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sábado, 26 de novembro de 2011

Confissões de Augsburg - o retorno II

Segunda-feira era o dia D para mim: iria fazer minha primeira apresentação na universidade! Nada de muito grave: era para a matéria de "Textos-chave para o período 1830-1930". Tinha que fazer uma breve apresentação de apenas 5 minutos sobre a vida de Karl Marx. Em geral os professores daqui pedem para a gente entregar um roteiro resumindo tudo o que vamos falar na apresentação oral. Assim, procurei na biblioteca algumas biografias de Karl Marx e comecei a fazer algumas anotações. Peguei as duas mais curtas que achei (uma delas do Isaiah Berlin), pois para uma apresentação de apenas 5 minutos não podia ficar me perdendo em detalhes. Li apenas o começo de cada uma delas e complementei as informações com dois textos que achei no site marxists.org. Montei um pequeno roteiro e enviei ao meu tutor para que ele pudesse corrigir os erros gramaticais. Na hora da apresentação deu tudo certo e aquilo que eu mais temia não aconteceu: ninguém me fez perguntas. Acho que a turma se compadeceu de mim... Depois de minha apresentação discutimos o Manifesto e ao fim da aula o professor disse que eu tinha ido muito bem e aquilo me deixou aliviado.

E como é a universidade daqui? Só posso dizer baseado no prédio que eu frequento, que é a Faculdade de Filologia e História. Pra começar, é um lugar bem diferente da FAFICH em certos aspectos, mas bem parecido em outros. É diferente porque lá dentro ninguém fuma - é proibido, uma vez que o lugar é todo fechado. Além disso, têm vários corredores cobertos por carpetes onde muitas pessoas costumam se sentar para estudar ou apenas conversar. Têm várias mesas e cadeiras espalhadas pela faculdade que o pessoal usa para estudar. É algo muito prático quando você tem um tempo livre entre uma aula e outra e quer ler um texto mas não quer perder tempo indo até a biblioteca. Tem uma salinha lá que funciona como CA ou DA, mas nunca entrei porque é um lugar extremamente estranho e que costuma ficar de portas fechadas, ou lotado com um monte de gente na porta. No geral, a faculdade é um lugar tranquilo: festas ficam só do lado de fora, assim como o cigarro. Alemão é sim um povo festeiro, mas eles sabem muito bem separar o ambiente de festa do ambiente de estudos.

A faculdade se parece com a FAFICH no que tange aos adesivinhos pregados por toda parte (ainda mais do que na FAFICH) e aos escritos em banheiros. Por todo lado na faculdade, na universidade e mesmo no resto da cidade você vê adesivos parecidos com aqueles que têm na Savassi. Os daqui, porém, quase sempre são da torcida organizada do Augsburg F.C., o time local que pela primeira vez na história disputa a primeira divisão da Bundesliga. Pra todo lado tem um adesivo desses. Na faculdade, além desses adesivos do Augsburg F.C., têm outros denunciando a energia nuclear, criticando o alistamento militar, protestando contra o abate de animais para consumo humano e contra as taxas estudantis (a universidade é pública mas os estudantes têm que pagar uma taxa de cerca de 540 euros para ajudar nos gastos; não estou bem certo, mas acho que é uma contribuição semestral). Já em relação aos escritos em banheiros, as temáticas pendem mais para o lado político (diferente da FAFICH, onde predominam mensagens sexuais). A frase mais comum, escrita em quase todos os banheiros em letras garrafais é "revoltem-se!". Outras tantas denunciam o radicalismo islâmico e têm também algumas com conteúdo neo-nazista.

Já as aulas são muito bem conduzidas. Os professores são muito pontuais, os alunos muito participativos e, pelo menos nas matérias que estou fazendo, os professores sempre fazem questão de estabelecer um diálogo com os alunos. Eles sempre lançam perguntas e provocações a fim de atiçar as discussões entre a turma. Todos eles também sempre se mostram inteiramente à disposição dos alunos e fazem sempre questão de perguntar ao longo da aula se estão todos entendendo e se alguém tem alguma dúvida. Os textos que serão usados ao longo do semestre são entregues na primeira semana de aula, todos já xerocados (o preço deles está incluído na taxa de 540 euros).

No sábado seguinte à apresentação sobre Karl Marx tive novamente aula da matéria de imperialismo e colonialismo. Essa aula era a que eu mais esperava: sobre a Primeira Crise do Marrocos! O professor já sabia que eu me interessava pelo tema e não hesitou em pegar no meu pé. Fez algumas perguntas e pediu minha opinião sobre certos pontos, ao que eu me saí relativamente bem (embora falando um alemão sofrível). Falo tanto assim dessa disciplina porque julgo que ela tem sido a mais importante para mim até aqui. Graças a ela pude entrar em contato com a bibliografia que precisarei na minha monografia, além de ter aprendido mais sobre a história do imperialismo alemão, algo que até então eu conhecia muito pouco. É isso que me dá ânimo para acordar todo sábado de manhã, sair na rua deserta toda coberta por neblina e quase congelar esperando o bonde. Sem dúvida alguma, a optativa que fiz sobre história da África nos séculos XIX e XX na UFMG foi de fundamental importância para que eu aproveitasse melhor essa matéria: Herero, Maji-Maji, Zambeze... Em uma aula ministrada em alemão, todos esses nomes iriam confundir bastante minha cabeça caso eu já não os tivesse estudado antes.

Na semana seguinte viria minha verdadeira prova de fogo: a apresentação de um seminário na disciplina de Primeira Guerra Mundial. Meu grupo era formado por um espanhol que falava menos alemão do que eu e por um alemão. Iríamos falar sobre as experiências pessoais dos soldados durante o conflito. Bolamos um trabalho muito bom com um Power Point e um roteiro, e tinha tudo para dar certo. Mas eis que o único alemão do grupo, em quem tínhamos depositado nossa confiança, nos presenteou com a triste notícia de que na semana da apresentação ele faria uma cirurgia na boca e não poderia falar no dia. Ou seja: a apresentação ficaria nas mãos do espanhol e nas minhas. Até aí ainda daria para aturar, se não fosse um outro detalhe mortal: o seminário não se resumia a uma apresentação; o grupo também tinha que apresentar um documento para a sala, instigar e moderar uma discussão em torno dele. Isso era, para mim, virtualmente impossível: por mais que eu fale relativamente bem, ainda acho extremamente difícil entender o que os outros dizem, e o espanhol (Hugo é o nome dele) tinha ainda mais dificuldades com o idioma do que eu. De qualquer modo, fizemos o possível: sentei com o Hugo um dia antes da apresentação, expliquei para ele o conteúdo dos documentos e sugeri algumas perguntas que poderíamos fazer para a o resto da turma a fim de promover um debate.

Um dos documentos que escolhemos ficou na minha cabeça: falava de um oficial inglês que, no ápice da guerra, ficou louco. Ele começou a gemer, a rastejar no chão, a cavar desesperadamente um buraco na lama como se tentasse fugir - tudo isso observado pelos soldados os quais ele liderava. O outro oficial que viu aquilo disse que ele parecia ter regredido a uma forma pré-humana de vida, pois não se comunicava, não andava e não dava ouvidos a ninguém; apenas gritava e rastejava. Achei aquilo assustador e, ao mesmo tempo, bastante propício para suscitar uma discussão. Enxerguei aquilo como algo simbólico de uma nova realidade de guerra. Toda a pompa, a glória e majestade dos oficiais do século XIX havia se perdido diante de uma nova realidade de guerra: a realidade da metralhadora, dos bombardeios, da guerra total, capaz de deixar qualquer homem pacato do século XIX literalmente doido.

Mas enfim, aquilo que tinha tudo para sair errado acabou não saindo: no dia da apresentação o integrante alemão de nosso grupo apareceu muito bem e pôde apresentar normalmente, além de conduzir a discussão. Preparei um texto para me guiar na hora da apresentação e até que foi tranquilo. Ao fim da aula o professor (o mesmo da matéria em que eu havia apresentado sobre Karl Marx) disse que falei com muita segurança e desenvoltura. Novamente aliviado!

Na quinta à noite o departamento de estrangeiros da UNI-Augsburg organizou um pequeno passeio pela cidade ao qual aderi de última hora. A guia do passeio nos levou para alguns pontos históricos da cidade sobre os quais haviam lendas e nos contou dessas lendas. A que mais gostei foi a das sete crianças. Existe uma rua aqui em Augsburg que se chama "(alguma coisa) de sete crianças". Embaixo da placa com o nome da rua há seis imagens de crianças talhadas em pedra. Diz a lenda que, nos tempos do Império Romano, um casal que vivia na cidade tinha sete filhos e acabou perdendo um deles (ele simplesmente sumiu e ninguém mais o viu). A mãe ficou tão triste que se esqueceu de tudo: do marido, dos outros filhos, dos afazeres domésticos... Ela só pensava no filho desaparecido. Foi quando o marido dela fez essa escultura em pedra com seis crianças e deu a ela de presente. A mulher viu aquilo e perguntou por que ele havia esculpido só seis crianças se eles tinham na verdade sete filhos. Ao que o marido respondeu: "não preciso esculpir nosso sétimo filho pois ele está sempre com você em seus pensamentos; essa escultura é para você se lembrar dos outros seis filhos que você ainda tem mas dos quais se esqueceu".

Por essas e outras digo que não poderia ter escolhido cidade melhor do que Augsburg para morar. Não preciso viajar muito porque aqui sempre têm lugares interessantes para se ver. Só me resta coragem para quebrar minha rotina "casa-faculdade". Assim como a mulher da lenda, preciso parar de ficar me preocupando apenas com um aspecto do meu intercâmbio (a finalidade acadêmica) e me lembrar dos demais aspectos (viajar, passear, conhecer...). Preciso me lembrar de meus outros seis filhos. Objetivos são bons mas não são tudo.

Confissões de Augsburg - o retorno I

Sempre fico impressionado com a capacidade que tenho de tornar minha vida uma rotina. Sou cristão, nunca escondi isso. Mas, como todo cristão em pleno século XXI, tenho uma série de dúvidas frente a algumas coisas em que acredito. Não consigo imaginar como seria viver em lugar por toda a eternidade achando tudo lindo sempre. Dada minha experiência de vida até aqui, creio que se eu fosse para o céu iria passar um mês impressionado, e depois desses trinta dias iria perguntar a Deus: "onde fica o restaurante e a biblioteca?".

Augsburg é uma cidade fantástica: aqui foram lidas em público pela primeira vez as ideias que Lutero tinha para reformar a igreja; aqui foi firmada a paz de 1555 que acabou com as guerras religiosas na Europa e definiu que cada súdito deveria ter a fé de seu rei; aqui nasceram o pai de Mozart e o filósofo Bertolt Brecht. E ainda assim, o que eu mais tenho visto nessas últimas semanas em que não escrevo é o bonde e suas estações (já estou decorando os nomes de todas entre minha casa e a universidade), a bandeja branca do restaurante universitário, meu netbook e minha cama.

Claro que eu não vim aqui a turismo: tenho responsabilidades. Mas sempre acho que eu poderia estar aproveitando mais do que estou. Não é uma reclamação, apenas uma auto-crítica. Acho muito melhor fazer as coisas quando se tem um objetivo. Eu não vou a boates, bares e festas não porque não goste das pessoas de lá, mas apenas porque lá eu não tenho objetivos (não danço, não bebo, não estou procurando uma parceira nem novas amizades). Ficar 3, 4 ou 5 horas em um lugar sem ter metas, sem ter ambições, sabendo que esse tempo poderia estar sendo gasto de forma mais produtiva é quase uma tortura pra mim. Sendo assim, fico feliz de ter vindo para a Alemanha com um objetivo, e de poder ocupar meu tempo com ele. Meu intercâmbio na Malásia não foi assim. Lá foram 12 meses pairando, sem saber se eu estava regredindo, progredindo ou parado. Só depois que voltei ao Brasil fui perceber que ele foi uma regressão extrema, total, mas não permanente: como uma mola que se comprime até a sua base pra depois dar um salto maior que seu tamanho natural, na Malásia regredi o máximo que eu poderia regredir, até o alerta vermelho se acencer, eu me tocar e então progredir nos anos seguintes (o que eu quero dizer com "progredir" já é uma outra história completamente diferente e longa demais para contar aqui). E tudo isso por um simples motivo: fui para a Malásia sem objetivos.

Mas não, minha vida não tem sido um marasmo. Como disse em meu último post, planejei ir para o campo de concentração de Dachau na terça e, de fato, eu fui. De última hora fiquei sabendo que outros estudantes estrangeiros também iriam e pedi a uma amiga minha que era amiga deles avisarem que eu também iria. Conhecia-os assim só de vista e foi fácil achá-los na estação. Dachau fica bem perto de Augsburg, mas a viagem de trem é mais demorada pois passamos primeiro pela estação central de Munique.

O campo de concentração é um lugar de outro mundo: tirando um grupo de turistas jovens que não paravam de se atazanar, é um lugar bem tranquilo e melancólico. Quando fui o tempo estava um pouco nublado e só contribuiu para reforçar essa sensação. Lá vi as câmaras de gás, os fornos onde os corpos eram cremados, as camas dos prisioneiros e os monumentos em homenagem a todos que ali padeceram. Tem também um museu cheio de fotos, vídeos, documentos e recursos interativos sobre a história do campo. Meu único problema com museus aqui na Alemanha se deve aos textos que li na disciplina de Arquivos e Museus semestre passado. Por mais que a proposta da matéria seja válida, achei aqueles textos um verdadeiro porre e depois de lê-los minhas visitas a museus ficaram completamente modificadas - para pior. Resumidamente, poderia dizer que aprendi três coisas com esses textos: 1. Todos os museus do mundo estão errados. 2. A partir do momento em que você entra em um museu, tudo aquilo que você fizer ou deixar de fazer está errado. 3. Não há nada que você possa fazer para mudar essa realidade.

Cada peça ou recurso que vejo em um museu me remete a um parágrafo daqueles textos malditos. A cada passo que dou sinto que um dos autores daqueles textos está me vigiando para saber se estou vivenciando a exposição de forma correta. Segundo aqueles autores, tudo está errado, tudo é ruim e nenhuma exposição no mundo consegue cumprir o papel que um museu deveria cumprir. Que não me levem a mal os leitores que gostaram dessa matéria, mas em se tratando de museus, a única opinião que consigo ter é a de que "cada um monta como acha melhor e cada um vivencia como acha mais conveniente". Confesso que sou ignorante demais para teorizar e entender quem teoriza sobre isso.

Mas no mais, Dachau foi uma experiência e tanto. Duas coisas que me chamaram a atenção foram os monumentos religiosos - existe um para homenagear os judeus, um para os católicos e um para os protestantes que morreram lá - e a livraria que fica na entrada do campo. Logo na entrada da livraria fiquei transtornado: nunca vi uma quantidade tão grande de livros, revistas e DVDs sobre nazismo em um só lugar. Tem livro sobre tudo relacionado ao tema: a política externa nazista, biografias de figuras importantes do Terceiro Reich, a burocracia nazista, as origens do nazismo, os campos de concentração, a história dos alemães que lutaram contra o nazismo (algo do que os alemães de hoje se orgulham muito), entre outros. Mas, mais no fundo da livraria, há uma outra seção: a seção de objetos judaicos! Lá têm livros sobre história do judaísmo, livros sobre as tradições judaicas, menorás (castiçais de sete braços com a estrela de Davi), livros infantis que ensinam a rezar em hebraico... Enfim, tudo que você imaginar sobre o tema "judaísmo". Achei bem interessante essa divisão e, incrivelmente, consegui me conter a ponto de não levar nenhum livro ou DVD!

Nos dias que se seguiram continuei dando prosseguimento à minha pesquisa. Mandei um e-mail ao meu professor da matéria de "Imperialismo e colonialismo na Alemanha Imperial" pedindo sugestões sobre em quais jornais da época eu poderia pesquisar sobre a visita do Kaiser Guilherme II a Tangier (disse a ele que queria um jornal alinhado com o Kaiser). Ele não só me passou os nomes dos principais jornais da época e a posição política de cada um deles, como também me deu a ótima notícia de que os documentos da política externa alemã do período 1871-1914 foram publicados em livros e estavam disponíveis na biblioteca da universidade. Achei-os com facilidade e atualmente estou em uma dúvida cruel sobre se tiro uma cópia do período que me interessa, se escaneio ou se procuro os volumes pra comprar. Preciso achar um jeito de levá-los comigo para o Brasil! E junto com esses volumes encontrei vários outros volumes de documentos da política externa do Império Austro-Húngaro, da França e da Inglaterra publicados.

A neve pela qual tanto espero não caiu até hoje. Acho que só em dezembro. Todos os dias de manhã acordo na esperança de vê-la na janela do meu quarto mas ela nunca está lá. Mas as temperaturas de madrugada recentemente têm caído para -3 e -4. E por falar em janela, há algumas semanas descobri que tem um ninho de joaninhas no meu quarto: elas ficam todas amontoadas no canto direito da janela, ao que parece se protegendo do frio. Na cortina também tem um monte e sempre que estou estudando na mesa aparece uma em cima do caderno, mas elas nunca me incomodaram. Achei até simpático; bem melhor do que aquelas muriçocas que tiram o sono da gente.

No sábado dia 12 aproveitei que não tive aula e fui, junto com alguns outros estudantes estrangeiros, para Salzburg, na Áustria. Aqui eles costumam postar no grupo do Facebook uma mensagem falando "estou indo para tal lugar tal dia, quem quer vir?", porque quanto mais pessoas mais fácil é de viajar. Com um Bayern-Ticket você viaja para qualquer lugar da Bavária no período de um dia. Cada bilhete pode servir para até cinco pessoas e então fica mais fácil dividir os custos. E foi numa dessas que acabei indo para Salzburg que, por mais que não seja oficialmente na Bavária, fica bem próximo à fronteira e por isso o ticket vale para lá também.

Augsburg é a terra natal do pai de Mozart e Salzburg é a terra natal do próprio Mozart! Logo, tudo lá gira em torno dele: souvenirs, cartões postais, chaveiros, chocolates... Tudo que você compra vem o Mozart junto! Isso sem falar nas milhares de camisas, adesivos e canecas escritos "No cangoroos in Austria!", destinados a todos aqueles que confundem o país europeu com a ilha da Oceania. Ficamos por lá apenas um dia e já à noite voltamos para Augsburg.