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quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A Saga de N. - IV

N. não criara o mundo, já o recebera assim.

Repetia sempre para si mesmo esse mantra em voz baixa o jovem mestrando em História. Também não fora ele quem criara as regras do jogo: apenas jogava em conformidade com elas, sem se perguntar se eram moralmente aceitáveis ou não.

Era o que a vida lhe ensinara.

No secundário, não adiantava criticar o vestibular: primeiro seja aprovado, depois reclame dos processos seletivos e faça alguma coisa para mudá-los. Na vida acadêmica não é muito diferente: primeiro tire seu mestrado, doutorado, pós-doutorado, publique artigos e livros a rodo, apareça bastante na TV e depois, do alto de sua erudição, afirme que é preciso mudar a academia. Você não vai conseguir mudar nada, mas pelo menos as pessoas vão te ouvir.

Por isso N. já se armara desde os primeiros anos de sua graduação: iniciação científica, apresentação de trabalhos, publicação em anais, publicação em revistas, mais iniciações científicas, mais apresentações de trabalhos, mais publicações em anais e em revistas. Sua aprovação no mestrado veio quase que naturalmente, para a surpresa de ninguém, exceto para a sua própria, que esperava uma colocação melhor no processo seletivo.

Mas o que mais enchia N. de orgulho era sua publicação – única, até então – em uma revista de Qualis A2. Publicar em revista A2 era atingir quase o topo da escala evolutiva na produção acadêmica, era beirar o ápice da cadeia alimentar intelectual e chegar bem perto do ponto culminante das letras universitárias. No dia em que N. viu seu artigo publicado na referida revista, sua vida nunca mais foi a mesma. Mudou para melhor.

Não era mais um reles autor de revistas Qualis B ou C. Não! Livrara-se daquela mediocridade. Escapara daquele humilhante calabouço. Ascendera, voara voos mais altos, subira a cumes mais íngremes. Não chegara ao topo, mas bem perto. Vislumbrava, lá de longe – mas não tão de longe quanto antes – o suprassumo da excelência acadêmica: "A1, A1, A1!" - como diriam os espartanos do filme "300"! "A1, A1, A1!", ladravam os cães, a celebrar prematuramente seu triunfo próximo.

A academia era implacável. Por isso era preciso estar sempre à frente. E era com esse pensamento que ia dormir todas as noites: sempre à frente, sempre à frente. Se isso era uma forma saudável de agir, pouco importava. Não criara o mundo: já o recebera assim.

Sua família pequeno-burguesa vivia a alertá-lo:

- Olha lá o seu primo, ganha 8 mil por mês e só tem o ensino médio.

- Olha lá o seu amigo, passou num concurso e ganha 10 mil por mês sem trabalhar quase nada.

- Olha lá o seu irmão, vai passar no concurso pra oficial de justiça e vai ganhar 12 mil por mês.

- Olha lá sua madrasta, fez uma faculdade de moda de apenas dois anos e tá viajando a Europa inteira.

- Olha lá o seu Clodoaldo da farmácia, entrou pra política e já tem três carros importados.

Mas era tudo inútil. N. simplesmente não conseguia mirar-se nos grandes exemplos ao seu redor.

N. carregava um tipo bastante especial de fardo: era o fardo da escolha equivocada. Como errara na hora de escolher seu curso, ou ele dava a volta por cima e mostrava a todos que também poderia “ser alguém na vida”, ou dava o braço a torcer, tornando-se o protagonista de uma crônica de uma morte anunciada, de uma self-fulfilling prophecy.

Por isso era preciso estar sempre à frente. Chegaria um dia o concurso para docente superior, e para não se curvar ainda mais ante à dor do fardo, necessário era estar sempre à frente. Muito à frente. Por isso sua publicação A2 o enchia de orgulho.

Triste foi o dia em que, num momento de ócio, sem muito o que fazer, ao passar os olhos pelo relatório da Capes descompromissado, N. constatara de forma aterradora que não havia A2, que na realidade a revista que publicara seu artigo era, desgraçadamente... B4!

N. demorou a processar aquela informação. Como poderia ser? Certificara-se bem, antes de submeter seu artigo, da avaliação do periódico. Não, não podia ser! Ou podia? Podia ser que a Capes tivesse reduzido a nota do periódico. Acontece sempre nos mais diversos contextos. Há poucos meses mesmo o Brasil tivera sua nota rebaixada pelas agências de risco, de BAA2 para BAA3, tornando-se assim um mau pagador. A presidente e sua equipe econômica correram atordoados à mídia a dar explicações. N. temia ter que fazer o mesmo. Mas a quem daria explicações? E por que meios? Qual canal de rádio ou TV abriria 10, 5, 2 minutos de sua programação que fossem, a fim de que N. pudesse se explicar?

Mas podia ser que a nota da Capes não tivesse nada a ver com isso. Podia ser que N. tivesse se confundido ao mandar seu trabalho. Com tantos nomes parecidos, não era de se surpreender.

Ele pode ter enviado seu artigo para a “Temporalidades Históricas”, quando na verdade a revista A2 era a “Historialidades Temporais”. Ou pode ter enviado para a “História Temporal”, quando na verdade deveria ter enviado para a “Temporal Histórico”. Ou ainda, era bastante provável que tivesse submetido seu precioso artigo à “Tempo da História” pensando estar submetendo-o à “História do Tempo”. Mas o mais provável é que tenha confundido a “História e Tempo” com a “Tempo e História”.

B4, B4... Desgraçadamente B4! De um sopro, N. regredira à escória da cadeia produtiva.

Não conseguia mais se olhar no espelho, pois tudo o que via era um acadêmico B4. Já não se achava mais no direito de desfrutar das companhias costumeiras. Estas, que há até bem pouco tempo pensariam ter um neto, filho, sobrinho, irmão, primo, amigo, colega, conhecido ou ficante A2, agora nada mais tinham do que um neto, filho, sobrinho, irmão, primo, amigo, colega, conhecido ou ficante B4. Como se explicaria para tanta gente?!

O fardo da escolha equivocada foi se tornando cada vez mais irresistível para N.. Cada vez que abria a planilha com as notas da Capes e via aquele B4, aquele maldito B4, tão despretensioso e insignificante em fonte Arial tamanho 10, totalmente ignorante da aflição que causava, N. tinha espasmos de tristeza e raiva.

O primo com seus 8 mil, o amigo com seus 10 mil, o irmão com seus 12 mil, a madrasta na Europa, o Clodoaldo com seus carros importados... Tantos bens e cifras giravam na mente do jovem acadêmico, imprimindo-lhe um misto de vertigem e delírio: “Malditos! Malditos sejam todos! Ao inferno com essa gente! Ao inferno com seu dinheiro, seus carros e suas viagens! Ao inferno!”.

8 mil... 10 mil... 12 mil... Europa... carros... E N. com seu humilde B4. Um simples A2 no Lattes já não significava muito diante de 30 mil, viagens à Europa e carros importados. B4 menos ainda. E era o máximo que ele tinha a oferecer.

Já não estava tão à frente como antes. Nunca estivera, na verdade.

Chegara ao seu prédio estupefato ao fim daquele dia. Pegou o elevador até o oitavo andar. A partir dali seguiria de escada. Já não ouvia mais o grito dos espartanos nem o ladrar dos cães. Só o que ouvia era uma inocente canção que seu cérebro compusera quase que espontaneamente durante seu martírio, baseada em uma antiga melodia:

Não era A2...
Não era!
Não era A2 era...
B4, B4, B4.

Pensou em deixar um bilhete de despedida, mas desistiu. Se não era digno de uma revista A2, não queria mais escrever. Ao saltar do terraço do prédio percebeu o quanto não estava preparado para aquilo. Seu estômago trincou, sua garganta secou repentinamente e seu coração levou um choque, fazendo-o vir a óbito segundos antes de se esborrachar no chão. Sempre à frente, como sempre.

Sua morte foi anunciada no obituário do jornal no caderno A, página 2, mas seu corpo permanece sepultado na quadra B, lápide 4 do cemitério local.