Visualizações de página do mês passado

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Balcanizando - Parte I: Na terra dos poetas

Era um domingo frio do outono de 2016 quando acordei bem cedo, já com as malas todas prontas e a roupa preparada para a viagem. Um dia antes havia comprado um pequeno livro introdutório sobre a história dos Bálcãs em alemão: “Geschichte des Balkans”, de Edgar Hösch.

Estava de volta à Alemanha desde o princípio de outubro, mas queria mais. Queria conhecer tudo aquilo que não tivera a oportunidade de conhecer da primeira vez em que estive por aqui. O meu destino era certo antes mesmo de deixar o Brasil: os Bálcãs. Aquela parte do mundo que frequentou assiduamente a pauta de todos os telejornais ao longo dos anos 1990, mas que, desde que se pacificou, já não aparece muito na mídia – ao menos não na mídia brasileira, embora as telenovelas brasileiras fossem uma constante por lá.

E por que justo os Bálcãs? Talvez porque ninguém que eu conheça tenha ido lá. Ou talvez pela própria fascinação de ver de perto países que, durante a minha infância, estiveram no epicentro da geopolítica mundial. Os conflitos de grande envergadura, as ameaças nucleares e os grandes ditadores dos quais o século XX foi profícuo nunca fizeram parte da minha realidade. Nasci em 1988, quando o mundo já estava quase se encaixando nos eixos (não que isso seja algo bom), quando a “História” já havia chegado ao fim (dá-lhe, Fukuyama!), na tênue fronteira entre os séculos XX e XXI. Conforme deixei claro em meu texto de janeiro de 2014 (“Do Consenso ao Crepúsculo”, http://hiperativo-categorico.blogspot.de/2014_01_01_archive.html), a Cortina de Ferro sempre fora, para mim, uma realidade tão distante quanto a Alemanha nazista; a Guerra Fria era tão pouco contemporânea minha como a Segunda ou a Primeira Guerras. De maneira que as guerras nos Bálcãs que desencadearam a desintegração da Iugoslávia nos anos 1990 eram o mais próximo que cheguei de entender o que era viver em um mundo em conflito.

Recordo-me bem de uma prova de História Contemporânea que fiz em 2012. Uma das questões afirmava que este momento em que estamos é o momento propício para o historiador começar a abordar o nacionalismo. Isso porque em um pós-89 cada vez mais marcado pela globalização, a nação e o Estado já não teriam mais o significado que possuíam nos séculos XIX e XX. Só em um contexto no qual as grandes empresas sobrepujavam as nações é que o nacionalismo poderia ser um objeto de quem estuda o passado. O historiador, como a coruja, só levanta voo quando todos já adormeceram.

Em plena desintegração do bloco socialista e triunfo do capitalismo, os Bálcãs ainda carregavam uma forte carga de século XX (nacionalismos, guerras, massacres, etc.) quando as águas do século XXI já tocavam os pés do restante do mundo ocidental.

Tragicamente, entretanto, em uma era de Putins, Trumps e Bolsonaros, tem sido mais fácil pensar que nós é que nos precipitamos em achar que o século XXI seria muito diferente. Ele não será.

O caminho de Munique até Ljubljana, na Eslovênia, foi maravilhoso. O trem cruzou a fronteira com a Áustria passando por paisagens de tirar o fôlego, até parar em Villach, a última cidade austríaca antes da fronteira eslovena. A ferrovia que unia dos dois países estava passando por reformas, então tivemos que pegar um ônibus. A paisagem eslovena não deixava por menos: grandes vales e montanhas cobertos por uma neblina que fazia lembrar aqueles contos de fadas. Cheguei exausto à estação de ônibus de Ljubljana – cansaço da viagem e de ter acordado tão cedo. Com bastante custo encontrei minha acomodação: um simpático hostel, bem pequeno e meio escondido, mas muito limpo e aconchegante.

A Eslovênia mais parece uma cidade do interior de Minas do que propriamente um país. Com pouco mais de dois milhões de habitantes, foi o primeiro país a se separar da Iugoslávia, em princípios da década de 1990. Diferente das outras repúblicas iugoslavas, a secessão da Eslovênia se deu de forma relativamente pacífica. E essa paz parece se desdobrar de diversas maneiras. "Ljubljana" significa "a amada". Na praça central de Ljubljana domina a estátua de um grande poeta nacional: France Preseren. Conforme deixou claro a guia turística, “nós, eslovenos, não celebramos os guerreiros, e sim os poetas; enquanto na maioria das capitais europeias você encontrará o monumento de um monarca ou guerreiro empunhando uma arma, aqui na Eslovênia você encontra um poeta segurando um livro”. Acima do poeta, uma musa com os seios descobertos. Tiveram que posicionar esse monumento estrategicamente atrás de uma árvore, pois os fiéis que deixavam a igreja depois da missa reclamavam de ter que encarar uma figura nua em plena praça.

Em minha primeira noite no país resolvi visitar o Metelkova Mesto, um famoso centro cultural underground. Quem me sugeriu foi o próprio funcionário do hostel. Disse que era pra eu não ter medo, pois, apesar de ser um lugar um pouco sombrio, era seguro.

Não consigo achar uma definição melhor para o Metelkova Mesto do que a FAFICH ou a FFLCH eslovena. Talvez até uma Rua Augusta, embora sem o mesmo glamour e com muito menos gente (ainda mais em baixa temporada). Em alguns pontos também me lembrou o Beco do Batman em São Paulo. Trata-se de um quarteirão relativamente afastado do centro da cidade, com algumas construções antigas nas quais funcionam bares alternativos. O local é repleto de exemplares de arte de rua: grafite, pichações e esculturas de sucata. Confesso que adentrei o ambiente com um pouco de medo. Estava tudo meio escuro, pois já era final de tarde. Aquilo tudo parecia um terreno abandonado. Algumas poucas pessoas estavam do lado de fora fumando ou bebendo. Na frente de uma das casas, mais iluminada, duas jovens conversavam. Resolvi entrar nessa. Lá dentro, um chão bem sujo, várias portas fechadas e mais trabalhos artísticos.

De uma dessas portas fechadas vinha um barulho de pessoas cantando, conversando e eventualmente batendo palmas. Devo ter ficado entre cinco e dez minutos refletindo se eu deveria ou não entrar. Chegava, me aproximava, tentava escutar melhor o que se passava, mas sempre acabava recuando. Fiquei com medo de interromper alguma reunião, alguma solenidade, algum evento particular. Mas ao mesmo tempo pensava que, se fosse algo tão restrito assim, haveria alguém para controlar a entrada. E não havia.

Cansei de pensar. Me deu vontade de ir ao banheiro. No frio, como não suamos ou suamos pouco, o líquido sempre insiste em sair por outros meios. O banheiro era quase tão sujo e grafitado quanto o da FAFICH. Tinha vários adesivos sobre prevenção de DST’s e orgulho LGBTT. Naquele momento, alguém abriu a porta do recinto de onde vinham os barulhos. Fiz minhas necessidades e tomei coragem para entrar.

Lá dentro, uma pequena sala muito escura. Um balcão cheio de guloseimas e bebidas, e bastante gente em pé e sentada. Não demorou para perceber que era um evento da comunidade LGBTT. Havia muitos casais de gays e lésbicas, além de transgêneros. O evento consistia em um recital de músicas e poemas (alguns em inglês) sobre as lutas diárias de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros diante dos preconceitos diários. Infelizmente, dada a lotação do local, fiquei em um ponto que não me permitia ver o palco. Imagino que devo ter ficado lá por uns dez ou quinze minutos, depois dos quais resolvi sair e retornar ao hostel.

Acho que naquela mesma noite, antes ou depois de visitar o centro cultural, fui abordado, enquanto comia na praça, por um jovem de uns vinte e poucos anos. Perguntou-me se eu gostava de rock, disse que era de uma banda de rock estoniana independente chamada “Illumenium” e que estavam fazendo um tour pela Europa para arrecadar fundos. Disse ainda que sua banda não dependia de patrocinadores e já havia tocado em vários países. Resolvi comprar um CD para ajudá-los, pois ele foi muito simpático e demonstrou bastante confiança nas suas palavras. Contei-lhe que queria muito visitar a Estônia e as demais repúblicas do Báltico, ao que ele respondeu: “you’re always welcome!”.

Ao longo de minha estadia em Ljubljana, ainda seria abordado várias vezes pelos outros membros da banda.

Em minhas andanças pelos becos, ruas e vielas daquela simpática capital, acabei conhecendo Martina, uma estudante de Letras da Universidade de Ljubljana – mesma universidade onde estudaram figuras tão díspares como o filósofo marxista Slavoj Zizek e a atual primeira-dama dos Estados Unidos, Ivana Trump. Martina me contou que o funcionalismo público esloveno é uma grande família, no sentido mais estrito do termo. Não há concursos públicos para nenhum cargo e a única maneira de ingressar é tendo contatos lá dentro. Ela inclusive disse que chegou a trabalhar em repartições nas quais todos os funcionários tinham o mesmo sobrenome. Como o país é muito pequeno e tem muito pouca gente, o funcionalismo acaba ficando restrito a uns poucos círculos de familiares e amigos. O fato de o homem cordial narrado em “Raízes do Brasil” não ser um monopólio brasileiro realmente não me surpreendeu. O que me surpreendeu foi tê-lo encontrado na Eslovênia.

Minha longa experiência no Sudeste Asiático me fez concluir que a Malásia ainda precisa encontrar seu Gilberto Freyre. Um país com três raças, que, apesar de conviverem harmonicamente (ao menos segundo o discurso oficial), praticamente não se misturam, precisa ter seu “Casagrande e Senzala”. De forma análoga, a Eslovênia precisa encontrar seu Sérgio Buarque de Holanda.

Martina ainda me falou sobre os poetas eslovenos do século XIX. Nesse quesito, a semelhança com o Brasil salta ainda mais à vista do que no caso do funcionalismo público. Aquele famoso roteiro de viver na boemia – estudar Direito – apaixonar-se por uma mulher mais rica – compor versos a ela sabendo que nunca iria conquistá-la – morrer pobre, de tuberculose, antes dos 35, também era seguido à risca pelos poetas românticos eslovenos. Inclusive, a alguns metros da estátua de France Preseren, em uma casa não muito distante, está o busto da amada que ele tanto desejou. Se você observar bem, ambos estão se olhando.

Em meu segundo ou terceiro dia na Eslovênia, o hostel em que estava recebeu uma leva de jovens ucranianos que pareciam ter no máximo 16 anos. Era uma equipe de judô que estava competindo num ginásio não muito longe dali. Impossível não lembrar-me dos meus tempos de judoca, das viagens que fazíamos, do quão tormentosa era nossa rotina. Dormir no chão frio de uma escola em pleno mês de junho, acordar cedo pra passar quarenta minutos na fila, esperando pra tomar banho gelado num banheiro que quase sempre alagava. Isso sem contar o assédio dos alunos veteranos sobre os mais jovens, ameaçando passar trotes ou fazendo piadas de duplo-sentido que nossa tenra idade não nos permitia entender. Que inveja das mulheres da equipe! Enquanto nós dormíamos em 30, elas eram no máximo quatro ou cinco, em uma sala tão grande como a nossa, além de ter o banheiro só pra elas. E quão sortudos eram aqueles judocas ucranianos de poderem se alojar em um lugar tão aconchegante durante suas competições!

Em meu último dia na Eslovênia resolvi fazer uma breve viagem à vizinha Croácia. Peguei o trem bem cedo para Zagreb, capital croata. Cerca de duas horas e meia de viagem, podendo ser um pouco mais, a depender da rigidez da imigração. Quando o trem para na fronteira, as polícias de ambos os países entram e vão pedindo os documentos de todos os passageiros. Alguma coisa em mim não pareceu bem aos olhos da policial croata. Olhou meu passaporte com um interesse incomum, como um comerciante que recebe uma nota falsa. Perguntou-me de onde eu vinha, para onde eu ia, o que ia fazer em Zagreb, se eu tinha acomodação reservada. Pediu para abrir minha mochila. Olhou meu caderninho de anotações, perguntou o que estava escrito. Respondi que eram os locais em Zagreb que eu queria visitar. Tornou a folhear meu passaporte. Perguntou se eu tinha mais bagagem, ao que respondi negativamente. Depois dessa revista completa, a jovem guarda devolveu meu passaporte e foi em busca de outra presa.

Aquilo foi um aviso: “Você não está mais na Europa Ocidental, você está nos Bálcãs!”. Me lembrou até aquela passagem do filme “Avatar”: “You are not in Kansas anymore, you are on Pandora!”. E isso porque a Croácia – assim como a Eslovênia – ainda faz parte da União Europeia. Depois que o trem seguiu viagem, me veio um aperto no coração: “Sérvia!”. No imaginário internético (memes, vídeos, páginas de Facebook), a Sérvia é sempre associada a um nacionalismo ferrenho, a militares fortes e bravos, ávidos por se lançarem sobre o primeiro estrangeiro desavisado que ousar avançar sobre suas fronteiras.

Mas a Sérvia era assunto para depois. Após uma viagem tranquila em um trem um tanto antigo – possivelmente alguma relíquia da ex-Iugoslávia comunista –, passei um dia agradabilíssimo em Zagreb após trocar meus euros por kunas, a moeda local. Voltei para Ljubljana naquela noite exausto. No dia seguinte, seguiria viagem para a Sérvia.