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segunda-feira, 23 de junho de 2008

Tipos ideais: o estudante de relações internacionais (vulgo internacionalóide)

Ultimamente tenho ouvido o rádio com muita freqüência, e quase sempre me deparo com aqueles programas do fundo do baú, que resgatam músicas antigas daquelas que já nos cansamos de ouvir mas nem nos lembramos mais. A impressão que isso me dá é que as pessoas já não conseguem mais inventar, e acham na reciclagem musical, artística e cultural a única maneira de permanecer fazendo sucesso. Pois bem, já que os cantores não conseguem mais inovar, nós do hiperativo-categórico.blogspot também decidimos não inovar nas postagens, de modo que estamos aqui de volta - após um longo período estagnado - com um tema já quase exaurido: o dos tipos ideais! O texto a seguir apresenta o tipo ideal do estudante de relações internacionais. Inicialmente, meu objetivo era publicá-lo no jornalzinho do CAIK - o centro acadêmico de relações internacionais da PUC-Minas - mesmo sabendo que seus editores dificilmente o aceitariam. Mas vieram as tormentas, as provas e trabalhos de faculdade e de repente não pude mais me dar ao luxo de continuar o artigo, que ficou um bom tempo pela metade. Conclui-o hoje. Espero que vocês aproveitem - mais do que eu venho aproveitando as músicas ressuscitadas pelas rádios.

O grande sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) introduziu, no seu campo de estudos, a noção de "tipos ideais". De acordo com Weber, o conhecimento, longe de ser uma representação fiel da realidade, era apenas uma mera aproximação, o que implica que um determinado objeto de estudo é analisado de acordo com sua maior ou menor aproximação em relação a um tipo ideal correspondente.
Weber trabalhou sobretudo com o tipo ideal do protestante, que, anos antes, era uma figura essencial nos processos históricos. Eu - humilde que sou - me restringirei aqui a elaborar um tipo ideal historicamente menos importante, mas igualmente em ascensão: o tipo ideal do estudante de relações internacionais (RI).
O estudante ideal de RI é, não raro, aquele sujeito que passou um ano no exterior de intercâmbio - de preferência em um país rico, como Estados Unidos, Austrália ou Canadá - e, maravilhado com os encantos que observou lá fora, retornou ao Brasil decidido a fazer relações internacionais numa chula tentativa de imortalizar seu intercâmbio e reviver as suas glórias. O estudante ideal de RI tem um quê de Napoleão III, uma vontade louca de reavivar o passado, um sentimento inexplicável de retornar ao que já morreu. E, tal como Napoleão III, acaba incorrendo em sérias mancadas.
Durante seu tempo de intercâmbio, o típico estudante de RI absorveu cada metro cúbico da cultura e do modo de ser do país onde ele viveu; morreu de saudades do Brasil - saudades confessas - mas, logo que retornou às suas origens, se embuíu de uma "psicose retornista" (o termo é nosso) e, seja por uma vontade de acertar contas com o passado, seja por uma necessidade de esbanjar seu "status internacional", ele recusou a desgarrar-se da sua quimera internacionalista: agora ele só come no McDonalds, só assiste à CNN ou à BBC, só acompanha o campeonato inglês de futebol, só lê as notícias do mundo. Em outras palavras: seu corpo retorna, mas sua mente permanece vagando numa dimensão espaço-tempo paralela à realidade. Não tem mais jeito: nosso estudante vive em um eterno intercâmbio.
A entrada no curso de relações internacionais é o último passo para a concretização desse tipo ideal. Não bastasse sua alma internacionalóide, ele ainda aprende muito mais: aprende sobre a integração econômica européia, a balança de poder na África Oriental, a política externa dos Estados Unidos, as disputas fronteiriças nos Bálcãs, as relações bilaterais China-Índia, o crescimento econômico japonês, a escalada dos conflitos no Curdistão, a guerrilha tâmil no Sri Lanka... E agora - pergunto eu, e também há de se perguntar nosso estudante ideal - o que faremos com tudo isso? Qual sera a utilidade de um brasileiro que conhece o mundo como a palma de sua mão, mas é um estranho no próprio solo em que está pisando? Onde quer chegar esse sujeito, que enuncia sem hesitar todos os passos da guerra do Iraque, mas é incapaz de saber qual a conjuntura política de seu estado? O que esperar de um ser que aspira a analista internacional mas não tem a mínima noção de qual foi a última decisão que o governo federal tomou em relação à educação?
O tipo ideal do estudante de RI carrega um discurso louvável de querer representar o Brasil no mundo, mas nem ao menos sabe o que esse Brasil é. Em suma: ele quer representar algo que ele ignora, assegurar os interesses de um ente desconhecido. Sabe de tudo o que se passa pela vizinhança, mas não sabe nem se orientar entre os cômodos de sua residência. Apesar disso tudo, não nos enganemos: nem só de lamentos é feito o tipo ideal do internacionalóide. Ele também nos diverte!
Fazer um intercâmbio e entrar no curso de RI equivale a nunca mais pronunciar um palavrão em português. Por algum motivo, falar palavras chulas em inglês confere ao nosso estudante um certo status, fazendo-o sentir-se um nobre em meio aos párias. Assim, entre shits, damn yous, darn its e fuck yous, o estudante ideal de RI vai ganhando confiança e se sentindo cada vez mais prepotente - os seus xingamentos ganham um tom muito mais humilhante se pronunciados de forma anglófona do que na língua pátria que, de fato, só continua sendo utilizada por nosso herói por mera conveniência social. Se ele pudesse falaria inglês sempre, não por achar mais simples ou mais prático mas, como já mencionado acima, porque dá status. O típico estudante de RI não perde a pompa, e por isso nunca deixa passar a oportunidade de mostrar aos outros sua mente globalizada. E para aqueles que pensam que um ano vivendo no exterior foi o suficiente para satisfazer a fome internacionalóide de nosso estudante ideal, aqui vai a contundente prova em contrário.
Tão logo retorna de seu intercâmbio, o internacionalóide não sossega o rabo e continua bolando novos planos mirabolantes para sair do país. Agora, cidadão do mundo que ele é - ou ao menos se acha -, o planeta virou sua casa, pela qual ele se sente livre para circular sem temer. A moda então vira fazer mochilões: colocar a casa nas costas e viajar pela América do Sul ou - no caso dos mais ousados - pela Europa, junto com os amigos. Tais planos também fazem parte da estratégia de reviver o intercâmbio mas, tal como o 18 Brumário de Luís Bonaparte, incorrem em grandes farsas pois que nunca se concretizam. Só aí nosso estudante ideal começa a se tocar que a vida não é uma grande viagem.
E nem só de mochilões vivem esses seres frustrados. A nova onda dos ex-intercambistas é fazer voluntariado na África. O estudante de RI chega à uma certa altura do curso na qual se sente totalmente comovido pelas agruras que enfrentam as crianças da África Subsaariana, levando-o desesperadamente a torrar alguns milhares de reais...perdão, de dólares (o estudante ideal de RI sempre fala os preços em dólar, a fim de mostrar a todos o quanto ele está bem-informado do mercado de câmbio) em programas que treinam voluntários para prestar assistência ao sofrido povo africano. Nessas alturas do campeonato, nossa figura já se encontra num estado de profundo apatia em relação ao seu país, fazendo-o ignorar que ele mora num lugar onde 90 milhões de pessoas vivem na miséria, sendo mais da metade desses indivíduos habitantes das cerca de 16 mil favelas que, de tempos em tempos, se proliferam pelo Brasil. À essas alturas, em meio a tantos bombardeios no Iraque, quedas na bolsa de New York e investimentos alemães no Japão, o estudante ideal de RI se esquece que seu país é campeão de desigualdade de renda, e que na esquina mais próxima de sua casa é possível achar uma criança passando fome.
Por que então gastar tempo e dinheiro indo até a África se tem gente precisando de ajuda aqui? É simples; tudo se resume a uma só palavra: status. Dá status exibir toda sua pujança financeira a fim de ajudar os miseráveis do continente africano. O jovem que vai até a África para ajudar quem sofre é um sujeito de grande sentimento humanitário, alma caridosa e bondosa; um cidadão do mundo consciente e preocupado com suas mazelas. O jovem que se presta a fazer trabalho voluntário na favela na rua de trás da sua casa é só um assistentezinho social fracassado.
Após fazer uma análise tão acurada desse tipo ideal, acho importante fazer algumas ressalvas, antes que coloquem minha cabeça a prêmio nos murais do CAIK. Antes de mais nada, caso o leitor desavisado não o saiba, também sou estudante de RI e também já fiz intercâmbio um ano no exterior; logo, eu também me aproximo em maior ou menor grau do estudante ideal aqui representado. Dessa forma, gostaria que todos enxergassem nesse artigo não tanto um mecanismo pra esculhambar meus colegas, mas sim que vissem o teor auto-crítico que ele possui. Ao contrário - e muito ao contrário - do vestibulando feliz, do jovem motorista independente e do missionário ateu, eu me identifico sim um pouco com o típico estudante de RI, ainda que essa identificação muito me perturbe. Nós, do hiperativo-categórico.blogspot não temos, na elaboração dos tipos ideais, a finalidade de desmoralizar ninguém, apenas a de construir um retrato escrito da juventude que me cerca e que tanto me intriga. O internacionalóide é só mais um componente dela.
E por fim, caso esse artigo seja lido por um de meus colegas de curso, saiba ele que não precisa se sentir ofendido. Não escrevi essas linhas com nenhum de vocês em mente, e portanto elas não se dirigem a ninguém em especial. Afinal de contas, como já fiz questão de frisar logo no início, tipos ideais são - como o próprio nome diz - ideais, não existindo pois correspondentes fieis na realidade. Logo, a figura aqui relatada simplesmente não existe, seja na PUC ou em qualquer outro curso de relações internacionais espalhado pelo Brasil, ao que não posso deixar de expressar o meu alívio: ainda bem.