado Islâmico corta cabeças e manda os vídeos pra todo mundo ver! Sim, é justamente esse o ponto. Uma coisa são 10 linhas, no pé da página do caderno de notícias internacionais, relatando a morte de 55 civis afegãos após um bombardeio “por engano” das forças da OTAN. Outra, completamente diferente, é a imagem, difundida pelos telejornais no horário nobre, de um europeu ajoelhado em frente a um homem prestes a degolá-lo. O que são dez bombas nas cabeças de cem afegãos diante de uma faca no pescoço de um europeu?

E voltando à China: o que me diz daquela história de postar imagens nas redes sociais exaltando a justiça chinesa? Você fica radiante diante da notícia de que políticos corruptos chineses foram condenados à morte. Com isso, conclui que o Brasil precisa de juízes chineses, e não de médicos cubanos.

Vá com calma, meu amigo! Apesar de discordar de suas opiniões, não quero te ver fuzilado. Sabe por que digo isso? Porque esse mesmo juiz que condenou políticos supostamente corruptos à morte já deve ter condenado à morte inúmeros outros presos pelo simples “crime” de fazerem aquilo que você faz quase diariamente: falar mal do governo. Ditadura nos olhos dos outros é refresco, certo?

Vejo também que você tem praguejado bastante contra cotas nas universidades, sejam elas para negros, para pobres ou para ambos. Você vê universidades públicas reservando uma porcentagem de vagas para esses grupos e fica horrorizado, como se cotas fossem algo sobrenatural que o governo petista implementou no nosso país. E se eu te disser que antes, mas muito antes de você sequer começar a dormir, as cotas já existiam? E se eu te disser que, ao longo de boa parte de nossa história, vigorou uma cota de quase 100% de vagas para a elite branca?

É claro que na época não se falava em “cotas”. Só se fala em cotas quando há a possibilidade de um grupo distinto ser contemplado com certos direitos. Mas como, durante esse período, “educação” já pressupunha a ausência de negros, falar em cotas para brancos nas instituições de ensino era tão absurdo quanto falar em cotas para cães em um canil.

Eu sei que é difícil pra você descobrir essas coisas assim, de repente. Era tão mais honroso quando você ainda estava dormindo e achava que o seu vestibular, seu mestrado ou seu concurso público eram frutos unicamente dos seus próprios esforços e dos seus méritos, não era? E digo isso muito mais como uma autocrítica do que como uma crítica. Há alguns anos atrás, eu também acreditaria que o simples fato de eu poder me dar ao luxo de fazer a graduação e a pós-graduação em instituições públicas era resultado do meu esforço pessoal. Levou tempo até eu me atentar que meus esforços eram apenas um detalhe.

Eu poderia ter sido neto de inúmeros senhores – um ex-escravo, um camponês expulso de suas terras que foi errar pela cidade grande ou um meeiro atolado em dívidas. Quis, porém, o destino, que eu descendesse do Dr. Almir Paula Lima. Não fosse pelo apoio financeiro de seu pai, agraciado – sabe-se Deus como – com o cargo de delegado de sua diminuta cidade, o Dr. Almir jamais conseguiria realizar o feito de ser o primeiro natural de Mutum a concluir o ensino superior. E isso no sombrio Brasil de meados do século XX, quando estudar ainda era privilégio de poucos.

Sigamos em frente.

Notei que você anda arisco em relação à corrupção. Acha um absurdo a forma como nossos homens públicos fazem uso dos recursos públicos em prol de seus interesses particulares. Isso realmente é lastimável. Não vou aqui perder o meu tempo explicando que a corrupção já comia solta enquanto você dormia, e muito antes disso também. Pra você que acordou há pouco isso é novidade, mas uma novidade com a qual aos poucos você se acostumará. Também notei que você passou a demonizar os estados do nordeste do Brasil depois que a presidente Dilma foi reeleita em 2014. Você, de fato, acha um absurdo os estados do sul e sudeste do país terem que sustentar o Nordeste. Acha um absurdo São Paulo, Rio e Minas produzirem riquezas enquanto baianos, cearenses e pernambucanos permanecem estagnados. “Nós” geramos riquezas e eles gastam – você sempre diz. “Nós” votamos nos honestos, mas eles sempre elegem os corruptos – você insiste.

Pergunte a seus avós, se ainda os tiverem – ou, dependendo do caso, a seus pais. Se não estiverem já muito esquecidos – e se não estivessem dormindo naquela época também –, provavelmente irão se lembrar da forma como se fazia política por aqui no começo do século passado. Por meio de conluios, Minas e São Paulo asseguravam que somente os seus candidatos fossem eleitos. É claro que às vezes esses estados brigavam, e aí cada um ia para o seu canto. E é claro que por vezes alguns estados do Nordeste (e de outras regiões) também contribuíam para essa falsa democracia. Mas o importante é que, não fosse esse amplo mecanismo de corrupção institucionalizada (coronelismo, fraudes em urnas, rasuras de atas, “degola” de candidatos da oposição), dificilmente Minas e São Paulo teriam a pujança que possuem hoje. E foi em nome desse compromisso com mineiros e paulistas que diversos coronéis governaram o Nordeste por décadas, ajudando-o a tornar-se o que ele é hoje.

Pra quem esteve dormindo até junho de 2013, é muito fácil falar que São Paulo carrega o Brasil nas costas. Difícil é descobrir que por muito tempo ocorreu exatamente o contrário. E você, como se sente ao descobrir que São Paulo foi um dos principais articuladores de um amplo mecanismo de corrupção a nível nacional?

Surpreendente, não?

Acho que você tem se precipitado um pouco em suas denúncias inflamadas, meu amigo. Acordou num impulso e anda por aí a abominar pessoas e instituições que nem sempre o merecem. Lembro-me do profundo ressentimento com que recentemente criticou a alta dos preços nos últimos anos. Essa, segundo você, era a maior evidência de que o governo do PT era ruim inclusive para os pobres. E de fato: se os preços sobem, quem mais sofre é quem tem menos dinheiro, não é? Elementar.

E é justamente pelo mesmo motivo que os impostos no nosso país deveriam recair mais sobre os ricos do que sobre os pobres. Mas isso você não pode admitir, pois todo tipo de política que retire o ônus da classe pobre para distribui-lo nas costas suas e de seus iguais é tido por você como populismo, assistencialismo... Em suma: como mecanismos de estímulo à vagabundagem.

Mas o mais curioso de tudo é vê-lo preocupado com o impacto da inflação nas camadas mais pobres. Logo você, que, enquanto dormia, sempre atribuiu o insucesso dos pobres... aos próprios pobres! Lembra como você dizia que se o pobre se esforçar, se ele trabalhar, se ele se empenhar, ele pode melhorar de vida? Mas agora que você acordou a culpa dos pobres estarem na pior não é mais deles, e sim do governo. Quem te viu naqueles anos de sono profundo, jamais imaginaria que um dia você culparia outra pessoa ou instituição pela deterioração de vida das camadas humildes.

Agora quem se surpreendeu fui eu!

Além de prejudicar as famílias pobres com a inflação, o PT também teria instigado conflitos. Jogou gays contra héteros, negros contra brancos, empregadas domésticas contra patrões. Se isso fosse verdade, seria muito triste, de fato. Mas eu sinto lhe-informar que a verdade é mais triste ainda. Saiba que, enquanto você dormia, centenas de gays eram agredidos e mortos por diversos héteros; que outros tantos negros apanhavam da polícia ou perdiam uma vaga de emprego unicamente por causa de sua cor; que diversas empregadas eram diariamente humilhadas pelos seus patrões das mais terríveis maneiras, mas nada podiam fazer – seja porque não tinham a quem recorrer, seja porque haviam se acostumado de tal maneira a esses ataques que, de fato, aceitavam aquela condição.

E se você conseguia dormir mesmo com tanto caos ao seu redor, é unicamente porque durante muito tempo eles – negros, pobres, mulheres, gays, domésticas – não podiam gritar. Não fosse um grupo de jovens estudantes de classe média gritando para abaixar o preço da passagem de ônibus, conjugado com o clima de uma Copa iminente, provavelmente você estaria dormindo até hoje.

Seja como for, meu amigo, é sempre melhor estar acordado do que dormindo. Só que o despertar é sempre lento, problemático, truncado... Uma única manhã nunca é o suficiente para acordar por completo. E é inútil querer acelerar esse despertar partindo pro abafa, feito um time de futebol tentando virar o placar aos 48 do segundo tempo. Portanto, não adianta assinar petições que obrigam os políticos a usarem hospitais e escolas públicas se você afia suas garras sempre que ouve falar em políticas para favorecer o transporte público em detrimento do transporte individual. Também não adianta visitar a Europa e ficar boquiaberto com as ciclovias, mas esbravejar quando elas aparecem na porta do seu prédio. E, o mais importante: não adianta acordar agora e achar que tudo que está aí sempre foi assim.

Muita coisa acontecia enquanto você dormia.

segunda-feira, 2 de março de 2015

The saga of N.

On the week of his twenty-first anniversary, N. was faced with an astounding fact: he didn’t know how to enjoy life. So many years, so many days, so much time, all overlooked, just like a blank sheet of paper on which no pen has ever dared to venture.

Terrified by such observation, N. decided it was time to act. He grabbed a pen and a notebook and locked himself in his room with the mission of not leaving it before elaborating a powerful strategy to enjoy his life. N. didn’t want to spend the next years of his life the same way he spent his last 21: apathetic, aloof and unable to live every moment intensely.

During the seven days he remained locked in his room, N. established a set of goals for his life: trips to make, parties to go, friends to meet, foods to try, movies to watch and loves to declare… He was already tired of spending his life as if he could afford to live in a mediocre way.

After many nights up, N. finished his job on the morning of his birthday. He was exhausted, but all those days of confinement were worth it. N. could finally live without any fear of making the same mistakes of the past. His set of goals was irreproachable and he was determined to finally start enjoying life.

N. happily left his house on that sunny morning in order to meet his friends and start his new life. As soon as he stepped on the street, he was hit by a beer truck and passed away a few minutes later, just next to the curb. The truck driver carried on without providing any help. He was in a hurry to deliver an order at the house of N.’s mother, who was preparing him a surprise party for his birthday.