Visualizações de página do mês passado

sábado, 14 de março de 2015

Enquanto você dormia

Eu saúdo você, meu amigo!

Você que, após um longo período de sono profundo, acordou de supetão em junho de 2013, metade atordoado, metade empolgado em meio aos gritos que vinham das ruas. Antes de mais nada, como mandam os bons costumes, gostaria de te desejar um bom dia – com um ano e meio de atraso, é claro. Mas pra quem passou cinco, dez, quinze, vinte ou até trinta anos de sua vida dormindo, um ano e meio de atraso no “bom dia” é o menor dos problemas.

Eu vim para lhe colocar a par dos acontecimentos que se desenrolavam em nosso país enquanto você dormia.

Eu noto que você anda meio cabreiro com certas notícias que desfilam pela mídia. Você acordou, e antes mesmo que tivesse tempo para calçar seus chinelos e ir tomar café, já demonstrava profunda irritação com a política externa do atual governo. Manter relações diplomáticas com a chavista Venezuela? Fazer negócios com a revolucionária Cuba? Selar acordos com o ortodoxo Irã? Quanta falta de caráter e bom-senso do PT ao escolher os países com os quais nos relacionamos – você comentava. Ditaduras, todas ditaduras – você bradava.

Sorte sua ter acordado só em junho de 2013. Se tivesse acordado uns quinze ou vinte anos antes, veria como eram infames os amigos com quem trocávamos figurinhas. Teria visto nosso governo e nossas empreiteiras firmarem sólidos acordos comerciais (inclusive no setor militar) com a Arábia Saudita (país governado pela mesma família desde os anos 1930, que proíbe as mulheres de dirigir e estudar e decapita presos em praça pública), com a Líbia de Muammar Khadafi (ditador que governou o país com mão de ferro por várias décadas) e com o Iraque de Saddam Hussein (dispensa apresentações).

Mas pra que incomodar os muçulmanos – suficientemente estigmatizados como radicais – se podemos falar dos ainda mais frequentes acordos que nosso país firmou com a China, um dos países que mais executam presos por ano (grande parte deles, presos políticos)? Consulte os dados da Anistia Internacional ou da Human Rights Watch e verá que a China deixa a Venezuela no chinelo. E não, não foi o PT quem criou laços com a China comunista. FHC esteve lá nos anos 1990, só para citar um dos numerosos exemplos de como nossas relações com esse monstro vermelho são bem anteriores a 2003.

Mas você estava dormindo quando tudo isso acontecia. Por isso não me surpreende que você tenha vibrado quando, no debate presidencial do segundo turno no ano passado, o candidato tucano vociferou que o governo Dilma mantinha relações com ditaduras que desrespeitavam o Poder Judiciário. Você se borra de ódio ao ver os governos do PT mantendo relações com regimes diariamente escrachados pela mídia. Romper com o Irã é necessário; romper com a Venezuela é urgente; romper com Cuba é um imperativo. Mas romper com a China não pode, afinal de contas, é lá que são fabricados (com força de trabalho escrava, diga-se de passagem) os iPhones por meio dos quais você acessa o Facebook para convocar marchas contra o PT.

E quando a presidente Dilma defendeu o “diálogo” com os carniceiros decepadores do Oriente Médio? Horror! O Estado Islâmico é mesmo uma aberração. E quem se importa se, enquanto você dormia, os Estados Unidos matavam mais afegãos e iraquianos inocentes do que os jihadistas do Iraque e Levante jamais poderiam sonhar? Mas com eles a gente não pode cortar relações, afinal de contas, lá tem Playstation 4 barato e Disneylândia.

Ah, mas o Estado Islâmico corta cabeças e manda os vídeos pra todo mundo ver! Sim, é justamente esse o ponto. Uma coisa são 10 linhas, no pé da página do caderno de notícias internacionais, relatando a morte de 55 civis afegãos após um bombardeio “por engano” das forças da OTAN. Outra, completamente diferente, é a imagem, difundida pelos telejornais no horário nobre, de um europeu ajoelhado em frente a um homem prestes a degolá-lo. O que são dez bombas nas cabeças de cem afegãos diante de uma faca no pescoço de um europeu?

E voltando à China: o que me diz daquela história de postar imagens nas redes sociais exaltando a justiça chinesa? Você fica radiante diante da notícia de que políticos corruptos chineses foram condenados à morte. Com isso, conclui que o Brasil precisa de juízes chineses, e não de médicos cubanos.

Vá com calma, meu amigo! Apesar de discordar de suas opiniões, não quero te ver fuzilado. Sabe por que digo isso? Porque esse mesmo juiz que condenou políticos supostamente corruptos à morte já deve ter condenado à morte inúmeros outros presos pelo simples “crime” de fazerem aquilo que você faz quase diariamente: falar mal do governo. Ditadura nos olhos dos outros é refresco, certo?

Vejo também que você tem praguejado bastante contra cotas nas universidades, sejam elas para negros, para pobres ou para ambos. Você vê universidades públicas reservando uma porcentagem de vagas para esses grupos e fica horrorizado, como se cotas fossem algo sobrenatural que o governo petista implementou no nosso país. E se eu te disser que antes, mas muito antes de você sequer começar a dormir, as cotas já existiam? E se eu te disser que, ao longo de boa parte de nossa história, vigorou uma cota de quase 100% de vagas para a elite branca?

É claro que na época não se falava em “cotas”. Só se fala em cotas quando há a possibilidade de um grupo distinto ser contemplado com certos direitos. Mas como, durante esse período, “educação” já pressupunha a ausência de negros, falar em cotas para brancos nas instituições de ensino era tão absurdo quanto falar em cotas para cães em um canil.

Eu sei que é difícil pra você descobrir essas coisas assim, de repente. Era tão mais honroso quando você ainda estava dormindo e achava que o seu vestibular, seu mestrado ou seu concurso público eram frutos unicamente dos seus próprios esforços e dos seus méritos, não era? E digo isso muito mais como uma autocrítica do que como uma crítica. Há alguns anos atrás, eu também acreditaria que o simples fato de eu poder me dar ao luxo de fazer a graduação e a pós-graduação em instituições públicas era resultado do meu esforço pessoal. Levou tempo até eu me atentar que meus esforços eram apenas um detalhe.

Eu poderia ter sido neto de inúmeros senhores – um ex-escravo, um camponês expulso de suas terras que foi errar pela cidade grande ou um meeiro atolado em dívidas. Quis, porém, o destino, que eu descendesse do Dr. Almir Paula Lima. Não fosse pelo apoio financeiro de seu pai, agraciado – sabe-se Deus como – com o cargo de delegado de sua diminuta cidade, o Dr. Almir jamais conseguiria realizar o feito de ser o primeiro natural de Mutum a concluir o ensino superior. E isso no sombrio Brasil de meados do século XX, quando estudar ainda era privilégio de poucos.

Sigamos em frente.

Notei que você anda arisco em relação à corrupção. Acha um absurdo a forma como nossos homens públicos fazem uso dos recursos públicos em prol de seus interesses particulares. Isso realmente é lastimável. Não vou aqui perder o meu tempo explicando que a corrupção já comia solta enquanto você dormia, e muito antes disso também. Pra você que acordou há pouco isso é novidade, mas uma novidade com a qual aos poucos você se acostumará. Também notei que você passou a demonizar os estados do nordeste do Brasil depois que a presidente Dilma foi reeleita em 2014. Você, de fato, acha um absurdo os estados do sul e sudeste do país terem que sustentar o Nordeste. Acha um absurdo São Paulo, Rio e Minas produzirem riquezas enquanto baianos, cearenses e pernambucanos permanecem estagnados. “Nós” geramos riquezas e eles gastam – você sempre diz. “Nós” votamos nos honestos, mas eles sempre elegem os corruptos – você insiste.

Pergunte a seus avós, se ainda os tiverem – ou, dependendo do caso, a seus pais. Se não estiverem já muito esquecidos – e se não estivessem dormindo naquela época também –, provavelmente irão se lembrar da forma como se fazia política por aqui no começo do século passado. Por meio de conluios, Minas e São Paulo asseguravam que somente os seus candidatos fossem eleitos. É claro que às vezes esses estados brigavam, e aí cada um ia para o seu canto. E é claro que por vezes alguns estados do Nordeste (e de outras regiões) também contribuíam para essa falsa democracia. Mas o importante é que, não fosse esse amplo mecanismo de corrupção institucionalizada (coronelismo, fraudes em urnas, rasuras de atas, “degola” de candidatos da oposição), dificilmente Minas e São Paulo teriam a pujança que possuem hoje. E foi em nome desse compromisso com mineiros e paulistas que diversos coronéis governaram o Nordeste por décadas, ajudando-o a tornar-se o que ele é hoje.

Pra quem esteve dormindo até junho de 2013, é muito fácil falar que São Paulo carrega o Brasil nas costas. Difícil é descobrir que por muito tempo ocorreu exatamente o contrário. E você, como se sente ao descobrir que São Paulo foi um dos principais articuladores de um amplo mecanismo de corrupção a nível nacional?

Surpreendente, não?

Acho que você tem se precipitado um pouco em suas denúncias inflamadas, meu amigo. Acordou num impulso e anda por aí a abominar pessoas e instituições que nem sempre o merecem. Lembro-me do profundo ressentimento com que recentemente criticou a alta dos preços nos últimos anos. Essa, segundo você, era a maior evidência de que o governo do PT era ruim inclusive para os pobres. E de fato: se os preços sobem, quem mais sofre é quem tem menos dinheiro, não é? Elementar.

E é justamente pelo mesmo motivo que os impostos no nosso país deveriam recair mais sobre os ricos do que sobre os pobres. Mas isso você não pode admitir, pois todo tipo de política que retire o ônus da classe pobre para distribui-lo nas costas suas e de seus iguais é tido por você como populismo, assistencialismo... Em suma: como mecanismos de estímulo à vagabundagem.

Mas o mais curioso de tudo é vê-lo preocupado com o impacto da inflação nas camadas mais pobres. Logo você, que, enquanto dormia, sempre atribuiu o insucesso dos pobres... aos próprios pobres! Lembra como você dizia que se o pobre se esforçar, se ele trabalhar, se ele se empenhar, ele pode melhorar de vida? Mas agora que você acordou a culpa dos pobres estarem na pior não é mais deles, e sim do governo. Quem te viu naqueles anos de sono profundo, jamais imaginaria que um dia você culparia outra pessoa ou instituição pela deterioração de vida das camadas humildes.

Agora quem se surpreendeu fui eu!

Além de prejudicar as famílias pobres com a inflação, o PT também teria instigado conflitos. Jogou gays contra héteros, negros contra brancos, empregadas domésticas contra patrões. Se isso fosse verdade, seria muito triste, de fato. Mas eu sinto lhe-informar que a verdade é mais triste ainda. Saiba que, enquanto você dormia, centenas de gays eram agredidos e mortos por diversos héteros; que outros tantos negros apanhavam da polícia ou perdiam uma vaga de emprego unicamente por causa de sua cor; que diversas empregadas eram diariamente humilhadas pelos seus patrões das mais terríveis maneiras, mas nada podiam fazer – seja porque não tinham a quem recorrer, seja porque haviam se acostumado de tal maneira a esses ataques que, de fato, aceitavam aquela condição.

E se você conseguia dormir mesmo com tanto caos ao seu redor, é unicamente porque durante muito tempo eles – negros, pobres, mulheres, gays, domésticas – não podiam gritar. Não fosse um grupo de jovens estudantes de classe média gritando para abaixar o preço da passagem de ônibus, conjugado com o clima de uma Copa iminente, provavelmente você estaria dormindo até hoje.

Seja como for, meu amigo, é sempre melhor estar acordado do que dormindo. Só que o despertar é sempre lento, problemático, truncado... Uma única manhã nunca é o suficiente para acordar por completo. E é inútil querer acelerar esse despertar partindo pro abafa, feito um time de futebol tentando virar o placar aos 48 do segundo tempo. Portanto, não adianta assinar petições que obrigam os políticos a usarem hospitais e escolas públicas se você afia suas garras sempre que ouve falar em políticas para favorecer o transporte público em detrimento do transporte individual. Também não adianta visitar a Europa e ficar boquiaberto com as ciclovias, mas esbravejar quando elas aparecem na porta do seu prédio. E, o mais importante: não adianta acordar agora e achar que tudo que está aí sempre foi assim.

Muita coisa acontecia enquanto você dormia.

2 comentários:

Angela disse...

Você sempre muito lúcido em seus argumentos!Realmente talhado para a profissão que escolheu! Analise profunda e completa. Parabéns dessa ia que o admira

Aprendiendo de los realmente sabios disse...


Para alguém que não conhece esta realidade por conta de não viver nela, achei muito gostoso ler uma critica tão clara e profunda, que faz entender um pouquinho da bagunça atual não feita só pelo governo si não pela gente que nem sabe onde esta. Entender um pouco a sua realidade e ver que não é tão diferente da minha e saber que em todas as partes tem pessoas dormindo que acordam esporadicamente quando sua realidade finalmente fica removida pelo sofrimento e dificuldades que outros levam aguentando há muito tempo e que eles têm que começar a viver devido a que alguém tá tentando equilibrar a balança.