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sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Da casa engraçada à USP - Meus 28 anos

Hoje, 29 de janeiro de 2016, completo 28 anos de idade.

Durante muito tempo, aniversários significaram para mim uma época para comemorar e ganhar presentes. Hoje, por outro lado, vejo o aniversário como um momento para recordar. Recordar e escrever. Principalmente tendo em vista que me encontro em uma fase da vida na qual tenho verdadeiro horror de estar em qualquer lugar ou evento no qual eu seja o centro das atenções. Daí minhas comemorações de aniversário tornarem-se cada vez mais escassas e discretas.

Neste ano de 2016, queria escrever um texto nos moldes do que escrevi em 2014, em ocasião dos meus 26 anos. Infelizmente não consegui. Aquele continua sendo um dos mais brilhantes resumos que já fiz de minha vida até o momento. Mesmo assim não me dei por vencido e resolvi escrever este outro texto, comentando experiências e reflexões que me esqueci de mencionar há dois anos atrás e reafirmando outras tantas.

Como bom historiador, sei que a história que se narra está articulada à história que se vive. A forma como o homem do Renascimento via o mundo medieval dizia muito mais sobre o próprio período renascentista do que sobre a Idade Média. De forma análoga, a leitura que os integralistas brasileiros faziam do Brasil colonial, se nos serve como ótima fonte de informação sobre o pensamento político brasileiro dos anos 1930, pouco nos diz sobre o período colonial de fato.

Também como todo historiador, sei que a história é feita de recortes, de seleções. Jogar luz sobre este ou aquele evento histórico implica deixar no escuro outras tantas passagens. É impossível abocanhar toda a história de uma só tacada. A história é como um imenso e interminável mosaico do qual o historiador sempre conseguirá captar apenas alguns dos quadros. Cabe ao historiador, portanto, a elevada responsabilidade de escolher cuidadosamente quais quadros receberão luz alta e quais ficarão em luz baixa, bem como justificar os motivos para essas escolhas.

É por isso que, apesar de concordar com a iniciativa, acho tão problemática a lei que torna obrigatório o ensino de história da África nas escolas brasileiras (Lei Nº 10.639 de 9 de janeiro de 2003). Não a lei em si, mas a forma como ela vem sendo aplicada. Em um vasto livro didático, totalmente dividido de acordo com os padrões temporais europeus (Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea), eis que surge, não mais que de repente, um capítulo anômalo, enfiado às pressas no meio dos demais apenas para cumprir a lei, intitulado “História da África”.

Em que consiste?

Em milhares de anos da história de um dos mais vastos e diversificados continentes do planeta. Resume-se, neste humilde capítulo, uma extensão temporal e cultural tão ou mais abrangente do que aquela dedicada ao continente europeu ao longo de todo o livro didático. O aluno, até então imerso em uma visão eurocêntrica da história, de repente se depara com um capítulo intitulado “História da África”. É como se de dentro do livro pulasse alguém e dissesse: “Interrompemos nossa programação para dizer a você, em conformidade com a lei 10.639, que existem alguns povos exóticos num continente estranho que merecem a sua atenção; dentro de instantes voltaremos à nossa programação normal”.

Isso mesmo: “à nossa programação normal”. A História Europeia é a normal. Reforça-se, portanto, justamente o estereótipo que a referida lei – creio eu – quer destruir: a do estranhamento em relação à África e às suas populações.

Pior do que isso. Da forma como a lei vem sendo implementada, apela-se à identificação, um dos recursos mais eficientes de exercício do poder simbólico. Sabe por que nunca veremos um capítulo de livro didático intitulado “História Europeia”? Porque não é necessário dizer que aquele capítulo se trata da história do continente europeu – isso já está implícito. Não é necessário identificar que falamos da Europa quando falamos em “Idade Média” ou em “Período Contemporâneo”, pois estamos usando como parâmetros marcos temporais europeus.

Ou seja: o simples fato de precisarmos identificar um capítulo como sendo de história africana já demonstra que a História da África permanece, para pegar uma expressão emprestada a Bourdieu, um “excluído no interior”. Ela está inserida, mas em condições diferentes (i. e. inferiores) às dos demais. Fazendo uma analogia tosca, mas ainda assim válida: já pararam para pensar por que os sites norte-americanos dispensam o .us no final e só os endereços dos demais países devem identificar a procedência (brasileiros levam o .br, os japoneses o .jp e assim por diante)? Ou já pararam para pensar por que, na Alemanha nazista, apenas os judeus – mas nunca os ditos “arianos” – precisavam andar com uma estrela costurada à roupa para se identificarem?

Mas isso é assunto para outra discussão.

Baseando-me nessas duas constatações – 1. A história que se faz é indissociável da história que se vive e 2. A história é feita de recortes e seleções – buscarei aqui ressaltar não apenas quaisquer memórias que eu tiver de minha vida, mas aquelas que, por um motivo ou outro, me tocam mais fundo até os dias de hoje.

Acredito que uma das lembranças mais antigas que tenho é uma que data dos meus três ou quatro anos de idade, na escola. A professora colocou para tocar, num disco de vinil, aquela música do Vinícius de Moraes: “Era uma casa / Muito engraçada / Não tinha teto / Não tinha nada...”. Depois, pediu para que nós desenhássemos, numa folha de papel, a casa à qual a música fazia referência. Adorava desenhar. Pensei então em começar pelo piso, mas aí lembrei que a casa não tinha chão. Então pensei em começar pelas paredes, mas me lembrei que ela também não tinha parede. Foi aí que decidi começar pelo teto, para em seguida me lembrar que ela também não tinha teto. Só então percebi que não havia jeito de desenhar a bendita casa, já que ela “não tinha teto / não tinha nada”. Acho que essa foi uma das primeiras frustrações da minha vida. Mas como eu não podia contrariar os desígnios da professora, acabei desenhando uma casa toda torta, mas com as paredes, portas e teto, em flagrante contraste com o que a música propunha.

Mais de vinte anos se passaram e até hoje ainda não consigo imaginar uma maneira de desenhar a referida casa. Há quem diga que ela se resumisse a um amontoado de telhas, portas e janelas jogadas sobre um terreno baldio. Mas um amontoado de telhas, portas e janelas por si só não constitui uma casa. O que constitui a casa é a forma como esses elementos interagem. Olhando para trás, acho curioso como uma professora pode propor isso a seus alunos. Como ela pode tocar uma música que fala de uma casa tão enigmática, tão abstrata, e ainda esperar que seus jovens alunos consigam representar essa casa por meio de um desenho.

Com o passar dos anos, fui percebendo que a postura de minha professora da pré-escola não era um caso assim tão isolado quanto eu supunha. Ela apenas expressa um traço marcante de nosso sistema educacional. Querem que representemos, com um desenho numa folha de rascunho, uma casa que não pode ser concebida nem na imaginação. De forma análoga, querem que interpretemos um poema de extrema complexidade, escrito por um autor na penúria, tuberculoso e farto de desilusões amorosas (provavelmente nem ele mesmo sabia o que estava dizendo ao escrever tais linhas); querem que expliquemos as causas da Segunda Guerra Mundial (como se isso fosse algo tão tranquilo como apontar pra que lado fica a padaria mais próxima); querem que analisemos a rivalidade Israel-Palestina. E tudo em míseras 5 ou 10 linhas, como se questões de extrema complexidade, que há anos vêm sendo trabalhadas, coubessem em espaço tão exíguo.

Meu empenho descomunal em desenhar a casa engraçada de Vinícius de Moraes não se perpetuou ao longo de minha infância na escola. Nos primeiros anos, fui um aluno relapso e desinteressado. Odiava a escola mais que tudo e não conseguia entender como havia políticos que faziam campanha na televisão propondo construir mais escolas. Quando, em uma de minhas muitas desventuras em sala de aula, a diretora veio conversar comigo para dar uns puxões de orelha, entre um esporro e outro ela me disse que havia meninos que não frequentavam a escola, que ficavam à toa na rua ou ajudando o pai na roça, e perguntou se eu queria ser como eles. Na hora senti uma inveja corrosiva desses tais meninos. “Devem ser os meninos mais felizes do mundo!”, eu pensei.

Curiosamente, muitos e muitos anos depois, quando já trabalhava de monitor no Bernoulli, uma aluna a quem atendi comentou que em Esparta devia ser melhor ser pobre do que ser da elite, já que apenas os meninos da elite se submetiam a um sistema educacional ferrenho e militarmente conduzido, ao passo que os meninos mais pobres não tinham essa obrigação. Disse então a ela que, enquanto ela estava enfurnada naquele cursinho estudando loucamente para passar em medicina, milhares de meninos da periferia estavam jogando bola na rua ou empinando pipa, e perguntei qual dos dois ela preferia ser.

A fim de tornar a escola menos insuportável, tentava achar válvulas de escape. Então eu ria, brincava fazia piadinhas... Tudo para fugir daquela realidade intragável. Na minha escola, o castigo para os alunos travessos costumava ser ficar sem recreio. No meu caso, o índice de reincidência era tão alto que minha professora resolveu simplificar e me deixou de castigo no atacado: um mês inteiro sem recreio. Um mês para um adulto passa num piscar de olhos, mas para uma criança impaciente de apenas sete anos era quase como um semestre inteiro. Era angustiante ir todos os dias para a aula sabendo que eu não poderia brincar na hora do recreio, especialmente tendo em vista que o recreio era uma das poucas coisas que ainda salvavam o ambiente escolar. Tanto que, quando um parente distante certa vez veio nos visitar e me perguntou o que eu mais gostava na escola, respondi, sem titubear: “a hora do lanche, a hora do recreio e a hora de ir embora”. E de fato, era isso mesmo. Não estava brincando e não entendi quando começaram a rir de minha resposta.

Passado um mês de minha reclusão, quando finalmente pude voltar a respirar a liberdade do recreio, minha alegria durou pouco. Na volta para a sala de aula aprontei mais alguma palhaçadinha da qual nem me recordo mais. Foi o suficiente para minha professora me presentear com mais um longo mês sem recreio. Dois meses seguidos sem recreio. Até hoje me lembro bem de como ela rabiscava o calendário com caneta hidrocor para marcar direitinho minha “pena”.

Não me lembro de ter ficado sem recreio por tanto tempo assim novamente. Minha aversão à escola, porém, não mudou muito, principalmente às aulas de matemática. Não consigo me esquecer de como eu ficava pilhado tentando resolver problemas incompreensíveis. Entre uma pausa e outra, quando eu já me dava por vencido, olhava para as fotos das pessoas nas revistas. Homens bem-sucedidos, mulheres ricas, atores, cantores, pilotos e esportistas... Será que todos passaram pelo que passei? Será que todos eles tiveram que resolver aquelas equações infernais para chegar aonde chegaram? Será que se eu resolvesse as malditas equações eu chegaria ao mesmo lugar em que eles estavam? Ou será que já era tarde demais para mim?

Acredite ou não, esses questionamentos me perseguiram até o ensino médio, quando se tornaram ainda mais provocativos.

Outra lembrança igualmente curiosa da minha infância foi de uma colônia de férias à qual fui com apenas oito anos de idade. A colônia foi sediada em uma fazenda aqui perto de Lavras, não me lembro exatamente onde. Foi amplamente divulgada em todas as escolas da cidade, de modo que reuniu uma meninada vasta, dos sete aos doze anos de idade.

Não consigo me esquecer de uma cena que se passou no primeiro dia, logo que chegamos à fazenda. Uma horda de uns trinta ou quarenta meninos e meninas saiu do ônibus com um ímpeto fervoroso, correndo pelo pátio que ficava logo à frente de uma velha casa na qual iríamos dormir. Uns brincavam, outros brigavam, outros conversavam alegremente e outros faziam piadas. Eu, porém, seja por timidez, seja por minha vasta experiência de dois meses seguidos sem recreio, contentei-me em ficar sentado em um banco de madeira observando tudo aquilo.

Passado um tempo, um dos monitores da colônia sentou ao meu lado. Era um jovem de seus dezoito ou dezenove anos de idade, provavelmente ávido por fazer um dinheiro extra pra financiar a viagem de janeiro porque não tinha passado no vestibular e ficou de mal com a família. Perguntou-me por que eu estava tão quieto ali no canto, sem interagir com ninguém. Não me recordo bem de minha resposta, mas lembro muito bem da tréplica dele: “Isso aqui é uma colônia de férias, você tem que se divertir!”. Disse mais uma ou outra coisa que nem me lembro mais. Quando percebeu que eu não iria mudar, levantou-se e foi embora.

Não consigo pensar nessa cena sem esboçar pelo menos uma risadinha interna, mas na época não achei a menor graça. Aliás, acho que esse é um dos traços mais marcantes do amadurecimento: rir de coisas que outrora nos deixaram confusos, nervosos ou angustiados. E penso que quanto mais cedo rimos dessas situações, mais rápido estamos amadurecendo.

A verdade é que eu me senti envergonhado e culpado com a frase do jovem monitor. Todo mundo se divertindo e eu lá, parado, contemplativo, imóvel. Todo mundo se divertindo, só eu que não. Senti como se estivesse sendo um fardo, um inconveniente. Ou, melhor ainda, como se estivesse usando um produto da maneira errada. “Isso aqui é uma colônia de férias, você tem que se divertir!” soava quase como “Isso aqui é um cacto, você tem que jogar pouca água!”, “Isso aqui é um carro manual, você tem que ficar atento às marchas!” ou “Isso aqui é uma panela de teflon, você não pode raspar o garfo!”.

A colônia servia para se divertir e eu não estava me divertindo. Que lástima!

Da mesma forma que a casa engraçada, esse episódio ainda mexe bastante comigo até os dias de hoje. Quantas vezes não vemos uma pessoa e, do alto de nossa arrogância, julgamo-la doente, deprimida ou problemática, ignorando que nós mesmos podemos estar muito mais necessitados de ajuda do que ela? Quantas vezes, em meio a uma festa onde todo mundo canta e dança, olhamos para aquela pessoa sentada e julgamo-la antissocial. Quantas vezes descobrimos uma pessoa que não bebe, não fuma e não usa drogas, e julgamos que ela tem que começar a beber, fumar ou usar drogas para se sentir bem. Quantas vezes vemos uma pessoa com um comportamento peculiar, porém inofensivo, ou com preocupações que nos são incompreensíveis e julgamos que ela precisa de um psicólogo. Quantas vezes vemos uma lésbica e julgamos que ela só é assim porque ainda não encontrou o homem certo (o mesmo podendo ser dito sobre os gays). E tudo por quê? Apenas porque nenhuma dessas pessoas corresponde a nossas expectativas. Porque nenhuma delas se diverte da forma como nós nos divertimos. Porque se eu só sei me divertir bebendo e fumando então fulano deve ser extremamente infeliz, já que não bebe nem fuma. Porque se eu só consigo sentir prazer com pessoas do sexo oposto, então gays e lésbicas devem ter uma vida sexual miserável, já que não transam com o sexo oposto.

Pobres de todos eles.

É costume, hoje, dizer que vivemos em uma sociedade doente. Eu acrescentaria ainda: vivemos numa sociedade doente na qual todos acreditam ser médicos. Ou melhor: vivemos numa sociedade na qual todos irão fazer o possível e o impossível para te convencer de que você está doente e de que eles detêm a cura.

Até o momento em que o jovem monitor sentou-se ao meu lado eu estava me sentindo perfeitamente bem, fazendo aquilo que eu fazia melhor: sentar e observar. Depois daquele breve diálogo, senti-me perturbado. E o que é pior: sem necessidade alguma. Não culpo o rapaz: estava apenas fazendo seu trabalho. Mas cenas desse tipo se tornariam recorrentes na minha vida. Sempre que digo que não bebo acabo travando o mesmo diálogo, independente da pessoa com quem estiver tratando. Daria até pra fazer um pequeno roteiro: “Você não bebe? Sério? Nada? Tá tomando remédio? É por questões religiosas? Nunca Provou? Ah, mas você tem que ir bebendo aos poucos que com o tempo você acostuma. Precisa começar com umas bebidas de leve e depois vai evoluindo. No começo eu também não gostava”. Simplesmente não cabe na cabeça de certas pessoas que não gostar de álcool não é nem nunca foi nenhuma patologia que precise ser curada em doses homeopáticas. Que não gostar de álcool é tão comum como não gostar de bife de fígado ou de dobradinha (que eu, aliás, amo!).

Mas se vamos falar de memórias que ainda são atuais, por que não falar do PT?

Tendo nascido em 1988, passei a parte mais significativa da infância nos anos 1990. Já em fins da década, presenciei com assombro e desgosto a ascensão do PT. Não entendia muito de política, mas sabia que detestava o PT. Achava a retórica de Lula e dos militantes do partido bombástica e soberba. Sempre tive especial aversão a qualquer tipo de pessoa que se apresentasse como portador da verdade absoluta e que se achasse superior aos demais, e era exatamente assim que meus olhos de menino enxergavam os petistas. Era tudo muito gritado, muito fanático, muito espalhafatoso para mim.

Aliás, guardo até hoje comigo uma carta que escrevi na escola simulando ser um brasileiro vivendo num Brasil governado pelo PT no ainda longínquo ano de 2025. Redigi-a em 2000, quando o país ainda vivia sob o segundo mandato de FHC. O autor fictício da carta relatava coisas horrendas, como “a situação econômica aqui no Brasil está à beira da estaca zero”, “somos uma ditadura”, “estamos pior que Cuba”, “acabamos de sair de uma guerra com o Equador” e “Estamos sob uma perfeita ditadura e somos rondados por generais militares”.

Ditadura petista misturada com ditadura militar! Só mesmo na imaginação fértil de um garoto de doze anos para os mais horrendos temores da classe média brasileira andarem de mãos dadas com os sonhos dessa mesma classe média. Às vezes penso em publicar essa carta na íntegra em meu blog, mas sempre que começo a lê-la caio em risadas e dou pra trás de tanta vergonha que sinto. Aliás, na carta não há qualquer referência explícita ao PT. A professora pediu para tirar esse trecho porque o texto seria lido em público e poderia gerar insatisfação em simpatizantes do PT que pudessem estar na plateia. Ainda bem que isso se deu em 2000, pois se fosse hoje seria chamado de doutrinação marxista. Aliás, ainda bem que fui uma criança naquela época e não agora. Não é nem um pouco difícil imaginar essa minha cartinha da sexta série fazendo coro com a verborragia antipetista Made in Facebook. Seja lá como for, eu sim posso bater a mão no peito e dizer que já era antipetista way before it was cool.

Apesar dessa peripécia literária, nunca fui um ardoroso anticomunista em momento algum da minha juventude. Por vezes cheguei mesmo a considerar o comunismo algo salutar e necessário. E isso não porque conhecesse a fundo o ideário comunista, mas porque tendia a enxergar o mundo como uma grande sala de aula na qual os países capitalistas eram os alunos descolados e populares (pelos quais nutria repulsa) e os países comunistas eram os alunos rejeitados (pelos quais sentia mais afeição, apesar de nunca ter sido um no sentido estrito do termo).

Mas nem só de dilemas bizarros foi feita minha infância. Ela também foi marcada por horas a fio na frente da televisão assistindo à finada TV Manchete. Ficava de olhos vidrados na programação matinal porque adorava os seriados japoneses de Live Action, mais conhecidos como Tokusatsus. Jaspion, Jiraya, Jiban, Changeman, Flashman, Kamen Rider, Cybercops, Winspector e Solbrain eram alguns dos principais seriados de vinte ou trinta minutos que exibiam aventuras de super-heróis japoneses defendendo a Terra de forças malignas.

Atribuo a minha fiel audiência à emissora dos irmãos Bloch o fato de desde cedo nutrir profunda admiração pela cultura japonesa e, posteriormente, pela cultura oriental como um todo. Por muito tempo tive um respeito egípcio por chineses, coreanos e japoneses, enxergando-os como seres superiores. Quando passava férias em São Paulo observava-os admirado, como se esperasse que a qualquer momento fossem fazer ou dizer algo surpreendente, tal como nos seriados aos quais eu assistia. Passava horas em frente ao espelho puxando meus olhos com os dedos na ingênua esperança de me parecer com meus heróis. Lembro-me até de, certa vez, ter pedido a minha mãe para fazer uma cirurgia nos olhos para que ficassem esticados, iguais aos dos orientais.

Tamanha foi minha surpresa quando, visitando o Oriente pela primeira vez, durante meu intercâmbio na Malásia entre 2004 e 2005, me dei conta de que a recíproca era verdadeira, isto é: que também os orientais tomavam os ocidentais por superiores. Não por acaso, notava que alguns deles tinham um respeito excessivo por mim. Alguns temiam se aproximar e conversar e outros tantos tinham uma expectativa surreal em relação a mim, tão grande quanto aquela que eu nutria pelos japoneses de São Paulo.

Minhas aventuras e desventuras na Malásia estão narradas nos posts com a tag “Páginas de Combate”, bem como no meu outro texto de aniversário (“Do Consenso ao Crepúsculo – meus 26 anos – Parte II”). Limito-me aqui a expor apenas um episódio que acredito não ter comentado em outras partes e que é bastante ilustrativo desse lugar que os ocidentais ocupam no imaginário malásio.

É muito comum, entre estudantes das escolas da Malásia, torneios de debates, tanto em malaio como em inglês. Em uma sala de aula, duas mesas são colocadas frente a frente com três debatedores de cada escola em cada um dos lados. Na hora, sorteia-se um tema com uma pergunta acerca daquele tema. Sorteia-se também a posição que cada grupo deve defender: contrário ou favorável. Cabe aos alunos, ao longo de extensas exposições, defender os pontos de vista de seus grupos e rebater os argumentos adversários. E cabe a um grupo de professores avaliadores dar o parecer sobre quem venceu.

Pois fui convidado para assistir a uma dessas competições em uma escola de uma cidade não muito longe de Klang, onde eu morei. Na hora de as equipes participantes se registrarem, um de meus colegas me pediu para que os acompanhasse para fazer o registro. Respondi que isso não era necessário, já que era apenas mero espectador, ao que ele prontamente respondeu: “Eu sei, mas você precisa vir conosco para fazer o registro de nossa equipe, pois quando as outras equipes te virem acharão que tem um ocidental na nossa turma e se sentirão intimidadas”.

Atendi ao pedido sorridente, sem saber direito lidar com aquilo porque nunca havia experimentado situação semelhante – e espero nunca mais experimentar. Como já era de se esperar, a estratégia não funcionou e a equipe de minha escola perdeu.

Foi só então que percebi que a estratégia de puxar os olhos era completamente inútil e até prejudicial. Quem gosta do Oriente e de orientais deve ser o mais ocidental possível a fim de conquistar sua admiração. Lembro-me da cena de um filme bem antigo (“Minha doce gueixa” ou “Minha querida gueixa”) no qual um diretor de cinema ou de teatro norte-americano viaja para o Japão a fim de procurar por uma gueixa para sua mais nova produção. Foram-lhe apresentadas algumas japonesas de inglês impecável que sabiam cantar, dançar, improvisar e atuar, tudo no melhor estilo rockabilly norte-americano dos anos 1950. Mulheres modernas, ocidentalizadas e que orgulhavam-se de sê-lo. O diretor agradeceu a presença delas, mas depois que se foram mostrou-se profundamente decepcionado. Ele não queria japonesas de estilo americano, queria japonesas tradicionais, queria uma gueixa que se comportasse exatamente como as gueixas de séculos atrás.

Parece ser esse um dos grandes dilemas do mundo globalizado: orientais querendo ser ocidentais para se sentirem integrados aos valores com os quais são sistematicamente bombardeados pela mídia (cremes para embranquecimento da pele são um sucesso de vendas na Malásia, por exemplo); por outro, ocidentais embriagados de cosmopolitismo procurando orientais que ainda preservem as raízes de sua cultura. É um jogo de soma zero: os orientais não compreendem por que cargas d’água homens brancos querem saber de ritos milenares ancestrais que nem eles mesmos conhecem direito, e os ocidentais se estranham ao verem orientais imitando o American Way of Life. No final das contas, todos se frustram e ninguém se entende. Não se trata mais, como nos velhos tempos, de minha cultura contra sua cultura. Trata-se de eu tentando me inserir no seu universo cultural e você tentando se inserir no meu universo cultural quando, na verdade, a minha expectativa é que você fosse fiel às suas tradições e vice-versa.

Demorei a entender esses novos conflitos do mundo globalizado. Se os tivesse compreendido com antecedência, penso que minha estadia na Malásia teria sido muito menos conflituosa. Enquanto meus colegas me bombardeavam com perguntas sobre Ronaldo no Real Madri, o carnaval carioca e o apetite sexual das mulheres brasileiras, eu lhes devolvia perguntas sobre peregrinação em Meca, deuses hindus e literatura chinesa.

Meu intercâmbio na Malásia foi, sem sombra de dúvida, o período de minha via no qual mais amadureci. Após um ano em terras longínquas, foi a vez de voltar ao Brasil. Chega de utopias orientais, de visitar templos budistas, rezar em templos hindus e admirar mesquitas. Era hora de encarar a realidade; era hora de encarar o vestibular. Após duas escolhas malsucedidas de cursos – dois períodos de Relações Internacionais intercalados por um período de Ciências Sociais no meio – finalmente me encontrei no curso de História. E aqui novamente apareceu – e continua aparecendo às pencas – toda uma nova horda de supostos médicos tentando me convencer de que estou doente. De que não tenho nada a ganhar num curso repleto de gays, lésbicas, maconheiros, doutrinadores comunistas e ciclistas. Não se trata, é claro, de pessoas que dizem isso explicitamente, com todas as palavras. Não. Ninguém mais se prestaria a esse ridículo nos dias de hoje. Trata-se sim de todo um arsenal de chavões, valores e ideias difundidos pelos mais variados meios (TV, internet, memes, redes sociais, conversas pessoais e via Whatsapp, etc.) que dia após dia tentam, numa insistência religiosa, convencer-me de que eu não devo cursar História, depender do transporte público e usar roupas sóbrias, mas sim cursar Engenharia, me matar para comprar um bom carro e usar roupas de marca, tudo a fim de perpetuar a espécie (“pegar mulher”, no jargão popular).

Não. Todo esse aparato belicoso nunca me abalou, ao contrário do que podem pensar. Se os exponho aqui nesse texto não é para me queixar deles. Não escrevo para lamentar. Se os exponho aqui é unicamente para medir o seu ridículo. Para mostrar a mim mesmo, de forma clara, que não é coisa digna de ser levada a sério.

Entrei na universidade pela primeira vez em 2007, sedento por participar de movimento estudantil, manifestações, eleições de DA e DCE. Foram precisos poucos meses na universidade para perceber que aquela definitivamente não era minha praia. Passar em salas dando recados, debates de chapas, distribuição de panfletos para campanha e organização de protestos de rua eram atividades que me enfastiavam e me desgastavam facilmente. Apesar de ter cursado no mínimo um período em três cursos de humanidades (dois deles na UFMG), nunca tive sequer um professor que pudesse se encaixar no tipo ideal de “doutrinador comunista do MEC”. Aliás, lembro-me apenas de dois professores que exerceram, de forma sistemática, em suas aulas, aquilo que os escandalosos de plantão atribuem aos professores comunistas. Um deles foi um professor de Introdução à Economia, no primeiro período do curso de Ciências Sociais, extremamente cruel na hora de atribuir notas a qualquer aluno que não se mostrasse ardoroso defensor do liberalismo econômico nas provas, além de nos entupir até a testa com leituras de autores alinhados com essa posição. O outro foi um professor do curso de História que subtraía generosos pontos de qualquer aluno que, de alguma forma, falasse mal da monarquia brasileira em seus trabalhos, bem como das figuras proeminentes do Império. Essa foi, portanto, a única doutrinação que tive no ensino superior: um neoliberal e um monarquista.

Foi preciso chegar até o mestrado na USP para finalmente encontrar um professor que exercesse a tal doutrinação comunista tão alardeada nos dias de hoje. E foi com muita satisfação que lá cheguei, não só pela satisfação de estudar na USP e dar continuidade aos meus estudos em História, mas também pelo prazer mudar de ares. Após sete anos (com duas interrupções de um semestre cada) vivendo na provinciana Belo Horizonte, mudar-me para a cosmopolita São Paulo teve um efeito libertador. Parece até que me reencontrei com meus velhos heróis de infância: os poderosos orientais. Eles estão por toda a parte! E por mais que há muito tempo eu já não os cultue com a devoção de antes, é sempre bastante nostálgico passear por uma cidade na qual passei algumas boas férias durante a minha infância.

Hoje, no limiar dos 28 anos de idade, confesso que não tenho muitas ambições quanto as que eu tinha na infância. E isso não por ter desanimado da vida ou não confiar em meu potencial, mas simplesmente porque percebi que preciso de muito menos para ser feliz. Não quero mais ter olhos puxados, apesar de ainda nutrir imensa simpatia pelo Extremo Oriente e principalmente pelas pessoas de lá. Não é à toa que, em meu segundo intercâmbio, na Alemanha (2011-2012), fiz mais amizades com coreana(o)s do que com alemães. Também não quero mais viajar o mundo e conhecer países porque descobri que detesto aeroportos e morro de medo de viajar de avião.

Meu sonho maior, neste momento, é tornar-me um professor de História em alguma universidade pública de qualquer lugar do país. Nada mais que isso. Alguns podem até achar esse sonho demasiadamente pretensioso. Quantas vezes ao longo da minha trajetória ouvi, vindo das mais diversas pessoas, que ser professor universitário é para poucos, que isso é muito difícil, que é um meio muito hostil e que apenas poucos conseguem. Nunca entendi se as pessoas emitiam esses alertas para desanimar os futuros candidatos ou apenas pelo prazer de serem inconvenientes. A verdade é que eles nunca me abalaram, e nem há motivos para tal. Há várias universidades no Brasil que necessitam do trabalho de professores de História. Então, por que não eu? Por que passar a vida me conformando em fazer aquilo que não quero enquanto vejo pessoas iguais a mim, com a mesma formação, as mesmas oportunidades e as mesmas capacidades que eu, sendo aprovadas em concursos nos quais tenho plenas capacidades de passar? É preciso uma mentalidade muito tacanha para pensar de outra forma.

É isso o que quero pra mim nesse momento. Não quero ser famoso. Aliás, já fico assombrado só de pensar na possibilidade de ser famoso, seja por maus ou por bons motivos. Como já disse: tenho pânico de ser o centro das atenções. A única fama à qual eu poderia almejar hoje é uma fama póstuma. Aliás, creio que seja esse o motivo principal que me leva a escrever: a possibilidade de me perpetuar de alguma forma, uma vez que não quero ter filhos e que o futuro não parece muito promissor para árvores. Escrevo para que, daqui a uns cem ou duzentos anos, alguém – de preferência um historiador despreocupado – possa acessar meus textos, seja lá de que maneira for, e pensar: “Olha! Então é assim que vivia um brasileiro no começo do século XXI... Eram essas as aflições e angústias de um homem do começo do século... Era assim que se escrevia no ano de 2016...”.

Se um dia isso acontecer, nem que seja no formato de uma simples nota de rodapé, onde quer que eu me encontre, me sentirei mais célebre do que o mais cultuado jogador de futebol da história das copas.