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domingo, 23 de maio de 2010

Os dilemas do professor Reinaldo

Seu nome é Torres. Reinaldo Torres. Reinaldo Torres é um simpático, efetivo e eficiente professor do departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Por todos os cantos do curso de História e mesmo da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, não há quem não o conheça, não há quem não o admire. Não há quem nunca tenha tido a honra ou o desejo de embelezar seu histórico ou sua vida com uma aula dele, mesmo que apenas como ouvinte.

Grande professor Reinaldo!

O professor Reinaldo é especialista em historiografia brasileira, matéria que leciona com invejável maestria. Seus alunos ficam mudos ao seu falar. Não há quem se atreva a interrompê-lo ou passar bilhetinhos enquanto o professor Reinaldo fala. Seus alunos, quase todos ateus ou agnósticos, experimentam um raro momento de religioso silêncio durante suas aulas.

Quando fala de Sérgio Buarque de Holanda, o professor Reinaldo deixa todos boquiabertos. Ao mencionar passagens de Raízes do Brasil, corrobora a visão que o autor tem da cultura personalista que a colonização portuguesa imprimiu ao Brasil. Satiriza a cultura do brasileiro de, até hoje, favorecer as relações “clientelares” em detrimento da meritocracia. Diz ele que “lá na Europa, onde fiz o meu mestrado”, só se dá bem quem estuda com dedicação e trabalha duro, e “não é que nem no Brasil, onde só tem sucesso quem é bem relacionado, quem tem contatos”. As raízes do atraso brasileiro, na concepção do professor Reinaldo, estão justamente na falta de valor que o país dá ao mérito, ao esforço, à seleção impessoal. Porque “lá nos Estados Unidos, onde fiz meu doutorado, não basta ter uma carinha bonita para ser bem-sucedido”.

O professor Reinaldo é grande fã do inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, o qual costuma citar com frequência em suas aulas. Diz ele que até hoje todo brasileiro tem um quê de súdito de Fanfarrão Minésio: “nesse país, quem abre a boca contra as autoridades não tem sossego”. Nosso professor não perde a pompa e, mais uma vez, cita sua experiência internacional, afirmando que na Europa há liberdade de expressão, e que não é necessário concordar com o presidente ou com o premiê para subir na vida. No Brasil, pelo contrário, prevalece a lógica de sempre agradar o poder para prosperar, independente de quem esteja por trás dele.

O professor de história moderna faltou! Sem problemas. O professor Reinaldo está lá para substituí-lo. Seus anos de estudo na França e na Inglaterra fizeram-no um exímio conhecedor da gênese do Estado Absolutista. Apesar de essa não ser sua especialidade, o professor Reinaldo não deixa por menos: ironiza o ambiente das cortes do Antigo Regime, onde a nobreza estava sempre cercando o rei, fazendo-lhe agrados, na desesperada tentativa de lhe arrancar favores. Compara a aristocracia a uma foca de circo: faz suas gracinhas para arrancar os aplausos de alguém. E conclui que, apesar da distância temporal e espacial, o Brasil de hoje não é muito diferente – a ordem continua a ser cortejar o poder, cercá-lo, fazer-se percebido, a fim de alcançar o sucesso pessoal.

Apesar de seu sucesso e satisfação profissionais, o professor Reinaldo também tem seus problemas, como todo ser humano. Recentemente ele foi contemplado com duas generosas bolsas de estudo para um projeto de pesquisa. Entre tantos alunos – todos simpáticos e agradáveis, todos solícitos em convidá-lo para “tomar uma” depois da aula, – como escolher apenas dois bolsistas?

O professor Reinaldo tem um dilema.

Chama-lhe a atenção certo aluno que se senta, todas as aulas, na primeira fileira – “um tal de Henrique, ou algo assim”. Henrique é um garoto exemplar. Todos os dias antes da aula se oferece para comprar café para o professor. Após as aulas, mostra-se igualmente solícito para ajudar a carregar seu material. Sem dúvidas, uma boa opção.

Também na primeira fileira, a poucas cadeiras de Henrique, temos a simpática Fernanda, mais conhecida como Fêzinha. Fêzinha não gosta de estudar. Também não gosta de História. Ingressou em um curso superior apenas por pressão de seus pais, e optou por História apenas porque era mais fácil passar. Seu grande sonho mesmo é casar-se com seu namorado, estudante do último ano de Engenharia Civil. Fêzinha vai às aulas de minissaia e blush e, com pouco tempo de curso, já cativou o professor Reinaldo. Outra boa opção.

Algumas carteiras atrás, bem lá no fundo, senta-se uma figura que costuma fazer importantes aparições durante as aulas do professor Reinaldo. É um rapaz de cabelo encaracolado, óculos de armação preta, que sempre se põe a discordar do que o professor Reinaldo diz. Não há uma aula sequer na qual não se note uma acirrada discussão entre ele e o professor, acerca dos mais variados temas – discussões essas que nunca chegam a um ponto final muito claro. Um bom aluno, segundo o professor Reinaldo, mas meio problemático.

O professor Reinaldo tem ainda um dia inteiro para resolver seu dilema – fará isso em sua sala particular, depois de sua aula matinal. Antes disso, porém, precisa se desvencilhar com cautela da turba de alunos que o cerca ao final da aula. Depois de ouvir alguns elogios, pedidos, mais elogios, mais pedidos, súplicas, comentários desnecessários e irrelevantes sobre a matéria e sobre seu mais recente artigo, finalmente o professor Reinaldo tem caminho livre. Senta-se em sua poltrona e, após um longo suspiro, lá fica por quase uma hora.

Está satisfeito, pessoal e profissionalmente – é querido por todos (excetuando-se talvez o cabelo encaracolado de armação preta). E seu dilema? Já resolveu. A bolsa é da menina da minissaia e do menino do café. Envia aos dois um e-mail parabenizando-os, e mais outro para a fundação de pesquisa, na esperança de obter um valor maior para a bolsa. Recolhe seus livros sob o braço enquanto fecha a janela e vai almoçar.