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segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A Bíblia e a pá: notas sobre o infanticídio amazônico

É cada vez mais estarrecedora a total falta de capacidade de tomar um caminho do meio para a qual a maioria das pessoas parece tender atualmente. Exemplo disso foi a polêmica criada em torno da recente - pelo menos para mim - divulgação de um vídeo na internet que mostrava um ritual indígena em uma tribo amazônica ainda pouco aculturada. O exótico ritual consiste em cavar um buraco de cerca de um metro de profundidade, ali mesmo, nas terras próximas à aldeia, e nesse buraco enterrar uma criança de seus sete ou oito anos de idade, viva, chorando de desespero. O significado do ritual eu ignoro. O desfecho do vídeo também, uma vez que não tive sangue frio o suficiente para assisti-lo até o final - alguns dizem que a criança se salva; duvido, mas tomara...E como se não bastassem os recentes eventos que se operaram na demarcação de terras indígenas na reserva Raposa/Serra do Sol, além da chocante cena veiculada há alguns meses atrás na qual um engenheiro era brutalmente atacado por indígenas com facões, temos mais uma vez o primeiro habitante do Brasil como o foco das atenções midiáticas.
Arrisco-me a dizer que nenhuma outra figura foi tão controvertidamente retratada pelos meios de comunicação nacionais como a figura do índio: de um estúpido incapaz nos árcades a heróis nacional exaltado pelos românticos, o índio assume uma postura cômica com os modernistas para depois fazer as vezes de símbolo vivo do atraso brasileiro na época da TV a cores: aquele homenzinho coitado, que não possui livre arbítrio e que depende de nós para se libertar do "jugo e da maldição da ignorância e do atraso".
Tão logo as minorias étnicas em nosso país passaram a ser valorizadas, com cotas para negros nas universidades e a necessidade de se repensar nossa história suscitada por ocasião do nosso "aniversário" de 500 anos, ser índio deixou de ser motivo de deboche e de piada para ocupar um espaço de singular destaque, o qual não se via desde José de Alencar e Gonçalves Dias.
E é exatamente nesse ressurgimento do orgulho índio; nesse momento tão propício ao desenvolvimento de novos mitos acerca de um possível bom selvagem do século XXI, que nos deparamos com as notícias de práticas de infanticídio vindas da tribo suruwaha, para a qual o enterro de crianças vivas constitui-se como parte de sua cultura. Momento mais oportuno para denunciar o sacrifício de crianças indígenas não poderia haver: ao mesmo tempo que acompanhamos a novela Raposa/Serra do Sol, celebramos a maioridade do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Mais chocante do que as cenas do ritual foi a forma como a opinião pública reagiu à elas, em dois grandes blocos bastante homogêneos e extremados, aos quais podemos chamar, de maneira simplificada porém acertada, de bloco das pás, por um lado, e bloco das Bíblias, por outro. Analisemos, pois, o bloco das Bíblias.
Os bíblicos têm uma visão bastante crítica do ritual infanticida suruwaha, bem como de todos os outros problemas reltivos à questão indígena, cuja solução é eficiente, fácil e simples, tão simples que pode ser encontrada na maioria dos lares brasileiros ou mesmo no criado mudo de qualquer indivíduo: Bíblias. Querem esses indivíduos acreditar que, um povo que não foi socializado sequer com as demais tribos indígenas que os rodeiam, irá aceitar e compreender toda uma série de conhecimentos, leis e princípios originários de uma realidade, um contexto e uma região totalmente diferentes dos seus. Em outras palavras: esperam que uma tribo dos confins da Amazônia baseie sua fé e sua crença em epopéias que narram a saga do povo de Moisés, Abraão e Davi errando pelos desertos da Palestina e fugindo do faraó do Egito.
As atrocidades cometidas contra crianças são um poderoso trunfo para os partidários da tese bíblica, levando-os a concluir que a solução para o problema dos rituais malignos dos índios é botar um fim à toda cultura indígena e fazê-los aceitar o cristianismo. Talvez eles nunca tenham parado para pensar que a solução encontrada para por fim aos tribunais da Santa Inquisição da Idade Média passou muito longe de abolir a religião católica...
Articulados com o bloco bíblico estão seres não tão imbuídos de um espírito jesuítico mas igualmente brilhantes em seus argumentos: são os civilizados exemplares. Civilizados exemplares são todos aqueles que sentem verdadeiro pânico de antropólgos, sociólgos, etnólogos e tantos outros -ólogos que se prestam a estudar e compreender outras culturas mais a fundo. Para eles, a civilização Ocidental, apesar de toda sua magnificência, supremacia e inquestionável autoridade, carrega um pesado fardo: o árduo dever de moldar todas as outras sociedade e civilizações à sua imagem e semelhança.
Os civilizados exemplares se indignam ao ver rituais macabros de crianças sendo enterradas vivas, ridicularizam os defensores dos direitos indígenas, questionando-os se eles deixariam que fosse feito aquilo com seus filhos, e defendem uma aculturação rápida e imediata dos índios a fim de dar um basta a práticas horrendas como essa. O padrão de sociedade pelo qual todos deveriam se guiar é o padrão Ocidental, afinal de contas, nós não enterramos nossas crianças em nossos jardins, enterramos? Nós deixamos nossas crianças morrendo de fome nas sarjetas; nos acostumamos a ver meninos que nem sequer largaram a chupeta errando pelos sinais de trânsito todos os dias apenas para continuarem vivos, mesmo sabendo o quão miserável essa vida é; vivemos nossas vidas e nossos prazeres no conforto de nossas residências como se todo o mundo lá fora fosse pacífico como a nossa sala de estar, enquanto o crime ceifa vidas e ganha cifras cadas vez mais assustadoras nos jornais; reelegemos, ano após ano, aqueles mesmos políticos que desviam verbas da educação, saúde e moradia para seus próprios bolsos em detrimento de milhares de crianças e jovens; somos coniventes com um sistema educacional que exclui milhares de jovens do acesso à educação de qualidade; aceitamos de cabeça baixa a lei das selvas que rege o tal mercado de trabalho, que premia um número cada vez menor de pessoas em detrimento de um número cada vez maior de excluídos - nós até achamos essas leis bastante sedutoras, temos um certo fetiche por elas, afinal, quem nunca presenciou a hilária cena de um jovem engravatado de maleta na mão, ansioso para sua primeira entrevista, preocupado em parecer atraente ao mercado de trabalho? Vivemos todos sob um sistema que nos mastiga e nos tritura com uma força cada vez maior, e no entanto seguimos lutando mais para não sermos engolidos do que do que para tentar mudá-lo. Mas enterrar crianças vivas? Isso jamais!
O pé-de-guerra que se criou com essa situação não estaria consolidado se não contasse com a presença de um outro bloco, diametralmente oposto mas igualmente excêntrico: o bloco das pás. Qual a diferença para o bloco da Bíblia? Está na cara: para estes a solução é distribuir Bíblias, para aqueles, é distribuir pás, ou seja, deixar que os índios continuem cavando buracos e enterrando suas crianças vivas dentro deles, afinal, essa é a cultura indígena e ela deve ser preservada.
O bloco das pás é formado por toda sorte de pseudo-intelectualóides aplicados nos saberes antropológicos, etnológicos e sociológicos. É toda aquela gente revoltada com a imposição de valores à força, que acha que a diversidade cultural é, no final das contas, tudo o que importa de verdade. Gente dessa estirpe é contra a imposição de modos de vida, mas impõe que a diversidade étnico-cultural deve reinar acima de tudo - até mesmo do corpo de uma criança.
Fazendo coro com essa elite intelectual estão os defensores dos direitos indígenas, ávidos também por preservar suas práticas e seus rituais, por mais estranhos que eles possam parecer aos olhos do homem branco. O mais interessante é notar que esses mesmos indigenistas que defendem o infanticídio como prática cultural cuspiram marimbondos quando o índio pataxó Galdino dos Santos teve seu corpo carbonizado em um ato estúpido há onze anos atrás. Ao que não posso deixar de me questionar: e se Galdino tivesse sido vítima de um ritual de magia negra? Por que condenar a sua morte se, afinal de contas, esta se daria obedecendo à uma prática cultural? E vou mais longe: os jovens que queimaram Galdino não fizeram, afinal de contas, uma prática cultural? Não é da nossa cultura, da cultura de nossa juventude, praticar atos que impressionem nossos amigos, fazer programas exóticos, divertir-se brincando com o perigo? Por que então nossa cultura de queimar corpos é condenável e a cultura suruwaha de enterrar corpos não?
É claro, Galdino era um índio, não tinha nada a ver com nossa sociedade e suas práticas e por isso não merecia ser vítima de uma brutalidade dessas. Perfeito. E o indiozinho que foi enterrado aos prantos na selva amazônica? Ele também não tem o direito de escolher se quer ou não fazer parte daquela cultura? Nossos cientistas sociais ficam perplexos ao ver filhos que são forçados pelos pais a ir à Igreja todos os domingos; defendem que a criança deve ter o direito de escolher a religião que quer seguir e a maneira como quer segui-la, mas não admitem que a criança suruwaha também tenha o direito de não querer ser enterrada viva. O pai que faz o filho ir à Igreja contra a vontade dele é um ditador fascista; o pai que enterra uma criança viva na selva amazônica contra a vontade dela está só mantendo uma tradição.
Se tivéssemos de aceitar tudo aquilo que passa sob nossos olhos apenas sob o pretexto de que é algo cultural, até hoje a Europa estaria ardendo sob as fogueiras da Inquisição. Pois não era em nome de Deus todo poderoso que nossos antepassados mandavam bruxas para morrer? Não era isso parte da tradição católica?
Enfim, vendo os dois lados do confronto e não achando qualquer sentido em nenhuma das duas defesas, a única conclusão a que cheguei foi que nenhum dos dois lados chegará a uma conclusão sensata sobre o assunto. Uma conclusão que permita colocar um fim à morte de crianças inocentes sem que para isso se coloque fim à uma cultura. Só existe cultura porque existe vida; logo, a vida vem antes da cultura, e querer sacrificar aquela em nome desta deve ser algo condenável em qualquer credo ou não-credo do mundo. Os pró-indígenas sabem que há crianças índias morrendo de fome e doenças em diversas aldeias do país; os missionários evangélicos sabem que Abraão aceitou sacrificar seu filho a Deus, tal como os suruwaha - embora as pobres crianças nem sempre tenham a mesma sorte de Isaac. Enquanto o homem for incapaz de enxergar um caminho que não seja pura e simplesmente a Bíblia ou a pá, o mundo continuará caminhando torto, em guinadas e arranques, hora pra esquerda, hora pra direita, sem nunca seguir em frente.