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terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Do consenso ao crepúsculo: meus 26 anos - parte 1

Certa vez li, em algum lugar, que precisamos pensar se a criança que nós fomos um dia teria orgulho de nós se nos visse hoje. No meu caso creio que essa resposta seria negativa. Se eu, aos 9 ou 10 anos de idade, soubesse que no futuro eu viraria um professor de história, acho que cairia duro no chão, tamanha a amargura da qual seria tomado. Mas isso não importa. Até porque também não tenho lá muito orgulho da criança que eu fui. Creio que nossas expectativas e nossos conhecimentos vão mudando ao longo dos anos, de modo que aquilo que para nós era uma prioridade passa a ser superficial e vice-versa.

Nasci em um dia 29 de janeiro do ano de 1988. Sou daquela feliz geração que não temeu o holocausto nuclear da Guerra Fria nem viveu a inflação. A União Soviética sempre foi tão distante de minha realidade quanto a Alemanha nazista, e a Ditadura Militar tão distante quanto o Estado Novo. Parece que nasci em um mundo e em um país já prontos, aconchegantes, com tudo arrumadinho para que eu já fosse chegando e me acomodando. Vivi meus primeiros anos em um país democrático, com eleições regulares; era novo demais para entender a inflação e os escândalos do governo Collor. Quando comecei a me entender por gente, essas pendências já haviam sido resolvidas.

Ruim de matemática que sempre fui, fiquei aliviado quando, aos seis anos de idade, me deparei com uma nova moeda, com menos zeros, menos números e, consequentemente, mais fácil de calcular (fiquei tão desacostumado com vários zeros nas notas que, há uns anos atrás, ao visitar a Hungria, enfrentei sérios problemas ao lidar com o dinheiro de lá). Creio que a única lembrança que tenho da inflação foi passear com minha avó pelo supermercado lá pelos idos de 1992 ou 1993 e ver os funcionários remarcando preços compulsivamente. Minha avó reclamava: “olha aí, todo dia os preços aumentam!”.

Vivi em um mundo sem o Muro de Berlim, sem Brejnevs e Gorbachevs; nasci sob a égide do consenso de Washington, que nos assegurava que dali pra frente tudo ia ser diferente. Com tanta placidez e tranquilidade, nem parecia que somente alguns anos me separavam da era dos extremos, com suas bombas, ditaduras, guerras e revoluções.

Graças a tudo isso, estudar história sempre me pareceu um exercício de penosa imaginação. Era difícil entender que aquele mundo tranquilo e pacífico no qual eu vivia já havia sido, há poucos anos atrás, tomado por tanto ódio e sangue quanto os livros e documentários insistiam em dizer. Não poucas vezes me peguei pensando, ao longo dos 1990, por que eu não via tanques de guerra nas ruas, por que eu não via bombas caindo na minha cidade, por que todo mundo podia falar o que quisesse sem ser preso, por que os políticos de então eram tão diferentes daqueles carrancudos de farda que haviam dominado grande parte da cena política do século XX.

Uma das lembranças mais remotas que tenho da minha infância é a de assistir ao noticiário do Jornal Nacional sobre a Guerra do Golfo, em janeiro de 1991. É claro que não entendia nada daquilo tudo, mas me lembro que o nome “Saddam Hussein” ficou marcado na minha cabeça, embora eu só soubesse pronunciar “Sadão Mussein”. Como não sabia direito o que aquela expressão significava, dei o nome de “Sadão Mussein” a todos os soldadinhos de plástico que eu tinha. Também me recordo vagamente do noticiário do Jornal Nacional de 1992 acompanhando a crise no governo Collor. Tanto é que por muitos e muitos anos, até minha adolescência, sempre que se falava em “Fernando Collor” a primeira imagem que me vinha à cabeça era a do William Bonner. Demorou um pouco até que meu inconsciente pudesse separar as duas pessoas – ainda que a imagem da Rede Globo e de Fernando Collor sejam eternamente inseparáveis.

Lembro-me da primeira nota de real que ganhei. Era aquela de um real, que hoje nem existe mais. Foi dada pelo meu avô no dia do jogo Brasil X EUA na Copa de 1994. Aliás, acho que minhas primeiras lembranças mais marcantes datam de exatos 20 anos atrás, quando da realização da Copa do Mundo nos Estados Unidos. Essa foi a primeira Copa à qual assisti, ainda que com meus seis anos de idade eu não pudesse entender muito bem o funcionamento do torneio. De alguns jogos eu me lembro bem (Brasil X Camarões, Brasil X Suécia, Brasil X EUA, Brasil X Holanda, Brasil X Itália e até Alemanha X Coreia do Sul!). No entanto, sempre achei jogos de futebol (assim como filmes) muito longos e cansativos, de maneira que em muitos desses jogos eu preferi me ausentar da sala de televisão na maior parte do tempo para ir fazer outras coisas.

E por falar em copa, nas três primeiras copas que acompanhei, vi o Brasil chegar a três finais seguidas e vencer duas delas. Sempre achei que as partidas de futebol fossem como os filmes, nos quais o bem sempre vence no final – sendo que no futebol o “bem” seria a seleção brasileira. Coincidência ou não, o Brasil venceu em 1994, e eu sinceramente não saberia calcular o tamanho do trauma que eu teria se o Brasil tivesse perdido. Acho que ver o Brasil perdendo um jogo equivaleria a ver um super-herói morrendo e o filme terminando com a vitória do vilão. É o tipo de coisa que eu acho que jamais conseguiria processar direito. Mas, felizmente, eram os anos 1990: tudo ia bem, tudo dava certo. Na minha cabeça de menino, tudo só podia dar certo, não havia outra alternativa. E da mesma forma que eu demorei a entender que o Brasil havia vivido a maior parte de sua história sob regimes repressores, também demorei a entender que o Brasil havia perdido todas as copas nos últimos 24 anos. Não conseguia compreender como meus pais, tios e avós assistiam a uma Copa do Mundo sem o Brasil ser campeão ou finalista.

Aos oito anos de idade, assistindo a um programa na TV, fiquei conhecendo uma das figuras mais aterrorizantes de minha infância. Seu nome era Nostradamus: um francês que fazia previsões sobre o fim do mundo. Estávamos no ano de 1996, e à medida que o ano de 2000 se aproximava, os ânimos se agitavam em várias partes do globo, anunciando o fim do mundo, catástrofes naturais e todo tipo de tragédias. Por alguns momentos eu tive uma pequena amostra do que meus antepassados deveriam ter vivido nos tempos do holocausto nuclear. Conversando sobre isso com minha avó um dia, ela me disse que eu não precisava me preocupar, pois esses assuntos eram coisa de gente grande. Obviamente não fiquei convencido por essa resposta, afinal de contas, eu sabia que se o mundo fosse acabar iria acabar pra todos: adultos e crianças.

Aos nove anos, comecei a me interessar por religiões. Por algum motivo, o cristianismo não me atraía, principalmente o catolicismo. Achava o ambiente da igreja católica extremamente pesado. Morria de medo de imagens de santos e a figura do Cristo crucificado e ensanguentado me causava mal-estar. Foi então que comecei com meus planos de me tornar um monge budista. Não me lembro bem o que me levou a interessar-me pelo budismo. Parecia que a tranquilidade dos ensinamentos budistas contrastava com as inúmeras pragas, guerras e castigos que pululavam nas páginas da Bíblia. A placidez dos monges e dos mosteiros figurava para mim como um refúgio diante da dureza das palavras do pastor (cheias de reprovação e pessimismo), e também diante dos cultos da igreja, marcados por uma cantoria insuportável.

Vindo de uma família protestante por parte de pai, é claro que minha nova ambição não teve uma recepção nada amigável. Entre meus amigos também a recepção não foi das melhores: muitos deles diziam que eu não iria chegar a lugar nenhum com isso. Um colega meu de judô à época me ironizou, dizendo que ele iria ser médico e ganhar muito dinheiro, e iria comprar uma moto Suzuki, sendo que eu não iria ter dinheiro algum, pois ia ser monge, e monges vivem de esmola. Outros tantos apenas se limitavam a dizer que monges não podiam namorar, e que por isso eu ia passar a vida toda sozinho. Desnecessário dizer que essas pataquadas nunca abalaram minha confiança, afinal de contas, casar-me e ter carros importados nunca foram prioridades para mim durante minha infância. Do outro lado da família, meus planos foram recebidos com um pouco mais de entusiasmo, especialmente pelo meu tio-avô, o escritor – e ex-pastor – Rubem Alves que, inclusive, até me presenteou com algumas fotos e reportagens sobre Sidarta Gautama.

Aos dez anos vi minha segunda Copa do Mundo. Foi nessa Copa que aprendi que as partidas de futebol não são como os filmes de ação, mas sim como a vida: às vezes o vilão vence no final. E, enquanto eu via as imagens da multidão em polvorosa no Stade de France após o jogo da final, aprendi que não existem vilões no mundo, apenas heróis. O problema é que quase todos os heróis estão ocupados demais tentando acusar uns aos outros de vilões, de modo que não lhes resta tempo para salvar o mundo.

Não sei ao certo se foi antes, depois ou mais ou menos simultaneamente aos tristes eventos de julho de 1998 que eu comecei a ensaiar um arremedo de insurreição contra aquele mundo arrumadinho e aconchegante do pós-89 no qual eu havia crescido. Sob o influxo das imagens da final da Copa do Mundo, comecei a enxergar com outros olhos os heróis e os vilões da minha infância. Crescendo sob a sombra do consenso de Washington, havia aprendido que os americanos e europeus eram os bons, e que o resto do mundo estava dividido entre aqueles que eram inimigos dos europeus e americanos, e aqueles que deveriam ser gratos aos europeus e americanos por tê-los livrado desses inimigos. Acontece que, em dezembro daquele mesmo ano de 1998, o então presidente dos Estados Unidos Bill Clinton mandou bombardear o Iraque em pleno Ramadan, acusando Saddam Hussein de não cooperar com os inspetores de armas da ONU. Foi a operação “Raposa do Deserto”.

Atônito, eu assistia, pela TV, às imagens que chegavam dos bombardeios. Os sons das bombas se misturavam aos alto-falantes das mesquitas que chamavam os fiéis para as orações e compunham uma melodia infernal. Diante daquilo tudo, eu sentia raiva. Raiva dos Estados Unidos por bombardearem um país à revelia de tudo e de todos. Raiva por saber que muitas pessoas inocentes morriam sob aquelas bombas. Raiva por perceber que, no confortável mundo pós-89, os Estados Unidos podiam fazer o que bem entendessem, como bem entendessem, pois não havia ninguém de peso para impedi-los. Pelo visto, o exército norte-americano não era tão bonzinho quanto os filmes da Sessão da Tarde nos queriam fazer acreditar. Perguntei ao meu pai, revoltado, por que o Iraque não contra-atacava, e ele disse que os iraquianos não tinham poder de fogo para tal. Fui tomado por um sentimento de impotência. Viver sob o consenso de Washington foi se tornando cada vez mais penoso. Os iraquianos não eram vilões, como a mídia tentava mostrar, assim como também não eram vilões os índios dos filmes de faroeste. Os vilões eram justamente aqueles que sempre venciam no final dos filmes.

A partir de então, sempre que brincava com meus soldadinhos de plástico, traçava enredos nos quais os Estados Unidos eram fragorosamente bombardeados, como que em uma vingança pelo que haviam feito com outros países. Entre os alvos preferidos estavam a Casa Branca, o Pentágono e o Capitólio. Lembro-me até de ter começado a escrever uma história na qual uma coalização de países árabes se unia para atacar os Estados Unidos, mas meu projeto não foi adiante. Penso que essas eram as melhores formas que eu tinha de externar minha indignação com tudo aquilo. Guardo até hoje um infográfico que a Folha de São Paulo publicou à época sobre esse episódio. O infográfico trazia um mapa do Iraque com as regiões atacadas e duas bandeiras – a iraquiana e a norte-americana, esta última rabiscada por mim em um momento de desgosto.

No ano seguinte, em 1999, Saddam Hussein saiu de cena para dar lugar a Slobodan Milosevic, ditador sérvio acusado de cometer atrocidades contra minorias étnicas no Kosovo. E novamente os Estados Unidos tomaram as rédeas da situação, bombardeando a Iugoslávia com o apoio da OTAN e despertando a ira de Rússia e China, além da minha própria. Novamente me veio aquele sentimento de impotência, enquanto os jornais noticiavam todos os dias novas mortes de civis sob os ataques das forças da OTAN. Mais do que nunca, os norte-americanos me davam asco, nojo, repulsa. Tomado por um anti-americanismo pueril, comecei a hostilizar tudo o que viesse daquele país – e isso bem no auge das boy bands! Detestava os Backstreetboys, o N’Sync, as Spice Girls (afinal, a Inglaterra era cúmplice dos bombardeios no Iraque e no Kosovo), não só pela sua música, mas também porque eles eram símbolos do imperialismo cultural norte-americano. Ridicularizava minhas colegas de escola que ouviam essas bandas. Foi com muito custo que, nessa mesma época, meus pais conseguiram me matricular num curso de inglês, de onde eu certamente teria pedido para sair, não fosse a extrema facilidade que encontrei no aprendizado desse idioma.

Mas o tempo passou, o ano 2000 passou (para o meu alívio!) e chegou o ano de 2001. Nunca vou me esquecer de duas cenas nesse ano. A primeira delas foi um vídeo exibido pelo Jornal Nacional em fins de agosto ou princípios de setembro no qual o famoso terrorista saudita Osama bin Laden ameaçava os Estados Unidos. A segunda delas foi aquilo que, acredita-se, tenha sido a concretização dessa ameaça: os ataques de 11 de setembro de 2001.

Acho que essa foi uma das datas mais marcantes da minha vida. Minhas brincadeiras de soldadinhos, bombardeiros e tanques de guerra de plástico se tornavam reais bem em frente aos meus olhos. Os ataques aos Estados Unidos que eu tanto ensaiara com meus pequenos exércitos e pelos quais eu sempre torcia, para vingar sérvios e iraquianos, se concretizavam nas imagens que eram exaustivamente repetidas em literalmente todas as redes de televisão naquele momento. Não soube bem como reagir àquilo tudo num primeiro momento. Só fiz questão de memorizar detalhadamente tudo naquele dia: o que eu tinha feito, qual era meu dever de casa, quais tinham sido minhas aulas de manhã – tudo para, um dia no futuro, poder contar a alguém: “no dia 11 de setembro de 2001 eu fiz...”. Nunca, em toda a minha vida, eu tinha tido tanta consciência de estar vivendo um momento histórico.

Não vivi a era dos extremos, mas vi o que nenhuma outra pessoa que viveu naqueles anos jamais havia visto: os Estados Unidos sendo atacados em seu próprio território. E o mundo do consenso de Washington desabava ali, à minha frente, junto com as torres do World Trade Center. Era o crepúsculo dos deuses do século XXI. Antes mesmo que eu ouvisse qualquer jornalista especular sobre a autoria dos ataques, eu já dizia para mim mesmo, com toda a certeza, quem era o suspeito número um. Era ele, só podia ser ele: o mesmo responsável pelos ataques às embaixadas norte-americanas na Tanzânia e no Quênia em agosto de 1998; o mesmo responsável pelo vídeo que, há poucas semanas atrás, mostrava terroristas em campos de treinamento no Afeganistão e emitia mensagens de ódio ao “grande satã”.

Curiosamente, o caderno internacional da Folha de São Paulo daquele dia 11 de setembro trazia uma notícia sobre o assassinato de Ahmad Shah Massoud, o líder da resistência afegã ao Talibã. Fiz questão de guardar a edição do dia 12 de setembro, que trazia estampada uma enorme foto do World Trade Center em chamas e o seguinte chamado: “EUA sofrem maior ataque da história”. Tenho essa edição até hoje, mas dessa vez me abstive de vandalizar a bandeira americana.

Confesso que me senti parcialmente responsável por aqueles ataques. Foram tantos anos praguejando contra os Estados Unidos e brincando de ataques ao Pentágono e ao Capitólio, que eu não consegui acompanhar aquelas imagens sem um pingo de culpa. Senti-me como um cachorro que, correndo incansavelmente atrás de um carro, fica sem saber o que fazer quando o carro finalmente para. Eis que os símbolos do poder do país que eu mais odiava no mundo haviam sido atacados: os Estados Unidos passaram de agressores a agredidos, “colheram o que plantaram”, como eu mesmo disse à época. Mas não: eu não estava feliz.

Enquanto bombas caíam sobre o Afeganistão, o ano de 2001 passava e chegava o ano de 2002. Havia mais uma Copa do Mundo pela frente. Precavido pela Copa de 1998, assisti aos jogos com um pouco mais de cautela, pois havia aprendido que nem sempre as copas acabam bem. 2002 deve ter sido a Copa mais feliz que já vi, não só porque o Brasil venceu, mas também porque seleções até então pouco tradicionais conseguiram um desempenho notável em detrimento das seleções mais badaladas: o Senegal bateu a França, a Coreia do Sul eliminou Itália e Espanha. Lembro-me que fiquei fascinado pela seleção turca, que por duas vezes enfrentou o Brasil e por duas vezes quase venceu. 2002 havia sido, na Copa do Mundo, o que 2001 fora na geopolítica: os algozes viraram vítimas, e vice-versa.

E o impacto dos eventos de 11 de setembro continuava a se fazer sentir sobre mim como nunca. Como não tivesse muitas pessoas para conversar sobre o assunto na vida real, recorri ao único mecanismo pelo qual poderia externar minhas angústias e convicções: a internet. Antes do Facebook, do Orkut e de quaisquer outras redes sociais surgirem, a melhor alternativa para quem gostava de debates eram os fóruns. E havia-os dos mais variados assuntos. Inscrevi-me certa vez num fórum sobre história, que reunia, principalmente, pessoas de esquerda. Esse fórum saiu do ar por algumas vezes, até que um belo dia ele saiu do ar definitivamente. Os antigos membros dele construíram outro fórum em outro endereço. Com o tempo, porém, esse fórum foi ficando cada vez menos movimentado, até praticamente implodir por inanição. Foi quando descobri um outro: o fórum comunismo.com.br, muito mais movimentado. Diferente dos anteriores, porém, o comunismo.com era uma verdadeira Floresta Amazônica de posições ideológicas. Foi nesses fóruns que comecei a conhecer os posicionamentos políticos, a entender as diferenças entre a direita e a esquerda e a me comportar em uma discussão. O único problema é que no comunismo.com, mais do que debatedores sérios, o que mais se viam eram caricaturas. Os membros de esquerda eram, quase todos, stalinistas, maoístas e defensores da Coreia do Norte e do domínio chinês sobre o Tibet e Taiwan. A direita, por sua vez, reunia desde os entusiastas de Pinochet e da Ditadura Militar Brasileira até os sionistas fanáticos pró-Israel e defensores da família, da Igreja e da propriedade privada. E um ou outro nazifascista sempre ficava perdido em meio ao tiroteio. O mais engraçado nos debates é que direita e esquerda, capitalistas e comunistas, rejeitavam a paternidade do fascismo. Ambas brigavam entre si enfurecidamente, uma empurrando para a outra a responsabilidade por aquele rebento bastardo.

Tendo em vista que esses foram meus primeiros contatos com o debate político-ideológico, até hoje a visão que tenho da direita e da esquerda é mais ou menos marcada por tais estereótipos. Acho que vai demorar um pouco até desvaneçam essas visões caricaturais inculcadas na minha cabeça.

Em 2003, aos 15, candidatei-me a uma vaga no programa de intercâmbio de jovens do Rotary Club. Conseguindo o primeiro lugar na classificação, pude escolher o país, e optei pela Malásia. Poderia ter ido ainda para as Filipinas, o Canadá, os Estados Unidos, a Alemanha ou Austrália, mas não me arrependi de minha escolha. Duas coisas especialmente curiosas aconteceram ao longo de minha seleção para intercâmbio. A primeira delas foi que, em um dos primeiros processos seletivos que fiz para intercâmbio, a redação consistia de uma carta. Tínhamos que imaginar como seria nossa primeira carta enviada aos nossos pais no Brasil após um mês de intercâmbio nos Estados Unidos. Acontece que eu não queria fazer intercâmbio naquele maldito país imperialista, de modo que fiquei um bom tempo pensando o que eu escreveria naquela redação. Acho engraçado como eles já partem do pressuposto de que todo mundo quer fazer intercâmbio nos Estados Unidos.

O que me leva ao segundo fato curioso. Quando passei no processo seletivo (na minha terceira tentativa, se bem me lembro), o Rotary Club dos Estados Unidos haviam exigido que eles só admitiriam o intercambista que tivesse passado em primeiro lugar na seleção. Ah, os Estados Unidos! Sempre exigentes, sempre arrogantes, sempre pretensiosos... Até hoje me pergunto: como será que os rotarianos daqui do Brasil explicaram aos seus colegas norte-americanos que o primeiro colocado tinha escolhido a Malásia, e não os Estados Unidos? Depois de todos aqueles anos vendo bombas norte-americanas caindo sobre o Iraque e o Kosovo, acho que isso foi o mais perto que já cheguei de uma vingança.

Do consenso ao crepúsculo: meus 26 anos - parte 2

Não há espaço suficiente aqui para relatar meus doze meses (junho 2004-junho 2005) vivendo nesse distante país (já o fiz de forma mais detalhada nos posts “Páginas de combate – I e II”). Apenas faço questão de dizer, a todos aqueles que acham que foi uma experiência incrível em um país exótico, recheada de estranhamentos e choques culturais: vocês não poderiam estar mais enganados. Passei minha juventude lendo sobre Cristóvão Colombo, Marco Polo e Vasco da Gama, que em suas viagens se deparavam com o fantástico e o desconhecido... Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que os “nativos” da Malásia viam futebol inglês, ouviam música pop americana e adoravam filmes de Hollywood. Minha esperança de um dia sentir o que os grandes navegantes do passado sentiram foi totalmente frustrada. Acho que essa foi a melhor aula de globalização que eu jamais terei na vida.

Nesses doze meses, vivi com seis famílias diferentes. Em uma delas havia um senhor cujo nome já não me lembro, mas que era um dos principais intelectuais que criticavam o regime político do país. Em outra família havia o Dr. Xavier Jayakumar, que, além de rotariano, era uma importante liderança de um dos principais partidos de oposição no país, o Keadilan Rakyat. Soube, por conversas paralelas, que ele já havia sido preso algumas vezes por participar de manifestações contra o governo. A Malásia é governada pela mesma coalização política desde a sua independência em 1957, sendo que organismos como a Anistia Internacional, a Transparência Internacional e os Direitos Humanos fazem constantes denúncias de abuso de poder, fraudes eleitorais e perseguições políticas – nada que abale a confiança das tradicionais elites políticas do país.

Lembro-me bem que participei de alguns encontros e manifestações organizados pelos partidos de oposição, contrariando orientações que foram dadas a todos os intercambistas no começo de nosso intercâmbio. Eles nos diziam que a política na Malásia era algo complexo e perigoso, e que, para o nosso próprio bem, deveríamos nos abster de penetrar nesses meios. Mas nada disso conseguiu me segurar. Aos poucos fui ficando fatigado por aquele país que se mostrou tão mais ocidentalizado do que eu esperava, e eu queria mais emoções. Com o Dr. Xavier, frequentei eventos de grandes dimensões, onde tive contato, ainda que rápido, com importantes figuras da oposição política malaia, como Anwar Ibrahim e sua esposa (com quem, inclusive, tirei uma foto). O mais curioso é que, nas conferências dos partidos de oposição, havia desde partidos de extrema-esquerda até partidos fundamentalistas islâmicos, passando por agremiações liberal-democráticas. Todos unidos apenas na oposição ao status quo, mas com propostas bastante diferentes. Era quase como se, aqui no Brasil, o PSOL e o DEM fizessem conferências conjuntas, unidos apenas pela oposição ao governo do PT. Nesses encontros, observei cenas pitorescas, como a de um jovem com camisa do Che Guevara e boina com estrela vermelha, de um lado, e um senhor barbudo com um turbante islâmico, do outro. Passava horas imaginando se e como tudo aquilo poderia um dia dar certo.

Mas um dia esse meu atrevimento quase me custou caro. Como já disse: os casos de perseguição e até de tortura a membros da oposição política no país são graves. Acontece que um dia viajamos de Klang (cidade onde morei) até Temerluh, no interior do país, para participar de um desses encontros. Fui com o Dr. Xavier e alguns de seus correligionários. Voltamos no mesmo dia, já quando a noite caía, e o Dr. Xavier dirigia muito rápido, pois sua esposa o pedira para que não chegasse muito tarde. No meio da rodovia nosso carro foi parado em um posto policial. Um guarda se aproximou e alertou-o de que os radares na rodovia haviam detectado sua alta velocidade. Ele tentou se explicar, dizendo que precisava chegar cedo em casa. Conversa vai, conversa vem, o policial olhou a carroceria da caminhonete e viu as bandeiras dos partidos de oposição lá atrás. Então perguntou-lhe se ele estava voltando de alguma manifestação da oposição, ao que o Dr. Xavier confirmou que sim. Naquele momento, um clima pesado pairou no local. Todos no carro pareciam pensar exatamente a mesma coisa: “isso não vai acabar bem”. E realmente, era uma situação que tinha tudo para não ter final feliz. A polícia da Malásia é fortemente ligada ao governo, sendo um dos seus principais instrumentos de repressão. Isso sem mencionar o fato de que ela é tida como uma das mais violentas do mundo, conforme a esposa do Dr. Xavier me contou. Ela também havia me contado de inúmeros casos de maus-tratos de policiais contra pessoas ligadas à oposição.

E justo quando nada parecia poder piorar, eu me lembrei de um detalhe: havia esquecido meu passaporte em casa. Estava sem nenhuma documentação comigo naquele momento. Se o policial olhasse para o banco de trás e visse que havia ali um estrangeiro, certamente ele iria implicar. Se o establishment malaio não tolerava ameaças ao status quo, imagine então intromissões de estrangeiros? O que pensaria o policial ao ver um ocidental dentro de um carro que retornava de um evento organizado pela oposição? Qualquer regime autoritário ou totalitário tem horror à mais discreta manifestação de contestação. Mas a ideia de que estrangeiros possam estar por trás dos movimentos de oposição lhes-é dramaticamente insuportável. Basta ver como os nazistas denunciavam o “bolchevo-judaísmo” soviético, ou os maoístas acusavam os intelectuais de agirem mancomunados com o imperialismo ocidental.

Não sei se o guarda notou a minha presença ali. Só sei que, num determinado momento daquela conversa que deve ter durado no máximo dois minutos (mas que me pareceu uma eternidade), o policial falou, em inglês: “but I will release you (mas eu vou deixa-los ir)”. Essa frase foi tão inesperada que o Dr. Xavier até riu, como se acreditasse que o policial estivesse fazendo chacota. Estávamos já tão acostumados com a ideia de que o tempo iria se fechar para nós, que nem acreditamos quando ouvimos aquela frase. O policial se despediu dizendo algo do tipo: “você está com pressa, vai com calma, não precisa correr”. E um silêncio sepulcral tomou conta do veículo por alguns instantes. Misto de alívio e medo.

Os próprios habitantes da Malásia não pareciam, de modo geral, demonstrar muito interesse por política – pelo menos até abril de 2013. Poucos meses antes da nossa “primavera brasileira”, a Malásia foi tomada por intensas manifestações que partiam, sobretudo, da juventude. Tais manifestações ocorreram durante as eleições e acusavam o Barisan Nasional (coligação governista) de manipular os resultados das eleições por meio de fraudes, como urnas que chegavam às seções eleitorais carregadas de votos e concessões de títulos de eleitor para trabalhadores estrangeiros que eram pagos para votarem no candidato da situação.

Talvez por influência das experiências com a política malaia, e também incentivado por meu interesse precedente por história e política, quando voltei ao Brasil comecei a dar meus primeiros passos no movimento estudantil secundarista. Esse envolvimento só aumentou quando entrei na universidade. Não preciso dizer que grande parte dos encontros estudantis eram regados a muita bebida, maconha e festas, além de todas as ocorrências subsequentes. Marxistas, trotskistas, stalinistas, maoístas, socialdemocratas e toda a sorte de posicionamentos políticos se manifestavam e se conflitavam nesses eventos, verdadeiros zoológicos ideológicos. Lembro-me, por exemplo, no Congresso da UNE em Brasília em julho de 2007, de ver a juventude do então recém-renomeado DEM (ex-PFL) chegando à UnB meio desconfortável, meio esquisita, completamente deslocada diante daquele monte de bandeiras vermelhas.

Um ano mais tarde, fui a um encontro de partidos marxista-leninistas na UERJ. Ficamos alojados em um ginásio na Escola de Educação Física, e nunca me esquecerei de quando um dos militantes solicitou que o espaço do ginásio fosse dividido em dois: de um lado os homens, do outro as mulheres. Quem diria: nem um encontro de partidos marxista-leninistas consegue escapar à velha segregação sexual tão típica da sociedade burguesa... Durante o dia, ouvíamos discursos, palestras e palavras de ordem clamando pelo socialismo e atacando a hipocrisia dos valores morais de nossa sociedade capitalista, que não respeita as minorias e promove a desigualdade social e de gênero. À noite, como em um acampamento bíblico, dormíamos todos separados, homens e mulheres, perpetuando aqueles mesmos valores conservadores.

Sempre fui um mero observador nesses encontros, abstendo-me de tomar parte ativamente na sua organização e realização. Conversando com uma das militantes ali presentes, soube que muitas lideranças desses movimentos desencorajavam seus militantes a manterem relações afetivas durante esses encontros, sob a alegação de que tais relacionamentos desviariam o foco principal do evento, que era contribuir para a revolução socialista. Assim, sempre que ela se envolvia com alguém em um encontro, ela se “confessava” com os líderes, afirmando que reconhecia seu erro, mas admitindo que muitas vezes a “carne” era mais forte e acabava conduzindo a esse tipo de ação.

Após anos e anos de rusgas com militantes virtuais de direita, eu finalmente entendia o que eles queriam dizer quando afirmavam que o marxismo muitas vezes subia à cabeça de certas pessoas e acabava virando um credo.

Apesar de todo esse envolvimento com o movimento estudantil, com o tempo percebi que eu nunca levei jeito para a coisa. Detestava passar em salas de aula para dar recados sobre eleições, não tinha preparo emocional para discutir cara a cara com rivais (já que toda a minha experiência em discussões políticas se resumia a fóruns na internet) e não me sentia confortável empurrando panfletos para as pessoas em dias de eleição. Com o tempo, fui me afastando desse meio, muito embora eu admire bastante as pessoas que têm disposição para permanecer nele.

Apesar desses percalços, a vida universitária para mim significou, acima de tudo, uma coisa: liberdade. Em contraposição ao ambiente escolar, onde tínhamos toda uma rígida rotina de disciplinas e conteúdos que dificilmente contribuiriam para a minha vida e para a minha formação, a universidade sempre foi, para mim, um lugar de autonomia. Sei que a quase totalidade de meus colegas da UFMG irá rir dessas palavras, mas eu asseguro que nunca consegui partilhar do ódio que muitos deles sentem pelo ambiente acadêmico, em especial pela FAFICH. E o apreço que sinto pelo ambiente universitário tornou-se ainda maior desde que comecei a trabalhar em um colégio/cursinho pré-vestibular. À medida que eu ia passando mais tempo no colégio e menos tempo na universidade, me sentia cada vez mais sufocado. As exigências dos processos seletivos abafam nossa capacidade de questionamento e de discussão. Ao invés de gastar as tardes na universidade estudando, lendo, me informando e debatendo, passei a gastá-las em uma sala, auxiliando os alunos e alunas a marcarem o X no lugar correto.

Falem o que quiserem da universidade e de seus inúmeros defeitos: diante da escola, ela continua sendo um espaço de autonomia, de independência, onde eu posso me levantar e dizer que não concordo com este ou aquele ponto de vista. Nas escolas e cursinhos, há uma apostila e há os professores, e, como um monitor, meu discurso precisa se conformar ao discurso deles. Não posso dizer que essa ou aquela informação do material didático está errada, pois os alunos são ensinados a cultuar o livro de história como uma escritura sagrada. Não posso nem arriscar um pequeno palpite que coloque em xeque suas informações. “Como assim o livro está errado? Como assim o professor está errado?”, perguntam-se os alunos, atônitos. Entre a palavra das sagradas escrituras e a palavra do professor, de um lado, e a palavra de um reles monitor, do outro, é fácil descobrir qual percurso o aluno vai traçar. Estamos formando pessoas aptas a acreditar piamente em tudo aquilo que é dito por uma pessoa que se dirige a uma multidão do alto de uma pequena plataforma, e a desconfiar de tudo aquilo que é dito por uma pessoa em pé de igualdade.

É óbvio que eu não quero aqui desqualificar o trabalho dos professores do colégio ou do cursinho – longe disso. O que eu quero desqualificar é essa noção do ensino de história como uma mera ferramenta para a busca de respostas certas. Os pré-vestibulandos estão cada dia mais ávidos por achar as respostas corretas, mas cada dia menos capazes de fazer as perguntas adequadas. Por isso temos debates escabrosos, do tipo: “você é a favor ou contra o aborto?” ou “você é a favor ou contra a redução da maioridade penal”, quando, na verdade, as perguntas deveriam ser “por que as mulheres abortam?” e “por que menores de 18 anos praticam crimes?”. Os alunos não conseguem perceber que quem tem o monopólio das perguntas tem o monopólio do debate. Acostumados a lidarem com as perguntas como fórmulas preconcebidas e não passíveis de debate, nossos jovens se digladiam na busca das respostas corretas para as perguntas erradas.

Foi na universidade que tive a oportunidade de ingressar em minha segunda e última experiência internacional. Ela se deu em outubro de 2011, após ser aprovado para o programa de mobilidade internacional acadêmica da UFMG. Passei cinco meses na Alemanha, estudando na Universidade de Augsburg, experiência que já relatei exaustivamente nos meus posts “Confissões de Augsburg”. Não sei como comentar minha experiência na Alemanha sem incorrer em clichês cansativos, do tipo “é um lindo país”, “a universidade é fantástica”, “a biblioteca é incrível” e “as aulas são extremamente produtivas”. Isso sem mencionar o inefável prazer de estudar no frio, em comparação com o calor do verão brasileiro que me deixa modorrento. Não fiz muitos amigos na Alemanha. Aliás, posso contar nos dedos de uma mão o número de amigos alemães que fiz. É muito difícil ser uma pessoa calada e querer socializar num país onde todo mundo é quase igual a você. Ainda assim, não posso deixar de ressaltar que nutri profundo apreço por todos os professores com os quais tive aula. Gostaria de ter mantido mais contato com eles; gostaria de encontra-los de novo, algum dia, em algum congresso, quem sabe.

Os meses que se seguiram ao meu retorno da Alemanha, em fevereiro de 2012, não apresentaram nada de novo. Voltar do intercâmbio é sempre uma tarefa difícil, mas, dessa vez, foi ainda pior do que da primeira vez. Não consigo me livrar de uma nostalgia boba dos tempos de intercambista, das viagens feitas e das experiências que somente terras estrangeiras poderão te proporcionar. Talvez porque eu saiba que ainda vai levar muito tempo até que eu volte a viver tais experiências.

Ao fim de 2012, as profecias do fim do mundo voltaram, desta vez prometendo a catástrofe para o dia 21 de dezembro. Curiosamente, não consegui sentir tanto medo como eu havia sentido quando criança. Depois que eu descobri os vestibulares, as seleções para mestrado e as entrevistas para emprego, a ideia do fim do mundo deixou de me assustar. Acredito que a idade de um ser humano pode ser medida de acordo com seus medos. Meus primeiros medos eram de fantasmas no meu quarto enquanto dormia. Meus segundos medos foram as previsões do fim do mundo. Meus medos atuais envolvem crises econômicas e desemprego.

Em 2013, aconteceu a única coisa que me deixou tão ou ainda mais impressionado que os ataques de 11 de setembro. Ao longo da Copa das Confederações, os brasileiros saíram às ruas para protestar contra os excessivos gastos da Copa do Mundo e exigir que igual atenção fosse dada a outros setores, como educação e saúde. Diante de tantas pessoas, tantas faixas e cartazes com os mais diferentes jargões e demandas, acho que essa é a definição mais genérica que posso dar à dita “primavera brasileira”. Demorei dias, talvez semanas, para acreditar nas cenas que via na televisão. Cidades inteiras paralisadas por protestos, desde as mais importantes do país até aquelas do interior. E eu, que vivi os pacíficos anos 1990 para depois surfar na onda de otimismo do início dos anos 2000, finalmente compreendi como nunca o que meus livros de história diziam sobre a tumultuada vida política de nosso país até o ano de 1985. Não que eu nunca tivesse participado de manifestações de rua antes. Fi-lo por várias vezes, mas, naquela época, manifestar-se ainda era visto com hostilidade pela mídia e, principalmente, pelos motoristas que ficavam presos no trânsito. A partir do momento em que os barbudos de blusas e bandeiras vermelhas perderam o monopólio dos protestos, estes viraram a menina dos olhos da opinião pública.

Não conseguiria fazer aqui mais julgamentos a respeito das manifestações de junho de 2013, até porque considero-as incompletas. Nesse ano acontecerá a Copa do Mundo propriamente dita, e tudo indica que os protestos irão continuar e se intensificar. Talvez esse seja o crepúsculo dos deuses para a minha geração, desacostumada à inflação e às crises políticas e econômicas. A uma fragorosa derrota da seleção brasileira na Copa do Mundo, seguir-se-á um abalo econômico sem precedentes, decorrente dos gastos com o evento, engendrando mais manifestações, mais descontentamento e trazendo, com força, tudo aquilo que os anos 1990 pareciam ter sepultado. As imagens das Copas de 1994 e 2002, do otimismo do Plano Real e das benesses do governo Lula ficarão para trás, e abrir-se-á um novo perigo negro na nossa história.

Não temo tanto por minha geração, mas por aqueles que nasceram um pouco mais tarde, na segunda metade dos anos 1990, cujas infâncias coincidiram com o Plano Real e cujas adolescências coincidiram com o governo Lula. Os famosos rolezeiros, que tanto pânico e horror têm trazido aos shoppings do nosso país (pelo menos de acordo com a mídia), são parcela dessa geração. Acostumados com o crédito fácil e desfrutando do ápice do crescimento brasileiro, muitos desses jovens encarariam uma crise econômica com mais espanto do que se se deparassem com um disco-voador ou uma mula-sem-cabeça. Seria o crepúsculo da nova classe média; o crepúsculo dos rolezinhos. Experiência análoga à da geração que nasceu no conforto da era de ouro dos anos 1950 e teve sua adolescência fraturada pelas crises de 1970 e 1980, de onde foram paridas as mais escabrosas experiências políticas, como skinheads e neonazistas.

De 1988 a 2014, do consenso de Washington ao crepúsculo dos rolezinhos, da Copa de 1994 à Copa de 2014: assim se desenrolou minha vida até aqui. De um aspirante a monge budista a um ingênuo anti-americanista fã de Saddam Hussein, Slobodan Milosevic e Osama bin Laden, passando por militante-observador do movimento estudantil até um desconfiado historiador que tem muito mais dúvidas do que certezas, percorri vários caminhos e tive várias experiências. Talvez a criança que eu fui nunca tenha orgulho do adulto que ela virou, mas ainda tenho fé que o adulto que sou hoje terá muito orgulho do idoso em que me transformarei daqui a alguns anos.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Caio, o estudante de cursinho politizado

Caio é um jovem estudante de 18 anos de idade de Belo Horizonte. Ele se formou no ensino médio em uma excelente escola particular no fim de 2012 e tentou vestibular para medicina. Infelizmente, sua pontuação no ENEM não foi boa o suficiente. Agora ele é um aluno assíduo de um dos melhores cursinhos da cidade.

Caio passa quase todos os dias no cursinho. Assiste a todas as aulas que pode, anota tudo que consegue, pergunta tudo o que não sabe e até o que sabe. Caio não pode se dar ao luxo de fracassar novamente em sua empreitada, pois esse sempre foi o seu maior sonho: ser médico igual a seus pais. Ele acredita que seu curso de medicina lhe dará o conforto financeiro e a satisfação profissional que ele espera.

Caio só usa roupas de marca: Hollister, Abercombie, e tudo o mais que os homens na moda estiverem usando, sempre combinando com uma bermuda também da moda, em cujo bolso ele traz seu iPhone fabricado com mão de obra escrava chinesa. Seu porte físico de atleta, sua barba sempre por fazer e seu cabelo com gel completam o visual.

A jornada de Caio no cursinho começa cedo. No turno da manhã ele assiste às aulas. No intervalo, vai comer na cantina. Conversando com sua amiga, Caio resmunga impropérios contra o professor de química, dizendo que ele não domina o conteúdo direito, pois precisa consultar suas anotações durante a aula. Diz ainda que professor de cursinho tem que saber toda a matéria de cor, que não pode ficar inseguro nem fraquejar, e que professor assim é despreparado. Por isso, Caio nunca confia em seu professor de química.

Menos confiável ainda é o professor de história. Enquanto os outros professores passam fórmulas feitas, ensinam macetes, bolam truques e toda sorte de artimanhas para que os alunos não esqueçam o conteúdo na hora da prova, o professor de história fica se perdendo em reflexões fúteis e contorcendo-se em discursos complexos que não ajudam em nada pra passar no vestibular. A amiga de Caio argumenta de forma conciliadora, afirmando que o professor de história só está tentando fazer os alunos pensarem por si mesmos. Mas Caio retruca com seu azedume característico, alegando que aquele professor é marxista – igual a todos os professores de história formados na UFMG. Caio não quer reflexões ideologicamente fundadas em uma doutrina que matou milhões de pessoas, ele quer apenas as respostas certas para entrar no seu curso de medicina.

Caio já é um rapaz politizado desde seus tempos de ensino médio. Não raras vezes o jovem se meteu em quiproquós homéricos com seus professores e colegas esquerdistas nas aulas de Revolução Russa e Ditadura Militar. Aliás, quando o Brasil foi escolhido para sediar a Copa do Mundo, Caio bateu boca com seus colegas de escola que, alienados pela doutrinação marxista do MEC, apontavam para os vários inconvenientes sociais e econômicos da realização desse evento no Brasil. Caio contra argumentava que a Copa é uma excelente oportunidade para o crescimento, pois todo país que sedia o evento experimenta uma série de melhorias estruturais. “Só mesmo um bando de esquerdistas cegos pelo marxismo poderia ser contra a realização de uma Copa em seu país”, pensava.

Caio se interessa pela carreira de médico, mas também ama história. Ele complementa o conteúdo do cursinho com aquilo que lê nos guias politicamente incorretos de história que ele ganhou de aniversário de seus pais. Caio tem a coleção completa: os guias politicamente incorretos da história do Brasil, da América Latina e do mundo, e está pensando em comprar o da filosofia. Ele costuma levar um dos guias para ler no cursinho no intervalo entre seus estudos. Com os guias politicamente incorretos, Caio aprendeu que todos os seus professores de história mentiram para ele ao longo do ensino médio e continuam mentindo no cursinho. Lendo-os atentamente a fim de assimilar cada parágrafo, o futuro médico vai aos poucos depurando seu espírito do lixo marxista que tentaram lhe empurrar.

Caio não se deixa levar por tudo que seus professores e monitores de história dizem. Sempre que recebe alguma informação no cursinho, ele corre para seu guia incorreto para ver se é verdade. Não raro, quando estuda em grupo, Caio perde a paciência com seus colegas, alegando que suas opiniões estão erradas porque não batem com as do seu guia. Por fim, acusa-os de estarem se cegando com a doutrinação marxista em sala de aula. Seu professor de história já pediu a ele para buscar informações em outros livros, sites e revistas, mas Caio se recusa. Não quer correr o risco de cair em novas armações marxistas por aí. Assim, ele se agarra ao seu guia como a pedra de salvação diante de tantos meios de informação que querem enganá-lo.

Apesar de tudo, Caio não se considera um conservador. Para Caio, direita e esquerda são tudo a mesma coisa. Ele se considera um apolítico, pois diz que a política é suja, que os partidos políticos são sujos e que todas as instituições políticas são corruptas. Caio acha que o congresso e o senado devem ser fechados, que todos os partidos devem acabar e que deve haver uma grande renovação no cenário político nacional.

A princípio, Caio é um tipo simpático. Porém, graças a esses contratempos em sala de aula ele acaba espantando as pessoas ao seu redor. Mas Caio não se importa. Ele não está ali para se divertir ou para fazer amigos, apenas para passar em medicina. No elevador, na cantina, na sala de aula, onde quer que esteja, é muito raro não ver Caio de cara amarrada, preocupado com seus estudos, irritado com as aulas e professores que ele considera “muito fraquinhos” ou "muito marxistas".

Apesar de sua ortodoxia politicamente incorreta, Caio não é religioso. Isso porque ele aprendeu nas aulas de biologia que Deus não existe. Caio também não tem paciência para futebol. Apesar de sua família ser majoritariamente atleticana, ele raramente acompanha os jogos. Seu grande prazer sempre foi jogar handball, mas agora teve de parar para se dedicar integralmente aos estudos.

Caio é contra cotas de qualquer tipo, pois diz que os negros e pobres não são inferiores a ninguém e, por isso, têm condições de competir em pé de igualdade com qualquer um. Ele também fica iracundo ao saber dos programas do governo para aumentar o número de vagas nas universidades públicas. Para Caio, isso atenta contra os princípios mais básicos da meritocracia. A universidade federal é só para quem pode, e não para quem quer. Aumentar vagas pode contribuir para reduzir o nível da instituição e, consequentemente, manchar o diploma de Caio.

Quando vieram as manifestações de junho de 2013, Caio ouviu o chamado das ruas. Mesmo tendo pilhas de fórmulas a decorar e macetes para aprender, Caio abriu mão de seus estudos por um tempo e saiu às ruas com seus amigos vestindo verde e amarelo. E como não ficava ensandecido o rapaz ao ver movimentos sociais e pessoas ligadas a agremiações políticas protestando ao seu lado... "Todos oportunistas e egoístas", afirma Caio, porque lutam por interesses particulares. Para ele, a única bandeira permitida nas manifestações deveria ser a bandeira do Brasil, pois era mais democrática e representava todos. Por isso ele era sempre o primeiro a puxar os gritos de “aqui não tem partido!” e “abaixa essa bandeira!”. Seus cartazes não ficavam por menos: “foda-se a Copa!”, “não quero dinheiro pra Copa, quero dinheiro pra saúde e educação!” e “enfia a Copa no cu!”. Caio acha um absurdo um governo dar tanta atenção à Copa e deixar de lado outros problemas urgentes, como saúde, educação, moradia, transporte e violência.

Caio acabou de fazer ENEM e dessa vez está confiante em sua nota! Nem isso, porém, consegue dar um jeito na cara torta de nosso futuro médico. Ele teme que, quando entrar na faculdade, terá de assistir aulas junto com uma leva de alunos despreparados que se beneficiaram com a expansão das vagas. Caio não quer ver a qualidade de seu curso de medicina decrescer vertiginosamente. Além do mais, para a infelicidade de Caio, os gritos que ele deu nas ruas foram ouvidos pelas autoridades: o governo decidiu contratar médicos estrangeiros a fim de suprir as áreas do país mais carentes de profissionais de saúde. Caio acha isso tudo um tremendo absurdo, pois esses médicos estarão recebendo salários parcos e roubarão o seu emprego quando ele estiver formado. Isso sem contar no absurdo ainda maior de a vinda desses médicos estar financiando a ditadura cubana.

Após mais um dia de cursinho, Caio volta para casa de ônibus remoendo suas amarguras. No caminho, uma pequena movimentação na rua atrapalha o trânsito: são jovens se manifestando por melhores condições de moradia para famílias carentes de Belo Horizonte. Caio ridiculariza: “Bando de desocupados! Ficam bloqueando o espaço público em nome de interesses privados”. Percebendo que o caminho para casa será longo, ele se acomoda na cadeira e começa a ouvir música em seu iPhone sonhando com o dia que terá seu próprio carro e não precisará depender de transporte coletivo.