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sábado, 18 de junho de 2011

Jiao Pei Fang, o eunuco da Torre de Marfim

Era uma vez um eunuco de nome Jiao Pei Fang, que viveu há milhares de anos no longínquo Reino da Torre de Marfim, localizado nos confins da China. Os eunucos na China antiga eram serviçais castrados a fim de tomar conta dos haréns dos imperadores, sempre cheios de belas mulheres. Também era dever dos eunucos auxiliar os soberanos em tarefas do dia a dia, especialmente durante as refeições. Cabia aos eunucos a ingrata tarefa de experimentar tudo que o monarca comia e bebia, a fim de assegurar que seu alimento não estava envenenado.

Jiao Pei Fang era o eunuco mais antigo e também o mais fiel de toda a corte do Reino. Sua fama e experiência eram tamanhas que ele trabalhava na torre de marfim – uma torre linda, alta e brilhante, onde ficavam os principais aposentos do imperador, além de seu harém, cuja fama corria os confins da Ásia Central. Pouquíssimas pessoas podiam se aproximar da torre de marfim, e menos ainda podiam adentrá-la. Todos os súditos do rei da Torre de Marfim admiravam-na no fim da tarde, quando seu brilho era ainda mais intenso e belo. Mas Jiao Pei Fang era um serviçal competente e fiel, e por isso estava sempre lá, a encher seu monarca de cuidados: protegia suas muitas mulheres, cuidava de suas filhas e nunca permitia que sequer uma gota d’água entrasse na boca real sem antes tê-la provado.

Jiao Pei Fang gozava de todos os privilégios que sua função lhe permitia: dormia em um quarto suntuoso, comia do bom e do melhor, recebia presentes todas as semanas e sempre tinha um tempo livre. Esse tempo sagrado ele aproveitava das mais diversas formas: lendo, jogando xadrez, pescando, pintando, escrevendo poesia... O rei nunca escondeu seu orgulho de Jiao Pei Fang, seu mais fiel e antigo serviçal!

Certa manhã, o rei chamou Jiao Pei Fang em seu gabinete, ao que o eunuco prontamente atendeu. O rei estava sério. Avisou ao seu fiel serviçal que, na noite passada, duas de suas mulheres haviam desaparecido do harém. Jiao Pei Fang não soube o que dizer. Trêmulo, ele assegurou ao rei que sempre contava todas as mulheres antes de fechar o harém, e que sequer uma delas estava ausente na noite passada. O rei aceitou, mas cobrou do eunuco mais empenho, no que foi prontamente atendido.

Passadas duas semanas, mais seis mulheres sumiram. O rei ia perdendo a paciência, mas no fim, sempre declinava diante da leveza e suavidade com que Jiao Pei Fang contornava a situação. O eunuco afirmava que zelar pelo harém do rei era sua maior honra, para a qual fora destinado desde os sete anos, quando foi vendido por seus pais para ser eunuco. Afirmava ainda o nobre funcionário que nada mais o agradava tanto quanto servir ao seu rei, e que seria capaz de doar suas roupas, seu dinheiro e suas duas pernas a fim de evitar que sequer um pedaço de pano da roupa de uma de suas mulheres fosse roubado.

Um mês se passou desde o último sumiço, quando novamente o harém amanheceu reduzido. Desta vez eram quinze mulheres a menos. O rei torna a chamar seu serviçal, desta vez furioso: aquilo já estava passando dos limites! E novamente Jiao Pei Fang sai em sua defesa: jamais poderia ele, nobre serviçal, tão devotado ao rei e à sua família, permitir uma afronta daquela, pois que a propriedade do rei era sagrada! E disse que ainda que tivesse todos os reinos do mundo, de todos eles desistiria, com a única finalidade de impedir que sequer meia flor do crisântemo que orna o harém fosse roubada. O rei se sensibilizou diante dos argumentos de seu servo e logo o dispensou, não sem antes ordenar que a partir de então ele dormiria no harém, a fim de evitar novos sumiços.

Passa-se apenas um dia, e na primeira noite na qual Jiao Pei Fang dorme no harém, desaparecem outras trinta mulheres. O rei manda chamá-lo imediatamente ao seu gabinete, mas não obtém resposta. Resolve ir ter com ele no harém, onde o acha embriagado, caído ao chão, incapaz de erguer sua cabeça. O rei ordena que ele se levante, mas tudo o que o pobre eunuco consegue fazer é estender a mão com um crisântemo, oferecendo-o ao rei, que novamente se sensibiliza diante de tamanha bravura.

Jiao Pei Fang já não consegue mais cuidar das mulheres do rei. Este último decide que ele não irá mais cuidar do harém, apenas de suas filhas e de sua refeição. O rei reconhece que seu pobre súdito pode estar sobrecarregado e prefere aliviar suas funções. Agora, Jiao Pei Fang pode passar mais tempo com as filhas do rei.

E naquela tarde Jiao Pei Fang chega ao aposento das jovens meninas. Ele se debruça sobre as almofadas e dorme. A noite no harém havia sido muito difícil – muitos ladrões de mulheres para combater, muitas donzelas para salvar, muita energia para proteger as posses de seu querido rei; de alguma forma, Jiao Pei Fang sempre consegue convencer, ao rei e a si mesmo, de que ele tem sido útil. Jiao Pei Fang ronca feito um trovão. Logo vira alvo de chacota de todas as filhas do rei, que se divertem com aquela cena. Algumas montam em cima dele como um cavalo e derramam água quente no rosto para acordá-lo, enquanto outras esfregam pimenta ralada em sua boca aberta, mas de nada adianta: Jiao Pei Fang segue dormindo o justo sono dos herois.

Jiao Pei Fang desperta apenas na tarde seguinte. Sente dores nas costas. Seu rosto arde e sua boca mais ainda. As filhas mais velhas do rei não estão lá. Jiao Pei Fang é novamente chamado pelo rei: metade de suas filhas sumiu! O eunuco se enche de orgulho: “agradeça a seu fiel serviçal!”. O rei não acredita no que ouve: como pode um simples eunuco deixar sumirem as filhas do rei e ainda se divertir com isso?! “Pois graças a mim – diz Jiao Pei Fang – metade de suas filhas se foi. Se não fosse por mim, teriam sumido todas!”. O rei quase chora ao ouvir o relato do eunuco: os golpes que levou nas costas, as marcas de queimadura no rosto, o veneno maligno que o fizeram ingerir... A tudo isso se submeteu o eunuco para proteger as filhas de seu rei da ação de perversos ladrões de mulheres; e se apenas as filhas mais velhas foram levadas, era porque o eunuco se compadeceu da inocência e fragilidade das mais jovens, mostrando mais empenho em defendê-las. Jiao Pei Fang é um heroi! E o rei é o primeiro a reconhecê-lo. Já não lhe fazem falta suas filhas, afinal, o melhor serviçal de todo o Reino de Marfim está ao seu lado.

O rei nunca estimou tanto seu eunuco. E seu medo de perdê-lo é tamanho que resolve tê-lo só para si. A partir de então, Jiao Pei Fang não mais cuidará das filhas do soberano: ele irá apenas provar sua refeição a fim de que o rei não seja envenenado. Na manhã seguinte, o rei acorda para tomar sua refeição matinal, mas a comida acabou: Jiao Pei Fang comeu tudo. Irritado, indignado e prestes a sacar sua espada, o rei pergunta como ele ousa fazer aquilo, ao que é respondido por um Jiao Pei Fang empanzinado, meio dormindo, meio acordado: “ingeri toda a comida a fim de ter certeza que toda ela estava segura para consumo; é comum que metade dos alimentos esteja envenenada e a outra metade não, o que pode ser fatal para o rei, que merece ainda muitos anos de vida e que os deuses o tenham para todo o sempre!”. O rei tem fome, mas tem ainda mais orgulho de seu eunuco. Nunca viu tamanha dedicação de um serviçal ao seu senhor. Mais do que nunca, ele tem certeza de ter feito a escolha certa.

Chega a hora do almoço. Jiao Pei Fang está exausto: cuidar do rei exige uma energia e vigor únicos. Só o que ele quer é provar logo a refeição do rei para aproveitar seu tempo livre. Mas o pobre eunuco ainda está cheio do café da manhã usurpado. Não cabe mais nada naquela barriga tão inchada que já o impede de enxergar o que não há. E Jiao Pei Fang resolve não experimentar o almoço. O rei pergunta ao eunuco se ele já provou do arroz, ao que este responde positivamente, assegurando-lhe estar livre de toda e qualquer substância capaz de tirar a vida de tão majestosa figura. E o rei se comove...

De volta à cozinha, Jiao Pei Fang esbarra na vasilha de arroz e deixa cair um pouco no chão. Tenta curvar-se para limpar, mas sua barriga imensa, ainda cheia da refeição matinal, não o permite. Conclui que é melhor deixar para depois, leva a refeição para o rei e sai a perambular pela torre de marfim, compondo versos e pintando paisagens. Os dois cachorros do rei logo sentem o cheiro do arroz derrubado no chão da cozinha. Os animais não demoram a achá-lo, ao que põem-se a comê-lo com prazer, mas não por muito tempo. Em poucos segundos, ambos caem ao chão.

Não há esposas nem filhas em idade para suceder ao rei morto – foram todas seqüestradas. Diante disso, e em reconhecimento aos serviços prestados à família real, Jiao Pei Fang é sagrado o novo soberano do Reino da Torre de Marfim.