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quarta-feira, 10 de agosto de 2016

No princípio, eram os mosquitos

São duas e quinze da manhã de um verão como outro qualquer.

Horácio acorda abanando a mão esquerda, ainda meio sonolento, tentando capturar um dos vários mosquitos que o azucrinam. Todo verão é a mesma história: os mosquitos se reúnem em massa nas redondezas da casa de Horácio, aproveitando a fartura de locais para se reproduzirem e alimentarem. Horácio não os suporta, nunca os suportou. E com verões cada vez mais quentes e infestações cada vez maiores, seu ódio cresce mais e mais.

- Já não durmo mais – diz Horácio a Cléber, o balconista da padaria, na manhã seguinte.

- É a mosquitada de novo?

- Sempre eles.

Antes mesmo dos idos de janeiro, Horácio não sabia mais o que fazer. Não dormia direito, em consequência não trabalhava direito e não se relacionava direito. Não demorou muito até que ele cultivasse verdadeiro ódio dos pequenos animais, declarando-lhes uma guerra de morte.

Chegava em casa exausto do trabalho todos os dias, mas não dava o braço a torcer. Matava todos os mosquitos que apareciam. Com o jornal, com um livro, com a raquete, com as duas mãos e às vezes até com uma, caso a outra estivesse ocupada.

Cada dia era uma luta nova, vários mosquitos mortos e a sensação do dever cumprido. Faltavam poucos minutos para as duas da madrugada quando Horácio finalmente caía na cama, exausto de tanto matar mosquitos. No dia seguinte, o ciclo se repetia.

Os dias, que sempre foram iguais para Horácio, tornavam-se mais iguais do que nunca. O ódio lhe subira à cabeça. Nada o tiraria de lá.

Dias havia em que ele saía do trabalho mais cedo na esperança de que o elemento surpresa poderia conspirar a seu favor. Aos poucos, Horácio foi perdendo sua civilidade, deixando-se dominar por comportamentos animalescos. Corria pela casa derrubando enfeites e mobília atrás dos mosquitos. Dava gritos de alegria a cada corpo dilacerado que via na parede ou em suas mãos, mas também urrava de ódio a cada mosquito que lhe escapava, perseguindo-o com ainda mais brutalidade.

Bastava ver mosquitos ou ouvir o zunido ao seu redor que ele salivava de raiva. Sentia nojo, repulsa, asco daquelas pequenas criaturas que o infernizavam.

- Canalhas! Canalhas! – gritava, erguendo e balançando o braço, sempre que os mosquitos lhe escapavam pela janela. Voltem aqui! Lutem como homens!

Traçava planos mirabolantes para surpreendê-los atrás da geladeira, embaixo do filtro ou na porta menor do guarda-roupas. Discutia, consigo mesmo, estratégias de ação. Bolava fugas e contra-ataques infalíveis, ou nem tanto. Declamava discursos de ódio abominando seus inimigos e conclamando à luta:

- Essas criaturas abjetas sem decoro não podem prosseguir em sua ação dissolvente, caftinizando-nos! Cumpre esvurmá-los. Urge escorraçá-los, vapuleá-los, zurzi-los, vergalha-los, zupá-los, azorraga-los, vergastá-los, taganteá-los, chicoteá-los, relhá-los!

Imaginava complôs que explicassem a origem de tamanha repugnância em forma de vida. Dizia que foram enviados por seu colega de trabalho invejoso. Depois mudava de ideia e afirmava categoricamente que eram obra de sua ex-namorada. Depois, desiludido, repetia consigo mesmo que aquilo não era possível, pois que sua ex já não pensava mais nele. Os mosquitos eram, isso sim, obra daquela mulher com quem tivera um caso no ano passado e que lhe trouxera mil desgostos.

E a cada novo desafeto que fazia, Horácio achava uma maneira de enquadrá-los: o açougueiro que subiu o preço da carne; o novo chefe que o perseguia no serviço; a vizinha de trás que caçoava de seus ataques nervosos; o sobrinho do carteiro que urinava no batente da porta.

- Sim... Foram eles! Foram todos eles! Em conluio ou separadamente! Não há outra explicação!

As horas de sono, cada vez mais exíguas, tornaram-se quase inexistentes. A batalha contra os mosquitos exigia vigília constante. Horácio chegava para trabalhar todos os dias com os olhos vermelhos de raiva e sono. Quase não se comunicava com os colegas de repartição. Usava o intervalo para cochilar e sonhar que exterminava mais mosquitos.

Cléber, percebendo o nível a que chegara o ódio e a paranoia do freguês, demitira-se do emprego na padaria e começara a vender artigos para combater mosquitos: raquetes eletrizadas, velas de citronela, repelentes naturais e industrializados, incensos milagrosos e sprays importados.

Artigos para matar mosquitos! Que dádiva.

Horácio tornou-se seu freguês número um. Toda semana fazia uma limpa na loja, que ficava estrategicamente localizada a poucos metros de sua casa. Chorava de emoção ao ver a eficiência com que as raquetes eletrizadas exterminavam vários mosquitos de uma só vez:

- Máquinas de matar formidáveis! – declarava, orgulhoso.

Cléber ganhava, no novo serviço, quase o triplo do que ganhava na padaria. A ambição de Horácio não conhecia limites. No auge de sua loucura, gastava mais da metade de seu orçamento com produtos para exterminar mosquitos. A cada semana Cléber vinha com uma novidade:

- Raquetes eletrizadas, seu Horácio!

- Já tenho, Cléber! Você mesmo me vendeu.

- Não essas. Essas são eletrizadas de outra forma.

- Como?

- Mais potência. E têm menos espaços na tela, tá vendo? Nem os miudinhos escapam.

- Bom! E o que mais?

- Esse spray importado da Groenlândia... Mata quatro vezes mais que o nacional!

- E desde quando há mosquitos na Groenlândia, Cléber?!

- Ora, Horácio... Já não os têm por causa desse spray!

- Fala sério?

- Seguramente.

- Levo cinco.

- E o novo repelente natural?

- À base de que?

- Um óleo extraído da seiva de uma árvore raríssima. Só tem na Guiana.

- Funciona?

- Alguma vez já ouviu um cidadão da Guiana reclamando de mosquitos?

- Não, mas também nunca conheci guianense algum.

- E se conhecesse certamente ele não reclamaria.

- Certo. Mas levo apenas três.

- E a tela especial de assar mosquitos que chegou ontem? Não quer ser o primeiro a levar?

- Mas o spray e a raquete já não servem para isso?

- Claro, homem! Mas enquanto a raquete dá choque e o spray envenena, essa tela queima lentamente. Dá até pra ver a agonia do mosquito se contorcendo!

- Hum... Jura?! – Horácio revirava os olhos de prazer ao imaginar a cena.

- Palavra! Não vai perder essa, vai?

- Não, levarei uma para testar.

- Perfeito.

Nair, o agente de saúde do bairro e velho amigo de Horácio, com quem mantinha longas conversas na padaria todas as manhãs, prometeu visitá-lo no final de semana para ver como poderia solucionar o problema dos mosquitos. Encontrou, batendo à porta de Horácio, o aguerrido Cléber. Estava com um incenso novo que fazia os mosquitos explodirem em pleno voo.

- Quando vários mosquitos explodem juntos parece até uma mini-queima de fogos! – caçoou o vendedor com Nair.

Horácio saiu à janela, convidou-os a entrarem e ofereceu café. Dispensou a oferta de Cléber – já não tinha mais dinheiro – e ouviu Nair com atenção:

- É só lacrar a caixa d’água e eliminar os recipientes que acumulam água no seu quintal que os mosquitos desaparecem – garantiu o experiente agente de saúde. Lacro a caixa d’água hoje e na segunda volto para eliminar os criadouros de larva no jardim. Há também um pé de romã no terreno ao lado que precisa ser podado. As romãs atraem muito esses mosquitinhos, sabe? Algumas delas acabam caindo aqui no seu quintal.

- Perfeitamente! – concordou Horácio.

Não demoraram mais que meia hora na casa de Horácio. Na segunda, conforme o prometido, Nair voltara à casa do amigo para ajudá-lo a retirar os recipientes com água, bem como limpar os restos de romã espalhados no seu quintal e podar o pé de romã ao lado. Após um mês e meio sem mosquitos em casa, Horácio começou a surtar.

- Onde estão? Onde estão? Sei que estão aí sim... Estão preparando um ataque surpresa quando eu estiver desprevenido. Onde estão?! Saiam, covardes! Saiam!

Não entrava em sua cabeça que aquelas criaturas repugnantes haviam simplesmente sumido. Já não se contentava em ter os mosquitos longe. Não! Era necessário matá-los. Era necessário dilacerá-los. Precisava exterminar todos, um por um, seja com as mãos, com as raquetes, com o spray ou com qualquer outra ferramenta mirabolante que o velho Cléber tivesse a lhe oferecer. Tamanha repugnância não podia ficar impune.

- Eu quero vê-los mortos! Todos eles, sem exceção! – salivava de ódio Horácio enquanto procurava desesperadamente pelos mosquitos. Na ausência destes, atacava uma pluma que se soltava, uma folha que caía, um restinho de poeira que se erguia no ar... Qualquer coisa que tivesse a mínima chance de ser um mosquito.

Não mais contente do que Horácio estava Cléber, que via as vendas caindo vertiginosamente. Seu grande freguês simplesmente o abandonara. Fazia quase dois meses que Horácio não dava mais as caras no estabelecimento. Situação preocupante. Foi quando se lembrou do que dissera o Nair: as romãs atraíam os mosquitos. Resolveu então comprar algumas romãs no hortifrúti para espalhar seus restos ao redor da casa de Horácio na calada da noite, sem ninguém suspeitar. Uma vez espalhadas as romãs, os mosquitos voltariam e seus lucros também.

Mas Nair visitava Horácio quase diariamente a fim de assegurar que o amigo estivesse seguindo fielmente as recomendações. E sempre que via os restos de romãs espalhados pelo pátio jogava-os no lixo, não sem antes dar uma bela bronca em Horácio, que jurava não ter conhecimento da origem das frutas.

O arranca-rabo silencioso entre Cléber e Nair se desenrolou por dias e mais dias: Nair pacientemente jogava fora todos os restos de romã que Cléber espalhara na noite anterior, mas Cléber nunca dava o braço a torcer. Pelo bem de seu negócio. Não demorou muito até que Clóvis, velho amigo de Cléber e colega de balcão na padaria, se demitisse do emprego de balconista e abrisse um hortifrúti bem ao lado da loja de Cléber. Era farto o hortifrúti de Clóvis: maçãs, laranjas, abacaxis, mamões, bananas e – especialidade da casa – romãs.

Romãs! Que dádiva.

Cléber tornou-se seu freguês mais assíduo. Quanto mais Nair limpava o terreno de Horácio, mais Cléber comprava de Clóvis. Nesse ritmo, não demorou muito até que os mosquitos voltassem a infernizar Horácio – e que este último voltasse a comprar de Cléber.

O pobre Horácio estava no auge da obsessão anti-mosquitos. Já destruíra quase metade da mobília de casa em suas caçadas. Chegou a ficar nove dias seguidos sem aparecer, mas pouco se importou quando foi demitido. Já não colocava o trabalho como prioridade na sua vida. Assegurar a integridade de seu lar contra a ameaça entomológica era muito mais importante. A perigosa combinação entre desemprego e compras cada vez mais frequentes no Cléber logo endividou Horácio. E foi nesse momento que, ao lado do hortifrúti de Clóvis abriu a filial de uma agência de empréstimos. Era daquelas que apareciam a todo o momento fazendo propaganda em programas de auditório. “Sem consulta ao SPC! Sem consulta ao SERASA! Sem consignado! Sem frescura e sem dor de cabeça: só dinheiro!”.

Dinheiro fácil! Que dádiva.

Seu gerente era Cláudio, um discreto frequentador da mesma padaria na qual Horácio tomava café e na qual Cléber e Clóvis trabalhavam antes de se tornarem empreendedores. Horácio foi seu primeiro cliente. Em menos de um mês já devia à agência mais do que nunca antes havia devido em toda a sua existência.

E assim se processavam as coisas naquele miolo da cidade. Para cada problema o seu ator, e para cada ator o seu papel. Os mosquitos atacavam Horácio, que se endividava com a agência de empréstimos para comprar do Cléber, além de pedir ajuda a Nair, que descartava os restos de romã, fazendo Cléber comprar de Clóvis.

Foi quando, numa manhã de sábado, Nair passou mal logo após tomar seu habitual café da manhã na padaria. Foram cinco dias acamado até vir a óbito, para a tristeza da esposa, dona de casa, e das duas filhas. A história nunca ficou muito bem esclarecida, apenas para alguns poucos. O quadro de Horácio, por sua vez, só piorava: tanto o financeiro como o psiquiátrico. Ele sequer chorou a morte de Nair. Pelo contrário: passara a suspeitar que o falecido amigo também estava por trás dos mosquitos. Todos aqueles conselhos de gastar menos energia matando mosquitos e mais energia limpando o quintal o deixaram com o pé atrás:

- Pois como não irei gastar minha energia exterminando esses crápulas?! São eles a culpa da minha insônia, foram eles os culpados pela minha demissão, são eles que aparecem para zunir no meu ouvido irritantemente justo quando quero dormir, e são eles que me deixam todo empolado de coceiras. Só mesmo um dementado como o Nair pra ficar passando a mão na cabeça de mosquito. Pois que o diabo o carregue!

Com Nair misteriosamente fora do caminho, Cléber lucrava como nunca, pois os mosquitos atacavam como nunca e já não gastava tanto como antes para repôr as romãs. Cada dia um novo produto mais mortal aparecia em sua venda, seduzindo o pobre Horácio em sua cruzada ensandecida contra o exército em miniatura.

Os lucros eram tão fabulosos que Cléber convidou o amigo Clóvis para comemorar. Foi uma noite inteira de muita bebida, cigarro e conversa jogada fora. Altas horas da noite, já embebedado de cerveja, vodca e licor, Cléber foi surpreendido por Clóvis, igualmente bêbado, a lhe apontar uma arma. Gelou de medo o pobre comerciante:

- Clóvis, que porra é essa? Abaixa essa arma!

- Tudo sua culpa, Cléber! Tudo sua culpa! – repetia Clóvis, balançando levemente a cabeça em sinal de reprovação.

- Culpa minha o que, estais louco? Abaixa essa arma! Você tá bêbado! Vamos... Vamos que te levo em casa.

Mas Clóvis o afastou de um só movimento, mirando com dificuldade na testa do amigo:

- Já não tenho o que dar de comer para minhas filhas. Já não consigo pagar minhas contas. Os gastos com cartão de crédito, já não consigo saldá-los. Estou quebrado, Cléber! Quebrado! E a culpa é toda sua!

Cléber ficava cada vez mais confuso. E Clóvis seguia com seu gesto de reprovação:

- Você acha que ninguém sabe, Cléber? Você acha que ninguém sabe que o malandro da padaria que envenenou Nair recebeu ordens suas? Você acha que ninguém sabe que o dinheiro torrado pelo Horácio com você pagou a bala que matou o Nair? Você acha?!

Cléber, até então amedrontado, retomou a compostura e tentou se justificar:

- Ao diabo, Clóvis! Você bem sabia que com aquele sacripanta no caminho meu negócio ia pro brejo. Se eu deixasse o sujeito vivo, em pouco tempo já não ia haver mais mosquito pra infernizar o Horácio! Você via o tanto de romãs que ele jogava no lixo a cada vez que visitava o infeliz? Até das mais bem escondidinhas o filho da mãe conseguia dar cabo.

- Não se faça de desentendido! Você quis se livrar do Nair, mas bem lá no fundo o que queria mesmo era se livrar de mim. Sem o Nair no caminho eram menos romãs no seu orçamento, mais lucro pra você e menos vendas pra mim. Acha que eu não percebi?!

- Hã?! – Cléber finalmente se tocava do que estava acontecendo ali.

- Pois agora é a minha vez de me livrar de você.

Um estrondo rasgou a noite. Assim como a morte de Nair, a de Cléber nunca foi muito bem esclarecida, exceto para alguns poucos. Clóvis tentou adquirir a loja de artigos contra mosquitos que pertencia a Cléber, mas foi em vão. As dívidas contraídas no período de fartura não o deixaram prosseguir em seu intento inicial. Desesperado, logo precisou recorrer aos empréstimos de Cláudio. Foi falar pessoalmente com ele, quase ao final do expediente, na esperança de que seus laços de amizade o fizessem conseguir um empréstimo em condições mais vantajosas. Cláudio o recebeu muito bem. Entre um café aqui e uma piada ali, a noite caiu, a agência se esvaziou e ambos se viram a sós lá dentro. Foi quando Cláudio abandonou as cortesias e abriu o jogo. Levantou-se da mesa, dirigiu-se à janela, acendeu um cigarro e emendou a seguinte ladainha, enquanto contemplava o horizonte:

- No princípio, eram os mosquitos. Ah... Os mosquitos! Os mosquitos que atrapalhavam Horácio, que pediu ajuda a Nair, que atrapalhou Cléber, que matou Nair, que ajudava Clóvis, que matou Cléber, com quem se endividava Horácio, que pedia dinheiro emprestado a Cláudio, mas que agora, com Cléber morto, já não pede mais. Pobre Cláudio! Onde encontrarei outro Horácio de quem arrancar o couro? Pobre Clóvis! Já não tem mais amigos, só dívidas.

O corpo de Clóvis só seria encontrado na noite seguinte, nos arrabaldes da cidade. O caso também nunca foi devidamente esclarecido, exceto entre alguns círculos restritos. Em pouco tempo, Cláudio adquiriu os estabelecimentos de Cléber e Clóvis. Daí em diante, era ele quem fornecia os equipamentos para matar os mosquitos, era ele quem distribuía a romã no pátio de Horácio e era ele quem fornecia os empréstimos para Horácio continuar levando a cabo sua heroica e destemida cruzada.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Da casa engraçada à USP - Meus 28 anos

Hoje, 29 de janeiro de 2016, completo 28 anos de idade.

Durante muito tempo, aniversários significaram para mim uma época para comemorar e ganhar presentes. Hoje, por outro lado, vejo o aniversário como um momento para recordar. Recordar e escrever. Principalmente tendo em vista que me encontro em uma fase da vida na qual tenho verdadeiro horror de estar em qualquer lugar ou evento no qual eu seja o centro das atenções. Daí minhas comemorações de aniversário tornarem-se cada vez mais escassas e discretas.

Neste ano de 2016, queria escrever um texto nos moldes do que escrevi em 2014, em ocasião dos meus 26 anos. Infelizmente não consegui. Aquele continua sendo um dos mais brilhantes resumos que já fiz de minha vida até o momento. Mesmo assim não me dei por vencido e resolvi escrever este outro texto, comentando experiências e reflexões que me esqueci de mencionar há dois anos atrás e reafirmando outras tantas.

Como bom historiador, sei que a história que se narra está articulada à história que se vive. A forma como o homem do Renascimento via o mundo medieval dizia muito mais sobre o próprio período renascentista do que sobre a Idade Média. De forma análoga, a leitura que os integralistas brasileiros faziam do Brasil colonial, se nos serve como ótima fonte de informação sobre o pensamento político brasileiro dos anos 1930, pouco nos diz sobre o período colonial de fato.

Também como todo historiador, sei que a história é feita de recortes, de seleções. Jogar luz sobre este ou aquele evento histórico implica deixar no escuro outras tantas passagens. É impossível abocanhar toda a história de uma só tacada. A história é como um imenso e interminável mosaico do qual o historiador sempre conseguirá captar apenas alguns dos quadros. Cabe ao historiador, portanto, a elevada responsabilidade de escolher cuidadosamente quais quadros receberão luz alta e quais ficarão em luz baixa, bem como justificar os motivos para essas escolhas.

É por isso que, apesar de concordar com a iniciativa, acho tão problemática a lei que torna obrigatório o ensino de história da África nas escolas brasileiras (Lei Nº 10.639 de 9 de janeiro de 2003). Não a lei em si, mas a forma como ela vem sendo aplicada. Em um vasto livro didático, totalmente dividido de acordo com os padrões temporais europeus (Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea), eis que surge, não mais que de repente, um capítulo anômalo, enfiado às pressas no meio dos demais apenas para cumprir a lei, intitulado “História da África”.

Em que consiste?

Em milhares de anos da história de um dos mais vastos e diversificados continentes do planeta. Resume-se, neste humilde capítulo, uma extensão temporal e cultural tão ou mais abrangente do que aquela dedicada ao continente europeu ao longo de todo o livro didático. O aluno, até então imerso em uma visão eurocêntrica da história, de repente se depara com um capítulo intitulado “História da África”. É como se de dentro do livro pulasse alguém e dissesse: “Interrompemos nossa programação para dizer a você, em conformidade com a lei 10.639, que existem alguns povos exóticos num continente estranho que merecem a sua atenção; dentro de instantes voltaremos à nossa programação normal”.

Isso mesmo: “à nossa programação normal”. A História Europeia é a normal. Reforça-se, portanto, justamente o estereótipo que a referida lei – creio eu – quer destruir: a do estranhamento em relação à África e às suas populações.

Pior do que isso. Da forma como a lei vem sendo implementada, apela-se à identificação, um dos recursos mais eficientes de exercício do poder simbólico. Sabe por que nunca veremos um capítulo de livro didático intitulado “História Europeia”? Porque não é necessário dizer que aquele capítulo se trata da história do continente europeu – isso já está implícito. Não é necessário identificar que falamos da Europa quando falamos em “Idade Média” ou em “Período Contemporâneo”, pois estamos usando como parâmetros marcos temporais europeus.

Ou seja: o simples fato de precisarmos identificar um capítulo como sendo de história africana já demonstra que a História da África permanece, para pegar uma expressão emprestada a Bourdieu, um “excluído no interior”. Ela está inserida, mas em condições diferentes (i. e. inferiores) às dos demais. Fazendo uma analogia tosca, mas ainda assim válida: já pararam para pensar por que os sites norte-americanos dispensam o .us no final e só os endereços dos demais países devem identificar a procedência (brasileiros levam o .br, os japoneses o .jp e assim por diante)? Ou já pararam para pensar por que, na Alemanha nazista, apenas os judeus – mas nunca os ditos “arianos” – precisavam andar com uma estrela costurada à roupa para se identificarem?

Mas isso é assunto para outra discussão.

Baseando-me nessas duas constatações – 1. A história que se faz é indissociável da história que se vive e 2. A história é feita de recortes e seleções – buscarei aqui ressaltar não apenas quaisquer memórias que eu tiver de minha vida, mas aquelas que, por um motivo ou outro, me tocam mais fundo até os dias de hoje.

Acredito que uma das lembranças mais antigas que tenho é uma que data dos meus três ou quatro anos de idade, na escola. A professora colocou para tocar, num disco de vinil, aquela música do Vinícius de Moraes: “Era uma casa / Muito engraçada / Não tinha teto / Não tinha nada...”. Depois, pediu para que nós desenhássemos, numa folha de papel, a casa à qual a música fazia referência. Adorava desenhar. Pensei então em começar pelo piso, mas aí lembrei que a casa não tinha chão. Então pensei em começar pelas paredes, mas me lembrei que ela também não tinha parede. Foi aí que decidi começar pelo teto, para em seguida me lembrar que ela também não tinha teto. Só então percebi que não havia jeito de desenhar a bendita casa, já que ela “não tinha teto / não tinha nada”. Acho que essa foi uma das primeiras frustrações da minha vida. Mas como eu não podia contrariar os desígnios da professora, acabei desenhando uma casa toda torta, mas com as paredes, portas e teto, em flagrante contraste com o que a música propunha.

Mais de vinte anos se passaram e até hoje ainda não consigo imaginar uma maneira de desenhar a referida casa. Há quem diga que ela se resumisse a um amontoado de telhas, portas e janelas jogadas sobre um terreno baldio. Mas um amontoado de telhas, portas e janelas por si só não constitui uma casa. O que constitui a casa é a forma como esses elementos interagem. Olhando para trás, acho curioso como uma professora pode propor isso a seus alunos. Como ela pode tocar uma música que fala de uma casa tão enigmática, tão abstrata, e ainda esperar que seus jovens alunos consigam representar essa casa por meio de um desenho.

Com o passar dos anos, fui percebendo que a postura de minha professora da pré-escola não era um caso assim tão isolado quanto eu supunha. Ela apenas expressa um traço marcante de nosso sistema educacional. Querem que representemos, com um desenho numa folha de rascunho, uma casa que não pode ser concebida nem na imaginação. De forma análoga, querem que interpretemos um poema de extrema complexidade, escrito por um autor na penúria, tuberculoso e farto de desilusões amorosas (provavelmente nem ele mesmo sabia o que estava dizendo ao escrever tais linhas); querem que expliquemos as causas da Segunda Guerra Mundial (como se isso fosse algo tão tranquilo como apontar pra que lado fica a padaria mais próxima); querem que analisemos a rivalidade Israel-Palestina. E tudo em míseras 5 ou 10 linhas, como se questões de extrema complexidade, que há anos vêm sendo trabalhadas, coubessem em espaço tão exíguo.

Meu empenho descomunal em desenhar a casa engraçada de Vinícius de Moraes não se perpetuou ao longo de minha infância na escola. Nos primeiros anos, fui um aluno relapso e desinteressado. Odiava a escola mais que tudo e não conseguia entender como havia políticos que faziam campanha na televisão propondo construir mais escolas. Quando, em uma de minhas muitas desventuras em sala de aula, a diretora veio conversar comigo para dar uns puxões de orelha, entre um esporro e outro ela me disse que havia meninos que não frequentavam a escola, que ficavam à toa na rua ou ajudando o pai na roça, e perguntou se eu queria ser como eles. Na hora senti uma inveja corrosiva desses tais meninos. “Devem ser os meninos mais felizes do mundo!”, eu pensei.

Curiosamente, muitos e muitos anos depois, quando já trabalhava de monitor no Bernoulli, uma aluna a quem atendi comentou que em Esparta devia ser melhor ser pobre do que ser da elite, já que apenas os meninos da elite se submetiam a um sistema educacional ferrenho e militarmente conduzido, ao passo que os meninos mais pobres não tinham essa obrigação. Disse então a ela que, enquanto ela estava enfurnada naquele cursinho estudando loucamente para passar em medicina, milhares de meninos da periferia estavam jogando bola na rua ou empinando pipa, e perguntei qual dos dois ela preferia ser.

A fim de tornar a escola menos insuportável, tentava achar válvulas de escape. Então eu ria, brincava fazia piadinhas... Tudo para fugir daquela realidade intragável. Na minha escola, o castigo para os alunos travessos costumava ser ficar sem recreio. No meu caso, o índice de reincidência era tão alto que minha professora resolveu simplificar e me deixou de castigo no atacado: um mês inteiro sem recreio. Um mês para um adulto passa num piscar de olhos, mas para uma criança impaciente de apenas sete anos era quase como um semestre inteiro. Era angustiante ir todos os dias para a aula sabendo que eu não poderia brincar na hora do recreio, especialmente tendo em vista que o recreio era uma das poucas coisas que ainda salvavam o ambiente escolar. Tanto que, quando um parente distante certa vez veio nos visitar e me perguntou o que eu mais gostava na escola, respondi, sem titubear: “a hora do lanche, a hora do recreio e a hora de ir embora”. E de fato, era isso mesmo. Não estava brincando e não entendi quando começaram a rir de minha resposta.

Passado um mês de minha reclusão, quando finalmente pude voltar a respirar a liberdade do recreio, minha alegria durou pouco. Na volta para a sala de aula aprontei mais alguma palhaçadinha da qual nem me recordo mais. Foi o suficiente para minha professora me presentear com mais um longo mês sem recreio. Dois meses seguidos sem recreio. Até hoje me lembro bem de como ela rabiscava o calendário com caneta hidrocor para marcar direitinho minha “pena”.

Não me lembro de ter ficado sem recreio por tanto tempo assim novamente. Minha aversão à escola, porém, não mudou muito, principalmente às aulas de matemática. Não consigo me esquecer de como eu ficava pilhado tentando resolver problemas incompreensíveis. Entre uma pausa e outra, quando eu já me dava por vencido, olhava para as fotos das pessoas nas revistas. Homens bem-sucedidos, mulheres ricas, atores, cantores, pilotos e esportistas... Será que todos passaram pelo que passei? Será que todos eles tiveram que resolver aquelas equações infernais para chegar aonde chegaram? Será que se eu resolvesse as malditas equações eu chegaria ao mesmo lugar em que eles estavam? Ou será que já era tarde demais para mim?

Acredite ou não, esses questionamentos me perseguiram até o ensino médio, quando se tornaram ainda mais provocativos.

Outra lembrança igualmente curiosa da minha infância foi de uma colônia de férias à qual fui com apenas oito anos de idade. A colônia foi sediada em uma fazenda aqui perto de Lavras, não me lembro exatamente onde. Foi amplamente divulgada em todas as escolas da cidade, de modo que reuniu uma meninada vasta, dos sete aos doze anos de idade.

Não consigo me esquecer de uma cena que se passou no primeiro dia, logo que chegamos à fazenda. Uma horda de uns trinta ou quarenta meninos e meninas saiu do ônibus com um ímpeto fervoroso, correndo pelo pátio que ficava logo à frente de uma velha casa na qual iríamos dormir. Uns brincavam, outros brigavam, outros conversavam alegremente e outros faziam piadas. Eu, porém, seja por timidez, seja por minha vasta experiência de dois meses seguidos sem recreio, contentei-me em ficar sentado em um banco de madeira observando tudo aquilo.

Passado um tempo, um dos monitores da colônia sentou ao meu lado. Era um jovem de seus dezoito ou dezenove anos de idade, provavelmente ávido por fazer um dinheiro extra pra financiar a viagem de janeiro porque não tinha passado no vestibular e ficou de mal com a família. Perguntou-me por que eu estava tão quieto ali no canto, sem interagir com ninguém. Não me recordo bem de minha resposta, mas lembro muito bem da tréplica dele: “Isso aqui é uma colônia de férias, você tem que se divertir!”. Disse mais uma ou outra coisa que nem me lembro mais. Quando percebeu que eu não iria mudar, levantou-se e foi embora.

Não consigo pensar nessa cena sem esboçar pelo menos uma risadinha interna, mas na época não achei a menor graça. Aliás, acho que esse é um dos traços mais marcantes do amadurecimento: rir de coisas que outrora nos deixaram confusos, nervosos ou angustiados. E penso que quanto mais cedo rimos dessas situações, mais rápido estamos amadurecendo.

A verdade é que eu me senti envergonhado e culpado com a frase do jovem monitor. Todo mundo se divertindo e eu lá, parado, contemplativo, imóvel. Todo mundo se divertindo, só eu que não. Senti como se estivesse sendo um fardo, um inconveniente. Ou, melhor ainda, como se estivesse usando um produto da maneira errada. “Isso aqui é uma colônia de férias, você tem que se divertir!” soava quase como “Isso aqui é um cacto, você tem que jogar pouca água!”, “Isso aqui é um carro manual, você tem que ficar atento às marchas!” ou “Isso aqui é uma panela de teflon, você não pode raspar o garfo!”.

A colônia servia para se divertir e eu não estava me divertindo. Que lástima!

Da mesma forma que a casa engraçada, esse episódio ainda mexe bastante comigo até os dias de hoje. Quantas vezes não vemos uma pessoa e, do alto de nossa arrogância, julgamo-la doente, deprimida ou problemática, ignorando que nós mesmos podemos estar muito mais necessitados de ajuda do que ela? Quantas vezes, em meio a uma festa onde todo mundo canta e dança, olhamos para aquela pessoa sentada e julgamo-la antissocial. Quantas vezes descobrimos uma pessoa que não bebe, não fuma e não usa drogas, e julgamos que ela tem que começar a beber, fumar ou usar drogas para se sentir bem. Quantas vezes vemos uma pessoa com um comportamento peculiar, porém inofensivo, ou com preocupações que nos são incompreensíveis e julgamos que ela precisa de um psicólogo. Quantas vezes vemos uma lésbica e julgamos que ela só é assim porque ainda não encontrou o homem certo (o mesmo podendo ser dito sobre os gays). E tudo por quê? Apenas porque nenhuma dessas pessoas corresponde a nossas expectativas. Porque nenhuma delas se diverte da forma como nós nos divertimos. Porque se eu só sei me divertir bebendo e fumando então fulano deve ser extremamente infeliz, já que não bebe nem fuma. Porque se eu só consigo sentir prazer com pessoas do sexo oposto, então gays e lésbicas devem ter uma vida sexual miserável, já que não transam com o sexo oposto.

Pobres de todos eles.

É costume, hoje, dizer que vivemos em uma sociedade doente. Eu acrescentaria ainda: vivemos numa sociedade doente na qual todos acreditam ser médicos. Ou melhor: vivemos numa sociedade na qual todos irão fazer o possível e o impossível para te convencer de que você está doente e de que eles detêm a cura.

Até o momento em que o jovem monitor sentou-se ao meu lado eu estava me sentindo perfeitamente bem, fazendo aquilo que eu fazia melhor: sentar e observar. Depois daquele breve diálogo, senti-me perturbado. E o que é pior: sem necessidade alguma. Não culpo o rapaz: estava apenas fazendo seu trabalho. Mas cenas desse tipo se tornariam recorrentes na minha vida. Sempre que digo que não bebo acabo travando o mesmo diálogo, independente da pessoa com quem estiver tratando. Daria até pra fazer um pequeno roteiro: “Você não bebe? Sério? Nada? Tá tomando remédio? É por questões religiosas? Nunca Provou? Ah, mas você tem que ir bebendo aos poucos que com o tempo você acostuma. Precisa começar com umas bebidas de leve e depois vai evoluindo. No começo eu também não gostava”. Simplesmente não cabe na cabeça de certas pessoas que não gostar de álcool não é nem nunca foi nenhuma patologia que precise ser curada em doses homeopáticas. Que não gostar de álcool é tão comum como não gostar de bife de fígado ou de dobradinha (que eu, aliás, amo!).

Mas se vamos falar de memórias que ainda são atuais, por que não falar do PT?

Tendo nascido em 1988, passei a parte mais significativa da infância nos anos 1990. Já em fins da década, presenciei com assombro e desgosto a ascensão do PT. Não entendia muito de política, mas sabia que detestava o PT. Achava a retórica de Lula e dos militantes do partido bombástica e soberba. Sempre tive especial aversão a qualquer tipo de pessoa que se apresentasse como portador da verdade absoluta e que se achasse superior aos demais, e era exatamente assim que meus olhos de menino enxergavam os petistas. Era tudo muito gritado, muito fanático, muito espalhafatoso para mim.

Aliás, guardo até hoje comigo uma carta que escrevi na escola simulando ser um brasileiro vivendo num Brasil governado pelo PT no ainda longínquo ano de 2025. Redigi-a em 2000, quando o país ainda vivia sob o segundo mandato de FHC. O autor fictício da carta relatava coisas horrendas, como “a situação econômica aqui no Brasil está à beira da estaca zero”, “somos uma ditadura”, “estamos pior que Cuba”, “acabamos de sair de uma guerra com o Equador” e “Estamos sob uma perfeita ditadura e somos rondados por generais militares”.

Ditadura petista misturada com ditadura militar! Só mesmo na imaginação fértil de um garoto de doze anos para os mais horrendos temores da classe média brasileira andarem de mãos dadas com os sonhos dessa mesma classe média. Às vezes penso em publicar essa carta na íntegra em meu blog, mas sempre que começo a lê-la caio em risadas e dou pra trás de tanta vergonha que sinto. Aliás, na carta não há qualquer referência explícita ao PT. A professora pediu para tirar esse trecho porque o texto seria lido em público e poderia gerar insatisfação em simpatizantes do PT que pudessem estar na plateia. Ainda bem que isso se deu em 2000, pois se fosse hoje seria chamado de doutrinação marxista. Aliás, ainda bem que fui uma criança naquela época e não agora. Não é nem um pouco difícil imaginar essa minha cartinha da sexta série fazendo coro com a verborragia antipetista Made in Facebook. Seja lá como for, eu sim posso bater a mão no peito e dizer que já era antipetista way before it was cool.

Apesar dessa peripécia literária, nunca fui um ardoroso anticomunista em momento algum da minha juventude. Por vezes cheguei mesmo a considerar o comunismo algo salutar e necessário. E isso não porque conhecesse a fundo o ideário comunista, mas porque tendia a enxergar o mundo como uma grande sala de aula na qual os países capitalistas eram os alunos descolados e populares (pelos quais nutria repulsa) e os países comunistas eram os alunos rejeitados (pelos quais sentia mais afeição, apesar de nunca ter sido um no sentido estrito do termo).

Mas nem só de dilemas bizarros foi feita minha infância. Ela também foi marcada por horas a fio na frente da televisão assistindo à finada TV Manchete. Ficava de olhos vidrados na programação matinal porque adorava os seriados japoneses de Live Action, mais conhecidos como Tokusatsus. Jaspion, Jiraya, Jiban, Changeman, Flashman, Kamen Rider, Cybercops, Winspector e Solbrain eram alguns dos principais seriados de vinte ou trinta minutos que exibiam aventuras de super-heróis japoneses defendendo a Terra de forças malignas.

Atribuo a minha fiel audiência à emissora dos irmãos Bloch o fato de desde cedo nutrir profunda admiração pela cultura japonesa e, posteriormente, pela cultura oriental como um todo. Por muito tempo tive um respeito egípcio por chineses, coreanos e japoneses, enxergando-os como seres superiores. Quando passava férias em São Paulo observava-os admirado, como se esperasse que a qualquer momento fossem fazer ou dizer algo surpreendente, tal como nos seriados aos quais eu assistia. Passava horas em frente ao espelho puxando meus olhos com os dedos na ingênua esperança de me parecer com meus heróis. Lembro-me até de, certa vez, ter pedido a minha mãe para fazer uma cirurgia nos olhos para que ficassem esticados, iguais aos dos orientais.

Tamanha foi minha surpresa quando, visitando o Oriente pela primeira vez, durante meu intercâmbio na Malásia entre 2004 e 2005, me dei conta de que a recíproca era verdadeira, isto é: que também os orientais tomavam os ocidentais por superiores. Não por acaso, notava que alguns deles tinham um respeito excessivo por mim. Alguns temiam se aproximar e conversar e outros tantos tinham uma expectativa surreal em relação a mim, tão grande quanto aquela que eu nutria pelos japoneses de São Paulo.

Minhas aventuras e desventuras na Malásia estão narradas nos posts com a tag “Páginas de Combate”, bem como no meu outro texto de aniversário (“Do Consenso ao Crepúsculo – meus 26 anos – Parte II”). Limito-me aqui a expor apenas um episódio que acredito não ter comentado em outras partes e que é bastante ilustrativo desse lugar que os ocidentais ocupam no imaginário malásio.

É muito comum, entre estudantes das escolas da Malásia, torneios de debates, tanto em malaio como em inglês. Em uma sala de aula, duas mesas são colocadas frente a frente com três debatedores de cada escola em cada um dos lados. Na hora, sorteia-se um tema com uma pergunta acerca daquele tema. Sorteia-se também a posição que cada grupo deve defender: contrário ou favorável. Cabe aos alunos, ao longo de extensas exposições, defender os pontos de vista de seus grupos e rebater os argumentos adversários. E cabe a um grupo de professores avaliadores dar o parecer sobre quem venceu.

Pois fui convidado para assistir a uma dessas competições em uma escola de uma cidade não muito longe de Klang, onde eu morei. Na hora de as equipes participantes se registrarem, um de meus colegas me pediu para que os acompanhasse para fazer o registro. Respondi que isso não era necessário, já que era apenas mero espectador, ao que ele prontamente respondeu: “Eu sei, mas você precisa vir conosco para fazer o registro de nossa equipe, pois quando as outras equipes te virem acharão que tem um ocidental na nossa turma e se sentirão intimidadas”.

Atendi ao pedido sorridente, sem saber direito lidar com aquilo porque nunca havia experimentado situação semelhante – e espero nunca mais experimentar. Como já era de se esperar, a estratégia não funcionou e a equipe de minha escola perdeu.

Foi só então que percebi que a estratégia de puxar os olhos era completamente inútil e até prejudicial. Quem gosta do Oriente e de orientais deve ser o mais ocidental possível a fim de conquistar sua admiração. Lembro-me da cena de um filme bem antigo (“Minha doce gueixa” ou “Minha querida gueixa”) no qual um diretor de cinema ou de teatro norte-americano viaja para o Japão a fim de procurar por uma gueixa para sua mais nova produção. Foram-lhe apresentadas algumas japonesas de inglês impecável que sabiam cantar, dançar, improvisar e atuar, tudo no melhor estilo rockabilly norte-americano dos anos 1950. Mulheres modernas, ocidentalizadas e que orgulhavam-se de sê-lo. O diretor agradeceu a presença delas, mas depois que se foram mostrou-se profundamente decepcionado. Ele não queria japonesas de estilo americano, queria japonesas tradicionais, queria uma gueixa que se comportasse exatamente como as gueixas de séculos atrás.

Parece ser esse um dos grandes dilemas do mundo globalizado: orientais querendo ser ocidentais para se sentirem integrados aos valores com os quais são sistematicamente bombardeados pela mídia (cremes para embranquecimento da pele são um sucesso de vendas na Malásia, por exemplo); por outro, ocidentais embriagados de cosmopolitismo procurando orientais que ainda preservem as raízes de sua cultura. É um jogo de soma zero: os orientais não compreendem por que cargas d’água homens brancos querem saber de ritos milenares ancestrais que nem eles mesmos conhecem direito, e os ocidentais se estranham ao verem orientais imitando o American Way of Life. No final das contas, todos se frustram e ninguém se entende. Não se trata mais, como nos velhos tempos, de minha cultura contra sua cultura. Trata-se de eu tentando me inserir no seu universo cultural e você tentando se inserir no meu universo cultural quando, na verdade, a minha expectativa é que você fosse fiel às suas tradições e vice-versa.

Demorei a entender esses novos conflitos do mundo globalizado. Se os tivesse compreendido com antecedência, penso que minha estadia na Malásia teria sido muito menos conflituosa. Enquanto meus colegas me bombardeavam com perguntas sobre Ronaldo no Real Madri, o carnaval carioca e o apetite sexual das mulheres brasileiras, eu lhes devolvia perguntas sobre peregrinação em Meca, deuses hindus e literatura chinesa.

Meu intercâmbio na Malásia foi, sem sombra de dúvida, o período de minha via no qual mais amadureci. Após um ano em terras longínquas, foi a vez de voltar ao Brasil. Chega de utopias orientais, de visitar templos budistas, rezar em templos hindus e admirar mesquitas. Era hora de encarar a realidade; era hora de encarar o vestibular. Após duas escolhas malsucedidas de cursos – dois períodos de Relações Internacionais intercalados por um período de Ciências Sociais no meio – finalmente me encontrei no curso de História. E aqui novamente apareceu – e continua aparecendo às pencas – toda uma nova horda de supostos médicos tentando me convencer de que estou doente. De que não tenho nada a ganhar num curso repleto de gays, lésbicas, maconheiros, doutrinadores comunistas e ciclistas. Não se trata, é claro, de pessoas que dizem isso explicitamente, com todas as palavras. Não. Ninguém mais se prestaria a esse ridículo nos dias de hoje. Trata-se sim de todo um arsenal de chavões, valores e ideias difundidos pelos mais variados meios (TV, internet, memes, redes sociais, conversas pessoais e via Whatsapp, etc.) que dia após dia tentam, numa insistência religiosa, convencer-me de que eu não devo cursar História, depender do transporte público e usar roupas sóbrias, mas sim cursar Engenharia, me matar para comprar um bom carro e usar roupas de marca, tudo a fim de perpetuar a espécie (“pegar mulher”, no jargão popular).

Não. Todo esse aparato belicoso nunca me abalou, ao contrário do que podem pensar. Se os exponho aqui nesse texto não é para me queixar deles. Não escrevo para lamentar. Se os exponho aqui é unicamente para medir o seu ridículo. Para mostrar a mim mesmo, de forma clara, que não é coisa digna de ser levada a sério.

Entrei na universidade pela primeira vez em 2007, sedento por participar de movimento estudantil, manifestações, eleições de DA e DCE. Foram precisos poucos meses na universidade para perceber que aquela definitivamente não era minha praia. Passar em salas dando recados, debates de chapas, distribuição de panfletos para campanha e organização de protestos de rua eram atividades que me enfastiavam e me desgastavam facilmente. Apesar de ter cursado no mínimo um período em três cursos de humanidades (dois deles na UFMG), nunca tive sequer um professor que pudesse se encaixar no tipo ideal de “doutrinador comunista do MEC”. Aliás, lembro-me apenas de dois professores que exerceram, de forma sistemática, em suas aulas, aquilo que os escandalosos de plantão atribuem aos professores comunistas. Um deles foi um professor de Introdução à Economia, no primeiro período do curso de Ciências Sociais, extremamente cruel na hora de atribuir notas a qualquer aluno que não se mostrasse ardoroso defensor do liberalismo econômico nas provas, além de nos entupir até a testa com leituras de autores alinhados com essa posição. O outro foi um professor do curso de História que subtraía generosos pontos de qualquer aluno que, de alguma forma, falasse mal da monarquia brasileira em seus trabalhos, bem como das figuras proeminentes do Império. Essa foi, portanto, a única doutrinação que tive no ensino superior: um neoliberal e um monarquista.

Foi preciso chegar até o mestrado na USP para finalmente encontrar um professor que exercesse a tal doutrinação comunista tão alardeada nos dias de hoje. E foi com muita satisfação que lá cheguei, não só pela satisfação de estudar na USP e dar continuidade aos meus estudos em História, mas também pelo prazer mudar de ares. Após sete anos (com duas interrupções de um semestre cada) vivendo na provinciana Belo Horizonte, mudar-me para a cosmopolita São Paulo teve um efeito libertador. Parece até que me reencontrei com meus velhos heróis de infância: os poderosos orientais. Eles estão por toda a parte! E por mais que há muito tempo eu já não os cultue com a devoção de antes, é sempre bastante nostálgico passear por uma cidade na qual passei algumas boas férias durante a minha infância.

Hoje, no limiar dos 28 anos de idade, confesso que não tenho muitas ambições quanto as que eu tinha na infância. E isso não por ter desanimado da vida ou não confiar em meu potencial, mas simplesmente porque percebi que preciso de muito menos para ser feliz. Não quero mais ter olhos puxados, apesar de ainda nutrir imensa simpatia pelo Extremo Oriente e principalmente pelas pessoas de lá. Não é à toa que, em meu segundo intercâmbio, na Alemanha (2011-2012), fiz mais amizades com coreana(o)s do que com alemães. Também não quero mais viajar o mundo e conhecer países porque descobri que detesto aeroportos e morro de medo de viajar de avião.

Meu sonho maior, neste momento, é tornar-me um professor de História em alguma universidade pública de qualquer lugar do país. Nada mais que isso. Alguns podem até achar esse sonho demasiadamente pretensioso. Quantas vezes ao longo da minha trajetória ouvi, vindo das mais diversas pessoas, que ser professor universitário é para poucos, que isso é muito difícil, que é um meio muito hostil e que apenas poucos conseguem. Nunca entendi se as pessoas emitiam esses alertas para desanimar os futuros candidatos ou apenas pelo prazer de serem inconvenientes. A verdade é que eles nunca me abalaram, e nem há motivos para tal. Há várias universidades no Brasil que necessitam do trabalho de professores de História. Então, por que não eu? Por que passar a vida me conformando em fazer aquilo que não quero enquanto vejo pessoas iguais a mim, com a mesma formação, as mesmas oportunidades e as mesmas capacidades que eu, sendo aprovadas em concursos nos quais tenho plenas capacidades de passar? É preciso uma mentalidade muito tacanha para pensar de outra forma.

É isso o que quero pra mim nesse momento. Não quero ser famoso. Aliás, já fico assombrado só de pensar na possibilidade de ser famoso, seja por maus ou por bons motivos. Como já disse: tenho pânico de ser o centro das atenções. A única fama à qual eu poderia almejar hoje é uma fama póstuma. Aliás, creio que seja esse o motivo principal que me leva a escrever: a possibilidade de me perpetuar de alguma forma, uma vez que não quero ter filhos e que o futuro não parece muito promissor para árvores. Escrevo para que, daqui a uns cem ou duzentos anos, alguém – de preferência um historiador despreocupado – possa acessar meus textos, seja lá de que maneira for, e pensar: “Olha! Então é assim que vivia um brasileiro no começo do século XXI... Eram essas as aflições e angústias de um homem do começo do século... Era assim que se escrevia no ano de 2016...”.

Se um dia isso acontecer, nem que seja no formato de uma simples nota de rodapé, onde quer que eu me encontre, me sentirei mais célebre do que o mais cultuado jogador de futebol da história das copas.