Visualizações de página do mês passado

domingo, 12 de julho de 2020

Diários de Quarentena - 11 de julho de 2020

Sempre fui fascinado por aqueles momentos de paz profunda que antecedem um abalo catastrófico ou uma ruptura radical.

Como estaria a Bastilha no dia 14 de julho de 1789, pouco antes de as massas parisienses irromperem de todos os cantos? Como seria o ambiente em Wall Street na madrugada do dia 23 para o dia 24 de outubro de 1929, logo antes do começo da Grande Depressão? Como foi o café da manhã dos marinheiros estacionados em Pearl Harbor no dia 8 de dezembro de 1941, pouco antes de os aviões japoneses cruzarem os céus?

Ultimamente tenho ouvido com muita frequência uma playlist no YouTube intitulada “ Corp. : NEWS AT 11”. A playlist traz uma série de trechos de programas de televisão e rádio nos Estados Unidos na manhã do dia 11 de setembro de 2001, pouco antes de a transmissão ser interrompida para noticiar os atentados. Logo antes da interrupção tem início um pequeno arranjo musical ao estilo vaporwave, com sons que trazem uma bela nostalgia dos anos 1990, a anunciar que a inocência acabou. É como se os tranquilos anos do pós-Guerra Fria nos dessem adeus, levando consigo a paz prometida por Fukuyama e a esperança de um novo século de paz, longe dos horrores das guerras mundiais.

O indivíduo que fez tais arranjos é um gênio. Para mim, sua mensagem é clara: “Em breve interromperemos nossa programação para noticiar um dos maiores atos terroristas da História. Mas antes disso, aproveite seus últimos momentos de paz, afinal, você merece!”.  

Ouvir tais transmissões tem me trazido uma serenidade indescritível. A serenidade que é peculiar aos últimos momentos de paz que antecedem um desastre. Assim como o momento mais frio de uma noite é aquele que antecede o primeiro raio de sol, o instante mais sereno é aquele que está a apenas um segundo de distância da eclosão de uma guerra.

No dia 11 de março do ano corrente, 11 anos depois que iniciei minha graduação no curso de História, recebi uma das notícias mais aguardadas por mim nesses últimos 11 anos: fui aprovado em um processo seletivo para professor em uma universidade estrangeira. Do dia 11 de março ao dia 17 de março, vivi meus momentos de glória. Mas eles também antecediam um abalo profundo: no dia 17 a UFMG suspende as aulas devido ao vírus e eu me vejo de mala na mão, voltando para Lavras.

Em poucos momentos de minha vida fui tão feliz quanto nestes idos de março. Por sete dias não aguardei novas notícias. Por sete dias tudo parecia estar solucionado. Por sete dias não tive o que desejar. Hoje completam exatos quatro meses desde que recebi a notícia mais aguardada dos últimos anos. Quatro meses foram o suficiente para ansiar por outra notícia, muito mais do que ansiei nesses longos 11 anos pela notícia de uma vaga de professor universitário. No dia em que tivermos a confirmação de uma vacina eficaz, o dia 11 de março de 2020 entrará para a minha História como apenas um dia qualquer.

Bem lá no fundo eu sempre soube que, quando alcançasse meu grande objetivo, algo aconteceria que me faria ter saudades dos tempos em que eu ainda não o havia alcançado. Há um ano eu não era um professor universitário, mas pelo menos eu podia sair de casa sem medo. Há dois anos eu não era professor universitário, nem mesmo doutorando, mas pelo menos não tinha medo de ler as notícias. Passei grande parte da vida raciocinando que tudo seria melhor quando eu alcançasse meu sonhado emprego. Agora que o alcancei, me arrependo de ter me esforçado tanto por alcançá-lo a ponto de deixar de lado várias coisas boas que agora não tenho mais. É a utopia de Eduardo Galeano: não nos leva a lugar algum, apenas nos faz caminhar.

O noticiário anda confuso ultimamente. 1200 mortes por dia, exceto nos finais de semana, quando nem todas as secretarias de saúde do país funcionam e o noticiário nos dá uma folga da matança. Mas sempre vem a segunda ou a terça e as omissões do final de semana são cobradas com juros e correção.

A cada novo morto, o espanto vem logo seguido de perguntas: “Tinha doença crônica? Era diabético? Era idoso? Era obeso? Era cardíaco? Teve contato com infectados?”. Procuramos, inconsciente e freneticamente, uma forma de responsabilizar a vítima pelo seu destino. E se a resposta a uma dessas questões for “sim”, logo ficamos em paz com nossa consciência. Tão logo nos damos conta do quão inconsequente fomos, coramos de vergonha e nos recolhemos com medo, cientes de que ninguém está a salvo.

Marcos Novaro e Vicente Palermo observam que, na ditadura militar argentina (1976-1983), até mesmo aqueles que não eram parte da resistência armada acabavam padecendo frente à repressão. A cada novo “desaparecido” político, aqueles que não queriam se envolver tentavam racionalizar a situação: “por alguma coisa ele deve ter sido preso”; “ninguém vai preso à toa”; “alguma coisa ele fez”. Trocando em miúdos: o indivíduo não é punido por ser culpado; ele é culpado porque foi punido.

Nas palavras dos autores: “as vítimas eram tratadas dessa forma porque alguma coisa tinham feito e porque não havia outro caminho. Obtinha-se, assim, tanto uma justificação para não agir (...) como uma razão para se sentir seguro”. Essa “culpabilização reconfortante” é o que nos permite olhar para o lado enquanto milhares padecem, e logo em seguida sentar em nossa poltrona enquanto tentamos convencer a nós mesmos de que não cumprimos nenhum dos requisitos para sermos os próximos da lista. E sempre haverá uma nova lista, um motivo bastante razoável para aqueles que nela estão, e um motivo razoável para nós não estarmos.