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segunda-feira, 20 de abril de 2015

A heroica saga do professor Cidinho

Acordara atônito o professor Alcides naquela quente manhã – quase tarde – de domingo. Procurou ao redor para descobrir o motivo de tamanha angústia, mas tudo o que achou foi sua aluna deitada no outro lado da cama. Não, não era ela o motivo. Já fornicara com outras alunas antes – o número a perder de vista – e nunca se abalara com isso. Outra coisa estava deixando incomodado o quase sempre seguro e autoconfiante professor do melhor cursinho pré-vestibular de Belo Horizonte.

Com o sol a maltratar seu jovem rosto, as cortinas a balançarem sob efeito do tímido vento que entrava pelo quarto, Cidinho (como era carinhosamente chamado pelos alunos) pôs-se a refletir sobre os eventos da noite passada. Era mais uma das muitas festas que seus alunos haviam dado, convidando o simpático professor. Lembrava-se das alunas que beijara na noite, mas não se lembrava exatamente de qual havia levado para cama.

Cidinho voltou para casa a fim de se recompor e passou o resto do dia deliciando-se com as fotos da festa, especialmente com aquelas nas quais havia sido marcado. Apesar de visivelmente bêbado, não perdia a pose. Ao menos não diante de suas alunas, que rasgavam elogios ao querido professor comentários afora. Nada melhor que um professor carismático, jovial e cheio de si para aliviar os corações e mentes de jovens adolescentes do fardo da pressão de passar nos cursos mais concorridos do país, preservando assim o orgulho de suas famílias e perpetuando a fama de seu cursinho.

Cidinho sabe que dará aula na manhã seguinte, mas aquilo não o abala. Preparar aulas é pra perdedores. Foi essa autoconfiança que o levou até onde está agora. Afinal de contas, até que fazer uma licenciatura não foi tão ruim como ele temia, lá no início de sua vida universitária, ainda sob o influxo de seus fracassos nos vestibulares para medicina e engenharia. Apesar de detestar estudar, de não ter paciência para livros e de não gostar de sala de aula, Cidinho apelou a seus contatos e terminou como uma das grandes atrações do cursinho mais glamouroso da capital mineira. A caminhada para o estrelato foi árdua, incerta, mas valeu a pena. E isso nosso querido professor comprova todos os dias ao fim de cada aula. Raras são as vezes em que não sai de sala cercado por uma turba de alunos e alunas: alguns elogiando-o por seu desempenho na última festa, outros tantos convidando-o para a próxima.

Quando o Audi A3 prata desponta na garagem do cursinho, até o mais desavisado aluno já sabe: é o professor Cidinho chegando. Abaixa os vidros escuros do carro a fim de ver e retribuir os acenos dos alunos admirados e das alunas aficionadas, mas não sem antes aumentar o volume do som, potencializando assim seu triunfo. Instantaneamente todos abrem espaço para o professor passar. Alguns quase se curvam, e a maioria comenta:

- Tá de carro novo – comenta um.

- Não, ele tem dois – emenda o outro.

- A camisa polo dele é nova – repara ainda uma outra.

- Sim, mas essa verde é feia. Preferia aquela lilás, lembra? – responde a amiga.

- Não combina com o cabelo dele.

- Mas combina com o Rolex.

É assim todos os dias da semana em que Cidinho leciona. Chega, bonapartísticamente, passando em revista seus súditos do alto de sua carruagem e reafirmando sua supremacia. Tambores rufando, lágrimas de emoção, tiros ao alto, em uma encenação que faria marejar de inveja o mais poderoso monarca prussiano.

Sua chegada não é uma rotina: é um marco. Não há quem não tenha visto, não há quem não se admire.

Mas o dia começou mal para nosso professor. O funcionário da limpeza o cumprimenta com um triste desdém:

- Bom dia, professor!

- “Bom dia, professor?”. Sou autoridade aqui... Estudei 4 anos à toa não, ouviu?

- Pe... perdoa-me o professor – responde o funcionário encabulado. Desejo um bom dia à sua digníssima pessoa!

Mas o apressado professor mal ouve a última frase e as portas do elevador se fecham, levando-o até o andar ordenado e separando-o do pobre faxineiro.

É a hora do intervalo, os corredores estão apinhados de alunos e funcionários, mas todos os caminhos se abrem ao nobre professor. Destemido, intrépido, autoconfiante, do alto do seu ego ele cavalga todo o longo caminho até a sala, não sem antes travar breves conversas com alguns de seus alunos mais próximos. Provoca os primeiros por causa da derrota do time deles para seu time no último clássico. Escarnece dos segundos por conta do vexame na festa de sábado à noite. Aos terceiros lança olhares maliciosos: são as alunas que ele planeja abocanhar na próxima festa.

Quebrando à direita, quase não percebe a aluna com quem fornicou no mês passado e vai logo confabular com um grupo de oito rapazes que conversam em tom descontraído próximo à escada. O professor Cidinho ouve as aventuras de cada um no fim de semana – eles estavam em outra festa. Entre uma e outra história, Cidinho gaba-se de fazer mais sucesso entre suas colegas do que eles próprios. Os alunos discordam da boca pra fora, mas Cidinho sabe que, lá no fundo, todos se curvam diante de sua majestade.

Triunfa mais uma vez o professor Cidinho!

No dia seguinte, repete-se o triunfal ritual de Cidinho em seu carro.

- Ele me adicionou no Face! – se empolga uma aluna.

- Ele curtiu uma foto minha – responde a outra.

- Ele já pegou uma amiga minha – acrescenta mais outro.

- Aquela que dá no primeiro encontro?

- Não, essa foi o professor de inglês.

Mas repete-se também a triste cena do funcionário da limpeza desavisado. Dessa vez, o audacioso faxineiro quase não nota a presença do professor, resumindo-se a um tímido e breve “oi”.

- Como é?! – pergunta o professor, atordoado.

- Ah, não, nossa...! É o senhor...?

- E quem mais?

- Vossa reverendíssima me perdoe a displicência. Não notei...

- O cursinho inteiro notou!

- Não, nossa... Veja que... bem... Sua reverendíssima senhoria me desculpe a falta de atenção. Desejo um ótimo dia de trabalho, com muita felicidade e prosperidade a sua magnificência e...

Fecham-se as portas do elevador antes que Cidinho ouça o resto. As aulas transcorrem normalmente. Ao chegar em casa à tarde, Cidinho se dedica à segunda parte de seu trabalho: ajudar a fazer o material didático do cursinho. Isso mesmo: Cidinho não se contenta em ser um excelente professor. Ele também dá a sua contribuição na elaboração do texto da apostila. Cidinho nunca gasta mais de uma hora e meia nessa tarefa. Algumas questões rapidamente formuladas da sua cabeça, alguns textos copiados e colados da internet e outras tantas questões copiadas e levemente modificadas e pronto: Cidinho termina seu trabalho. O resto já não é mais com ele. Dá até tempo de abrir uma cerveja e ir para o Facebook postar fotos de sua última viagem ao Peru e Equador.

- Lindoooooooo, profe! – é o primeiro comentário.

- Ameeeei! – lê-se no segundo.

- Aiiii... Qdo cresce qro ser q nem vc prof... conhecer o mundo!!! Que tudo! – proclama o terceiro. E assim vai.

Em menos de cinco minutos seus álbuns de viagem já possuem enxurradas de curtidas e comentários de alunos e alunas. Cidinho tem 1631 amigos no Facebook, mais do que qualquer outro professor do cursinho. A maioria são alunos do cursinho e das aulas particulares. Cidinho tenta se fazer sempre presente na vida de todos eles, mesmo à distância. É por isso que ele não passa um dia sem atualizar seu perfil, seja com uma foto de sua mais recente viagem – Cidinho já conheceu 31 países –, seja apenas de uma garrafinha de cerveja que ele resolveu abrir ali para se distrair após um dia atarefado. Jovem e solteiro, o professor Cidinho atrai a reverência da imensa maioria de suas alunas e ex-alunas. Raríssimas vezes suas postagens possuem menos de 50 curtidas.

Na quarta-feira, Cidinho só dá aula mais tarde. Graças a esse feliz destino, ele evita o desprazer de se encontrar novamente com o faxineiro mal-educado. No elevador, vê um grupo de monitores a quem cumprimenta com o desdém que sua potestade lhe autoriza. No caminho para a sala dos professores, porém, tromba com o infeliz faxineiro. Já mais preparado, o faxineiro pronuncia:

- Bom dia, excelentíssima magnificência!

- Estamos melhorando.

- Às ordens! – diz o funcionário, com um misto de embaraço e alívio.

Após confabular com seus colegas professores, vai ter com um grupo de alunos. Mais conversas, mais piadas, mais triunfos a exaltar: de seu time e de si próprio. Os alunos ponderam se Cidinho já se relacionou com mais meninas daquela sala do que todos juntos, ao que o nobre soberano replica que obviamente sim. Abstém-se, contudo, de citar nomes – talvez porque não se lembrará de todos, talvez porque três ou quatro delas são namoradas de meninos que ali estão. Diante da negativa em fornecer os nomes, os alunos duvidam do professor. Mas Cidinho não se abala. É confiante demais para cair nas maquinações de meros adolescentes.

Ao dirigir-se a seu Audi A3, novo encontro com o funcionário da limpeza:

- Vossa sumo reverendíssima supra-sacro-santíssima bem-aventurada a suma magnificência de vossa magna potestade!

- (...).

Na quinta Cidinho não dá aula. Terá tempo de sobra para fazer e enviar as questões do próximo simulado. Finalmente Cidinho se lembrou por que acordou tão atordoado no domingo anterior! Que bobagem. Elaborar questões só leva um segundo. Tão logo termina seu trabalho, envia as questões à editora. Antes, porém, telefona ao seu colega, coordenador da área, a fim de assegurar que todas as suas questões serão escolhidas para o próximo simulado. Cidinho precisa daquele dinheiro para ajudar a terminar de pagar sua última viagem.

Sexta-feira a chegada de Cidinho é mais triunfal do que de costume – afinal de contas, sexta é quando ele sai para beber com os alunos após as aulas do turno da tarde. Mas o encontro com o faxineiro é o mesmo:

- Vossa sumo reverendíssima magnificente sacro-santíssima, ultra-potentíssima e sumo digníssima excelentíssima majestadíssima!

Como é sexta-feira e o professor está de bom-humor, ele responde:

- Bom dia!

No corredor, alguns alunos revisam a matéria para um vestibular que está próximo:

- Isso aqui no livro tá errado – observa um.

- Como sabe? – questiona o outro.

- O Cidinho não ensinou assim – emenda um terceiro.

- Mas o Fausto sim! – responde o segundo.

- Confio mais no Cidinho – intervém ainda outro.

- E por que?!

- Porque é o Cidinho, ué! O Fausto tá aqui há menos tempo.

- É... é verdade – concluem todos, quase em uníssono, dando ganho de causa ao glorioso... Que aparece logo em seguida:

- Bom dia, galera!

- Bom dia, professor! – novamente em uníssono.

- Já tá sabendo da festa amanhã?

- E a de domingo?

- E a de hoje?

- E a do mês que vem?

- E a da Aninha?

- Você vai?

- Não vai?

- Por que?

- Sério?

- Qual?

- Que horas?

- Com o Audi ou o Toyota?

- Comprou outro?

- Qual?

- Hidráulica? Automático?

- Prata...? Branco...? Vermelho...?

- Vermelho é de viado, hein!

- Prata?

- Meu pai tem um.

- Meu pai vai me dar se eu passar no vestibular.

As aulas de sexta transcorrem normalmente. Cidinho encena situações para explicar a matéria, faz teatrinhos, leva músicas, dança, canta, sobe na cadeira, interage com os alunos que filmam e tiram fotos de tudo. E nesse show business nosso professor vai se projetando no imaginário de todos os alunos da região.

Terminadas as aulas, como prometido, sai para beber com os alunos. Não pode se demorar, porém, pois tem uma festa às 23h – na qual também não poderá se demorar, pois no sábado marcou almoço com uma aluna e pretende chegar apresentável.

- Já vai, professor?

- Cedo!

- Não aguenta bebe cum nóis!

- Aguenta!

- Sim?

- Não!

- Mas já?

- Onde?

- Me dá carona?

- Perto da sua casa!

- Domingo? Claro!