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segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Páginas de combate - parte I

O homem que não enfrenta seus demônios está fadado a conviver com eles. Porém, o homem que enfrenta seus demônios e é derrotado está fadado a ser escravo deles.




Hoje vou começar a lhes contar algo fascinante – pelo menos para mim. Algo que nem todo mundo que me conhece sabe, e mesmo aqueles que sabem não sabem muito. Falarei de uma experiência inigualável de quando eu tinha 16 anos de idade. Ela durou um ano, mas nunca havia refletido de maneira mais detida a respeito. Falarei dos doze meses em que morei na Malásia, uma jovem monarquia no Sudeste Asiático.

Por que resolvi enfrentar meus demônios depois de tanto tempo? Porque não seria justo deixa-los de lado. Foram apenas cinco os meses que passei na Alemanha, e não obstante fiz quase uma cobertura jornalística acerca deles. Por outro lado, foram doze meses na Malásia, os quais deixaram como herança somente algumas poucas anotações em cadernos, todas elas tão enfadonhas que nem eu tenho paciência de relê-las.

Do dia 15 de junho de 2004 até o dia 13 de junho de 2005 experimentei os dias mais intensos, conturbados, confusos e edificantes de minha vida. Dificilmente qualquer outra experiência terá tanto impacto na minha vida como essa. E é justamente por ter sido algo tão marcante que acho tão difícil descrevê-lo. Aliás, estou escrevendo mais de 7 anos depois do ocorrido: de lá pra cá, muita coisa mesmo aconteceu, o suficiente pra mudar minhas visões e opiniões acerca do que vivenciei. Não pretendo esgotar o assunto nesse texto; precisarei de outros tantos para dar conta do assunto. Também não pretendo fazer uma narrativa rigidamente cronológica dos fatos, até porque já nem me recordo direito da sequência de tudo. Buscarei ir postando aquilo de que me lembrar ao longo do tempo.

Duas das perguntas mais frequentes que ouço sempre que toco no assunto: “e como é a Malásia?” e “mas... por que Malásia?”. A primeira é vaga demais pra ser levada a sério, além de extremamente pouco criativa. A segunda é mais instigante, mas também tenho preguiça de respondê-la. Digamos apenas que minha viagem à Malásia foi parte de um programa de intercâmbio internacional de jovens do Rotary Club, ao qual meu pai pertencia à época. Poderia ter escolhido os EUA, a Alemanha, as Filipinas, o Canadá e a Austrália, mas preferi a Malásia – embora as Filipinas também tenham cativado minha atenção.

Assim que cheguei à Malásia, tão logo botei os pés fora do aeroporto, senti uma onda de calor infernal me atacando. Só tinha experimentado sensação igual uma vez na vida, seis anos antes, quando desci do ônibus em Porto Seguro. Mas dessa vez o calor era maior, sem falar que eu estava de terno e gravata (uma das muitas insensatezes do Rotary Club) e há dois dias viajando e sem tomar banho.

A primeira casa em que fiquei foi de um casal “mestiço”: um indiano casado com uma malaia (Dr. Shaari e Dona Nooriah, respectivamente), embora casamentos mistos na Malásia sejam bastante raros de se ver. Eles tinham duas filhas: uma um pouco mais velha, e outra um pouco mais nova do que eu. Em poucos dias, me avisaram que em breve eu estaria indo à escola. Não me disseram muito sobre ela, apenas que era um colégio masculino e que os meninos de lá tinham fama de serem baderneiros. Nos meus primeiros dias por lá, ocupei-me com um dicionário “inglês-malaio, malaio-inglês” que achei na minha casa. Com ele aprendi várias palavras, e aos poucos fui me familiarizando com o idioma malaio.

Logo no meu primeiro dia na Malásia, Dr. Shaari me chamou pra uma conversa antes de dormir. Me disse que eu precisava ter cuidado, pois Klang (a cidade onde morava) era muito perigosa. Segundo ele, lá eram muito comuns as gangues de imigrantes indonésios que iam pra Malásia em busca de melhores condições de vida. Além disso, me orientou a ser especialmente cauteloso na escola. Ele disse pra eu ter cuidado com muitos estudantes de origem indiana, pois muitos deles eram más companhias, formavam gangues e gostavam de arrumar encrenca. Posteriormente, D. Nooriah também me orientou nesse sentido, dizendo que era preciso ter cuidado com os indianos. A princípio fiquei confuso: como poderia um indiano e a esposa de um indiano me orientar a ter cuidado com os indianos? Só fui compreender melhor oito anos depois, já no curso de história, quando descobri que havia brasileiros no começo do século XX que abominavam a mestiçagem e tudo o mais que não fosse puramente europeu. Mas essa é uma outra história.

Meus primeiros dias na Malásia foram dedicados a conhecer melhor a cidade onde eu morava. De carro, D. Nooriah me levou para vários lugares, mostrou-me a escola onde eu estudaria, a prefeitura, as praças e os melhores restaurantes. Me disse que eu me parecia com o ator de uma novela colombiana que passava todas as tardes na TV aberta e que cativava os telespectadores de todo o país, principalmente as mulheres. O nome dele na novela era Antônio. Quando assistíamos à novela juntos, ela me perguntava se eu conseguia entender o que eles falavam, e se era a mesma língua que se falava no Brasil.

Meu primeiro dia na escola foi memorável. Estudei na La Salle – uma escola que, só depois fui descobrir, tinha unidades até no Brasil. Na Malásia ela fora fundada por missionários ingleses, por isso era uma escola só para meninos. A recepção foi calorosa, principalmente por parte dos alunos. Não era comum ver estrangeiros em Klang, muito menos na escola e muito menos ocidentais. Minha primeira aula foi na biblioteca da escola. Lá fui bombardeado com milhões de perguntas sobre mim e sobre o Brasil. Achei um atlas bem completo, abri na página que mostrava mapas regionais do Brasil e apontei para a cidade de onde eu vinha – Lavras.

No primeiro dia de aula muita gente veio falar comigo. Um deles foi uma das criaturas mais insuportáveis que já conheci naquele país: um menino chinês que me convidava para ir à igreja dele. Ao longo de minha estadia, experimentei diversas situações embaraçosas com essa figura: sempre que ele me perguntava o que eu havia feito no final de semana e eu dizia que havia visitado algum templo budista ou algum templo hindu, ele se horrorizava. Ele me dizia que eu era cristão e que não podia ficar indo a esses lugares porque era pecado. Até quando eu disse a ele que tinha ido à igreja católica ele se indignou, dizendo pra eu não fazer mais aquilo – segundo ele, eu só podia ir à igreja evangélica. Isso sem falar no dia em que, na hora do lanche, ele me viu na cantina comendo com as mãos (algo bastante comum na Malásia, principalmente entre os malaios e indianos). Nesse dia ele novamente me chamou a atenção, dizendo que apenas os hindus e muçulmanos comem com as mãos, e que eu não podia comer com as mãos porque no Ocidente só se come com talher. Pois vejam só isso! Quer dizer então que após séculos e séculos “civilizando” os povos ditos inferiores, o homem ocidental chegou a um ponto no qual se vê necessitado do auxílio de um chinês para se civilizar? Talvez seja isso mesmo... O homem ocidental depositou tanta “civilização” sobre os demais homens que agora ele a recebe de volta, seja como uma forma de agradecimento, seja como uma forma de troco. Interessante que esse mesmo rapaz chinês ainda me causou outro constrangimento, dessa vez quando conversávamos na internet. Eu disse a ele que havia comprado um celular, e quando lhe passei o número ele ficou enfurecido. Disse que eu fiz besteira de comprar um celular, que eu devia ter falado com ele porque o amigo dele vendia celulares muito bons e muito mais baratos, e que eu havia jogado fora meu dinheiro com aquela compra... Não tive outra ação a não ser gentilmente pedir-lhe desculpas pelo meu erro crasso. Dado o tanto que ele lamentou por eu não ter comprado o celular do “amigo” dele, só pude concluir que ele ganharia uma parcela generosa na venda do equipamento. Afinal de contas, o malásio de origem chinesa era tão ocidentalmente civilizado que conseguiu assimilar até mesmo a ânsia mercantilista por lucro dos primeiros mercadores lusitanos que atracaram na China.

Mas essa foi só uma das muitas amizades estranhas que fiz nesse estranho país.

Como fiz intercâmbio pelo Rotary, eu era quase que naturalmente obrigado a participar de todos os eventos relacionados a essa instituição, principalmente as reuniões nos Interact Clubes das várias escolas (Interact é algo tipo o Rotary, mas para jovens, e as principais escolas de Klang tinham um). Em um desses muitos eventos, os membros do Interact de uma escola que eu visitava começaram a me sabatinar durante uma conversa bem informal na sede deles. Conversa vai, conversa vem, surge uma pergunta crucial: “Mas então, Marcelo... Você já disse o que admira na Malásia. Agora diga-nos: o que não te agradou aqui?” Fiquei sem jeito. Não sabia o que falar nem como falar. Eles perceberam meu desconforto e pediram que eu não me preocupasse, pois eles tinham a mente bem aberta e não ligariam de ouvir quaisquer críticas que eu tivesse a fazer. “Pois bem...” pensei eu ingenuamente, “se é assim, serei sincero”. Disse-lhes então que eu havia ficado desconfortável com o fato de a Malásia ser um país com uma sociedade bem diferente da brasileira, e que por isso não me sentia livre para falar de certos assuntos que no Brasil eu falaria com mais desenvoltura, como política, religião, sexo e outros temas mais delicados. A palavra “sexo” ecoou de forma macabra no recinto. De repente, todos aqueles jovens “de mente bem aberta” ficaram desconcertados, sem jeito e sem ação. Uma menina apenas se resumiu a dizer “Então... geralmente nós não falamos sobre sexo...”. Eu também fiquei sem ação. Não me lembro direito como tudo isso acabou. Só sei que trocamos e-mails e números de celular ao fim da reunião, e um dos presentes, um rapaz indiano, meio que se compadeceu de mim. Poucos dias depois recebia um e-mail dele perguntando se eu queria ser o melhor amigo dele. Achei melhor não responder, afinal de contas, nunca alguém me havia perguntado isso. Ele também me disse que se quisesse falar sobre sexo com ele, ele não teria problemas com isso. Aliás, acredite ou não, ele até me mandou alguns links de sites pornográficos, talvez com a finalidade de suscitar argumentos para nossas futuras discussões. Só sei que, depois dessa parei de responder os e-mails dele, não porque tivesse medo ou vergonha, mas única e simplesmente porque não sabia o que escrever.

Tive outra experiência desagradável quando perguntado acerca do que eu não havia gostado na Malásia, mas falarei sobre ela em outra postagem. No final das contas, ficou a lição: se te perguntarem do que você não gosta da Malásia, apenas fale do calor insuportável e encerre a discussão. Todos eles acharão lindo e ao fim você não arranjará um amigo que confunde falar sobre sexo com assistir pornografia.