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domingo, 12 de julho de 2020

Diários de Quarentena - 11 de julho de 2020

Sempre fui fascinado por aqueles momentos de paz profunda que antecedem um abalo catastrófico ou uma ruptura radical.

Como estaria a Bastilha no dia 14 de julho de 1789, pouco antes de as massas parisienses irromperem de todos os cantos? Como seria o ambiente em Wall Street na madrugada do dia 23 para o dia 24 de outubro de 1929, logo antes do começo da Grande Depressão? Como foi o café da manhã dos marinheiros estacionados em Pearl Harbor no dia 8 de dezembro de 1941, pouco antes de os aviões japoneses cruzarem os céus?

Ultimamente tenho ouvido com muita frequência uma playlist no YouTube intitulada “ Corp. : NEWS AT 11”. A playlist traz uma série de trechos de programas de televisão e rádio nos Estados Unidos na manhã do dia 11 de setembro de 2001, pouco antes de a transmissão ser interrompida para noticiar os atentados. Logo antes da interrupção tem início um pequeno arranjo musical ao estilo vaporwave, com sons que trazem uma bela nostalgia dos anos 1990, a anunciar que a inocência acabou. É como se os tranquilos anos do pós-Guerra Fria nos dessem adeus, levando consigo a paz prometida por Fukuyama e a esperança de um novo século de paz, longe dos horrores das guerras mundiais.

O indivíduo que fez tais arranjos é um gênio. Para mim, sua mensagem é clara: “Em breve interromperemos nossa programação para noticiar um dos maiores atos terroristas da História. Mas antes disso, aproveite seus últimos momentos de paz, afinal, você merece!”.  

Ouvir tais transmissões tem me trazido uma serenidade indescritível. A serenidade que é peculiar aos últimos momentos de paz que antecedem um desastre. Assim como o momento mais frio de uma noite é aquele que antecede o primeiro raio de sol, o instante mais sereno é aquele que está a apenas um segundo de distância da eclosão de uma guerra.

No dia 11 de março do ano corrente, 11 anos depois que iniciei minha graduação no curso de História, recebi uma das notícias mais aguardadas por mim nesses últimos 11 anos: fui aprovado em um processo seletivo para professor em uma universidade estrangeira. Do dia 11 de março ao dia 17 de março, vivi meus momentos de glória. Mas eles também antecediam um abalo profundo: no dia 17 a UFMG suspende as aulas devido ao vírus e eu me vejo de mala na mão, voltando para Lavras.

Em poucos momentos de minha vida fui tão feliz quanto nestes idos de março. Por sete dias não aguardei novas notícias. Por sete dias tudo parecia estar solucionado. Por sete dias não tive o que desejar. Hoje completam exatos quatro meses desde que recebi a notícia mais aguardada dos últimos anos. Quatro meses foram o suficiente para ansiar por outra notícia, muito mais do que ansiei nesses longos 11 anos pela notícia de uma vaga de professor universitário. No dia em que tivermos a confirmação de uma vacina eficaz, o dia 11 de março de 2020 entrará para a minha História como apenas um dia qualquer.

Bem lá no fundo eu sempre soube que, quando alcançasse meu grande objetivo, algo aconteceria que me faria ter saudades dos tempos em que eu ainda não o havia alcançado. Há um ano eu não era um professor universitário, mas pelo menos eu podia sair de casa sem medo. Há dois anos eu não era professor universitário, nem mesmo doutorando, mas pelo menos não tinha medo de ler as notícias. Passei grande parte da vida raciocinando que tudo seria melhor quando eu alcançasse meu sonhado emprego. Agora que o alcancei, me arrependo de ter me esforçado tanto por alcançá-lo a ponto de deixar de lado várias coisas boas que agora não tenho mais. É a utopia de Eduardo Galeano: não nos leva a lugar algum, apenas nos faz caminhar.

O noticiário anda confuso ultimamente. 1200 mortes por dia, exceto nos finais de semana, quando nem todas as secretarias de saúde do país funcionam e o noticiário nos dá uma folga da matança. Mas sempre vem a segunda ou a terça e as omissões do final de semana são cobradas com juros e correção.

A cada novo morto, o espanto vem logo seguido de perguntas: “Tinha doença crônica? Era diabético? Era idoso? Era obeso? Era cardíaco? Teve contato com infectados?”. Procuramos, inconsciente e freneticamente, uma forma de responsabilizar a vítima pelo seu destino. E se a resposta a uma dessas questões for “sim”, logo ficamos em paz com nossa consciência. Tão logo nos damos conta do quão inconsequente fomos, coramos de vergonha e nos recolhemos com medo, cientes de que ninguém está a salvo.

Marcos Novaro e Vicente Palermo observam que, na ditadura militar argentina (1976-1983), até mesmo aqueles que não eram parte da resistência armada acabavam padecendo frente à repressão. A cada novo “desaparecido” político, aqueles que não queriam se envolver tentavam racionalizar a situação: “por alguma coisa ele deve ter sido preso”; “ninguém vai preso à toa”; “alguma coisa ele fez”. Trocando em miúdos: o indivíduo não é punido por ser culpado; ele é culpado porque foi punido.

Nas palavras dos autores: “as vítimas eram tratadas dessa forma porque alguma coisa tinham feito e porque não havia outro caminho. Obtinha-se, assim, tanto uma justificação para não agir (...) como uma razão para se sentir seguro”. Essa “culpabilização reconfortante” é o que nos permite olhar para o lado enquanto milhares padecem, e logo em seguida sentar em nossa poltrona enquanto tentamos convencer a nós mesmos de que não cumprimos nenhum dos requisitos para sermos os próximos da lista. E sempre haverá uma nova lista, um motivo bastante razoável para aqueles que nela estão, e um motivo razoável para nós não estarmos.

domingo, 21 de junho de 2020

Diários de quarentena - 21 de junho de 2020


Da última vez em que escrevi neste blog, o Brasil possuía 6570 mortes por Covid-19 oficialmente registradas. Hoje, dia 21 de junho, 6570 é o número médio de mortes em menos de uma semana.

O nível de mediocridade a que chegamos é tamanho que, na ausência de qualquer perspectiva otimista para o futuro, os negacionistas, em todas as suas variações (desde os que negam por completo até os que negam em partes), apelam a um otimismo patético e irresponsável. “Não olhe o número de mortos, olhe o número de recuperados!”, eles dizem. “Muita gente morreu, mas muita gente está viva!”, dizem alguns outros. “Não espalhe medo, espalhe esperança!”, bradam ainda outros. Esbravejam porque os telejornais só falam da Covid. Chamam a Rede Globo de TV Funerária. Criticam aqueles que só veem o lado negativo da pandemia. Tamanha falta de noção da realidade apenas endossa o título do artigo estampado na capa da Folha de São Paulo de outubro de 2019, que heroicamente recuperei no muro de minha casa em abril: “Reinações de Jairzinho”.

Ninguém está imune a essa onda de mediocridade. Quantas vezes não fiquei com raiva de mim mesmo por esboçar um tímido otimismo toda vez que o número diário de mortos ficava abaixo de mil. Tivemos algumas poucas notícias boas essa semana: dexametasona, vacina chinesa testada em São Paulo, OMS notando uma desaceleração de casos no Brasil... Mas os mais de mil mortos diários continuam a nos assombrar todo final (ou começo) de tarde, dependendo de onde vêm os números: se do governo ou do consórcio.

Meus sonhos com morte acabaram faz tempo, mas a sensação de estar cada vez mais perto dela, não. Poucas vezes na vida estive assim tão perto de morrer. A primeira foi em dezembro de 2004, quando, apenas um dia após o tsunami que devastou o Sudeste Asiático, viajei para a ilha de Langkawi, que também fora atingida. Um mês antes de esse mesmo tsunami ter devastado a orla da praia de Georgetown, eu também estive lá. A segunda foi em 2012 ou 2013 (ou seria 2014?), quando, voltando do trabalho, no cruzamento da Augusto de Lima com a Araguari, por muito pouco não fui atingido em cheio por um carro em alta velocidade que ignorou o sinal vermelho.

Nem mesmo o maior tempo passado dentro de casa fez sumir a sensação de estar próximo à morte. Se, conforme observei no dia 4 de abril, o muro de minha casa é um túmulo de jornais, seu quintal sempre foi um túmulo de pipas. Hoje caíram duas. Uma delas eu entreguei a um rapazinho aqui na frente que acompanhava a disputa de pipas no céu com vivo interesse. Ele confessou que a pipa não era dele, mas que aceitava de bom grado. A outra pipa caiu em três casas diferentes: o começo da linha caiu na casa do vizinho, o meio da linha atravessou o fundo do meu quintal e a pipa em si caiu na casa de trás. Tive de ir até lá para resgatá-la, já que o fio dela se enroscou na cerca elétrica.

Desde que me entendo por gente vejo pipas caindo aqui no quintal, poucas das quais foram reivindicadas. Acho que isso se dá menos por falta de interesse dos pipeiros pelas suas pipas do que por ignorar mesmo o paradeiro delas. Quem quer enterrar seus mortos sempre corre atrás. Ontem mesmo assisti a um filme sobre um fazendeiro australiano cujos filhos haviam morrido na Batalha de Galípoli, na Primeira Guerra Mundial. Finda a guerra, o fazendeiro deixa sua fazenda nos confins da Austrália e embarca para o Império Turco, onde, em meio a minas de guerra, corpos putrefatos e profunda instabilidade política, tenta recuperar os corpos de seus filhos para enterrá-los dignamente.

Nunca fui de soltar pipas. Porém, saber que sua pipa ficará esquecida em algum quintal da cidade deve ser uma sensação angustiante. Por isso mesmo nunca entendi a rabugice de certos senhores ao não devolver as pipas que caem em suas casas aos seus respectivos donos. Eles me lembram os oficiais turcos e ingleses que a todo custo dissuadiam o fazendeiro australiano de encontrar seus filhos, tentando convencê-lo de que os campos de batalha do Império Otomano eram o melhor túmulo para eles, e não uma cova simples no sertão australiano.

Perder a pipa é quase como perder a própria identidade, algo em que já estou me tornando um verdadeiro especialista. Ano passado encontrei três documentos de identidade em Belo Horizonte: um de uma estudante hondurenha na UFMG, um de uma jovem ainda no ensino médio e um de um turista carioca, todos devidamente devolvidos a seus donos. Em seus agradecimentos, todos expressavam o alívio inconfundível de ver um pedaço deles retornando a si mesmos.

Que nenhum morto de guerra seja esquecido.
Que nenhum documento de identidade seja perdido.
Que nenhuma vítima da Covid-19 seja apenas uma estatística.
E que nenhuma pipa seja perdida, pois só elas se elevam sobranceiras, rasgando os limpos céus de junho, a anunciar que a vida continua.  

domingo, 3 de maio de 2020

Diários de quarentena - 02 de maio de 2020

Se a História fosse um circo, os otimistas seriam os palhaços.

Alexis de Tocqueville diz que a nobreza francesa, bem como de outros países europeus, subestimou a Revolução Francesa, acreditando se tratar de uma agitação passageira. Quando a Primeira Guerra Mundial estoura em julho de 1914, soldados dos dois lados se despediram de seus familiares afirmando que estariam em casa para o Natal.

Mais recentemente (2008), em plena crise financeira internacional, o presidente Lula afirmou que no Brasil a crise não passaria de uma "marolinha". E em 2020, em meio a uma pandemia de Covid-19, o presidente Bolsonaro referiu-se à doença como uma "gripezinha".

A Revolução Francesa se estenderia por mais uma década, abalando as estruturas sociais europeias e ecoando nas Américas. A Primeira Guerra duraria mais quatro anos e mataria mais de 15 milhões. A longo prazo, a crise financeira de 2008 prepararia o terreno para a ascensão da extrema direita no mundo alguns anos mais tarde, incluindo-se aí ninguém menos que... Bolsonaro, cuja gripezinha já matou 6.570 brasileiros (entre atletas e sedentários) segundo os números oficiais divulgados hoje.

Eu me atrevo a fazer uma confissão que motivaria muitos de meus colegas a me crucificarem.

Por muito tempo eu subestimei a classe média reacionária brasileira. Não conseguia ver neles o instinto sanguinário que muitos lhe atribuíam. Não achava que "fascista" era o termo correto para designá-los. Tentei, muitas vezes, me colocar no seu lugar, entender seu ponto de vista, pois como um estudante da História das direitas sempre achei que esse fosse meu papel. Porém, o noticiário recente sepultou para sempre qualquer tentativa de empatia que eu pudesse ter.

O bolsonarismo olavo-terraplanista é um grande apanhado de tudo de pior que existe nesse país. Ele é o ódio ao conhecimento, o horror à ciência, o desprezo total pela razão, aliados a um apego orgulhoso, incontrolável e doentio à ignorância. Não satisfeitos em dizer que a pandemia é uma farsa e que os números estão inflacionados, fazem carreatas pela reabertura do comércio, aglomeram-se para recepcionar o presidente para onde ele vai e espalham notícias falsas dizendo que a China está disseminando máscaras contaminadas com o vírus mundo afora.

Porque não basta arrastar todos para a rua quando a doença mata mais de 400 brasileiros por dia. Também é preciso assegurar que eles não tenham qualquer proteção. Inclusive, fontes seguras me informaram que, para a próxima epidemia de dengue, os bolsonaristas já estão organizando manifestações pelo direito de acumular água parada, bem como disparos de fake news denunciando repelentes contaminados.

A esquizofrenia argumentativa é tamanha que, ao mesmo tempo em que dizem que não há pessoas morrendo de Covid-19, também dizem que o vírus foi manipulado em laboratórios como parte de um plano maligno da China para desestruturar a economia ocidental.

"A China espalhou um vírus mortal no mundo, ergo vamos sair às ruas como se nada estivesse acontecendo!".

Dentro de alguns anos, não sei se tais movimentos seriam enquadrados como otimistas ou pessimistas, mas uma coisa é certa: pessimistas ou otimistas, eles certamente entrarão para a História como palhaços - e não do tipo engraçado.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Diários de quarentena - 26 de abril de 2020


O historiador brasileiro José Honório Rodrigues observou, em seu livro “Aspirações Nacionais” (1962), que a classe média brasileira se indignou mais do que influenciou. Tal indignação frequentemente se expressou – e segue se expressando –  por meio de um discurso contra a corrupção em prol da “recuperação moral” do país. Esse discurso, segundo o autor, nada mais é do que um instrumento da luta da classe média pelo poder, além de pretexto para “abafar os tolerantes nas lutas ideológicas e de pensamento”.

O autor ainda arremata: “É um caminho normal, no desvio histórico, que os indignados acabem indignos”.

Anos atrás, quando ainda cultivava o péssimo hábito de ler as caixas de comentários de portais de notícias, lembro-me de um comentário que dizia que Hitler matou muitos, mas pelo menos não roubou seu povo. Dias atrás voltei a ver esse raciocínio em um meme no Facebook: “Quando o presidente vira notícia por passar a mão no nariz e não do dinheiro do povo é porque estamos no caminho certo”.

O combate à corrupção é, para o brasileiro de classe média, um fim em si mesmo. Tudo bem matar milhões de judeus e fraquejar diante de uma doença que já matou mais de 200 mil em poucos meses, mas Deus nos guarde do horror da corrupção. 

Nos idos de 2013, quando o gigante começava a ensaiar seus primeiros passos, esse fetiche pela luta contra a corrupção sempre me pareceu uma piada ingênua. Mas com o gigante já crescido e descontrolado, a piada começa a inspirar cuidados. “Independência ou Morte”, de Pedro Américo, foi a obra que inaugurou o Brasil dos últimos duzentos anos. A obra que inaugurará os próximos duzentos certamente será um cidadão de classe média comemorando o fim da corrupção em meio aos escombros.

Para uma classe média historicamente obcecada pela moralidade, as eleições de 2018 foram um conto de fadas.

O itinerário de Bolsonaro até a presidência era o sonho de todo partido de esquerda brasileiro nos anos 1990: vencer as eleições estoicamente, em um partido pequeno, com pouco tempo de televisão, comunicando-se diretamente com o público, apelando a um discurso antissistema, atacando a Rede Globo e – cereja do bolo – sem financiamento privado de campanha.

Bolsonaro venceu, mas não veio sozinho. Trouxe consigo o Olavo-terraplanismo, que redunda na negação da pandemia, no elogio a teorias conspiratórias e outros absurdos propagados com enorme facilidade em redes sociais e aplicativos de mensagens. A disseminação desse obscurantismo força a esquerda a agarrar-se desesperadamente aos grandes veículos de comunicação como tábua de salvação. A luta pela mídia independente e por uma imprensa alternativa, típicas bandeiras da esquerda, coexiste sofrivelmente com a constatação de que, no mar da pós-verdade, a imprensa tradicional permanece um oásis de legitimidade.

A mídia se democratizou com as redes sociais. Hoje, até a sua tia pode formar opiniões sem sair de casa. As eleições também se democratizaram com o financiamento público de campanhas. Graças a isso, até o PSL chegou à presidência. Tudo se democratiza, mas quem menos se beneficia é a esquerda.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Diários de quarentena - 15 de abril de 2020

Em 1935, o acadêmico norte-americano Harold Lasswell escreveu que uma das maiores esperanças para a compreensão entre os povos seria o advento de uma ameaça global que colocasse o mundo inteiro em perigo.

Tal ameaça não viria de um ditador megalomaníaco com ambições expansionistas, mas da natureza. Certamente alguma pandemia letal. Ao ameaçar igualmente todos os seres humanos, independente de crenças ou ideologias políticas, tal pandemia exigiria a união de todos os países em prol de um objetivo comum. Colocar preferências políticas ou rivalidades históricas acima desta luta condenaria a humanidade. 

O livro de Lasswell - "World Politics and Personal Insecurity" - faz parte de minha lista de leituras para o doutorado. Quando o li, em janeiro ou fevereiro deste ano, quase tomei nota destes trechos. Infelizmente, achei que não seriam relevantes para minha tese e ignorei-os. Nem mesmo a epidemia de covid-19, que já grassava pela China naqueles meses, me convenceu a copiá-los. Afinal de contas, naquele momento o vírus ainda parecia uma ameaça distante. 

O mundo do entre guerras em que Lasswell escreveu tais linhas era propício a tudo, menos à união. 

Com Hitler na Alemanha e Mussolini na Itália, a Europa estava em lua de mel com o fascismo. A União Soviética controlada pelos bolcheviques, por um lado, e as democracias liberais (Estados Unidos, Reino Unido e França), por outro, formavam os outros polos desta complexa configuração de poder. Mas no mar de incertezas do período entre guerras, Lasswell não via a esperança para a paz mundial em instituições nem em chancelarias. Caberia a algum vírus ou bactéria letal a nobre e diplomática tarefa de obrigar a humanidade a optar entre a união e o extermínio. 

Como bem disse nosso exausto ministro da saúde hoje, ao anunciar sua saída iminente: "O vírus não negocia com ninguém. Não negociou com o Trump, não vai negociar com nenhum governo".

Quando a disciplina de Relações Internacionais se arrastava em calorosas discussões entre o pessimismo dos realistas e o idealismo dos liberais, Lasswell demonstrava grande sensibilidade para temas considerados de menor grandeza pelos analistas internacionais. Cultura, identidades, ideias, conceitos e aspirações: ao valorizar esses domínios, o autor antecipava preocupações que só entrariam no rol da disciplina de Relações Internacionais nos anos 1980. 

Por outro lado, os prospectos de Lasswell para a união mundial não vingaram.

"O vírus faz parte de um plano maligno da China!" - grita um.

"O vírus não passa de uma gripezinha!" - vocifera outro (não raro, o mesmo que proferiu a primeira frase!).

"O vírus vem sepultar a ordem neoliberal!" - conclui apressadamente um terceiro.

"O vírus marca o início do mundo pós-Ocidental!" - reflete o quarto.

O mundo não deu as mãos para combater o vírus, e dificilmente o fará. A batalha de narrativas que se cristaliza ao redor dos recentes eventos nos mostra que Lasswell subestimou Aristóteles. Animais políticos que somos, nunca perdemos a oportunidade de politizar até mesmo uma pandemia. 

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Diários de quarentena - 7 de abril de 2020


No final de 2016, em minha segunda passagem pela Alemanha, combinei de me encontrar com um amigo em um bar.

Enquanto aguardava por ele, pedi à balconista uma Coca-Cola. Seja pelo barulho ambiente, por um erro de pronúncia ou mesmo pela incredulidade da atendente ao ver que alguém em um ambiente daquele consumiria algo não-alcoólico, ela acabou me trazendo uma cerveja Corona. Antes mesmo que eu pudesse comunicar o equívoco ela já abriu a tampa, forçando-me assim a me contentar com a cerveja mesmo odiando bebidas alcoólicas. Custei a beber metade da garrafa. Quando fomos embora, o resto que não consegui tomar já estava quente.

Resignei-me àquela Corona calado, assim como me resigno ao atual.

Quando se vive em quarentena, tudo que vem de fora dos muros de sua casa é um intruso. O jornal do dia, as compras encomendadas, o ovo de páscoa pedido no aplicativo, os boletos para pagar: tudo que cruza o batente do portão é um potencial portador do temido vírus espreitando a melhor oportunidade para te atacar.

Na noite de domingo para segunda sonhei, pela segunda vez desde a quarentena, que eu era condenado por um crime que não cometi. Uma menina que nunca vi na vida me acusou de agredi-la quando eu tinha onze anos de idade, pelo que fui sentenciado a 20 ou 30 anos de cadeia. No primeiro sonho fui condenado à morte. O lugar de minha execução era nada menos que a cozinha de minha casa. O oficial de justiça ainda me deixou escolher entre o enforcamento ou a decapitação – sugeriu o enforcamento, alegando ser indolor.

Lembro-me de ter me angustiado muito mais no segundo sonho do que no primeiro, e nisto não há nada de surpreendente. É muito mais fácil se imaginar morto do que se imaginar recluso em uma cela por 30 longos anos.   

Em algum dia entre os dois sonhos tive outro sonho no qual eu também era injustiçado.

Sonhei que morava em uma república em Belo Horizonte, e em dado momento uma das meninas com quem morava entrou comendo um pedaço de pão e tomando um copo de café. Com uma naturalidade desconcertante, minha colega de apê pediu que eu pagasse pelo seu lanche lá na padaria. Diante de minha visível incompreensão, ela retrucou (erroneamente) que eu não contribuía com nada na casa: não fazia compras e não limpava as áreas comuns, de modo que pagar pelo seu café e pelo seu pão seria uma forma de me redimir pela minha negligência.

Não sou bom em interpretar sonhos, mas creio que estes não sejam tão difíceis. Enquanto passo a quarentena no conforto de casa, muitos se expõem – seja porque precisam trabalhar, seja porque sequer tenham uma casa. Talvez até a tenham, mas sem qualquer conforto. Fazer-me injustiçado por alguns momentos é a ingênua estratégia que o inconsciente achou para tentar reparar as injustiças da vida real.

Ser historiador é fazer uma incursão por todas as misérias humanas enquanto se pergunta (com medo da resposta) se você também viverá o suficiente para presenciar alguma.

Entro em sala de aula, dou bom dia aos meus alunos, falo sobre pestes, guerras, fomes, crises e medo com a frieza de um perito a analisar um cadáver. O alarme soa e eu me vou, não sem antes me desculpar por não ter conseguido terminar o conteúdo. Mas não faz mal. Na próxima aula haverá tempo de sobra para continuar falando de mortos e injustiçados com a serenidade que só o distanciamento temporal me permite. Até que um belo dia o horror se abate sobre meu próprio tempo, e eu sinto raiva de saber que daqui a 500 anos haverá um professor de História narrando minha desgraça com a mesma serenidade e leveza com que eu narrava a dos outros.

domingo, 5 de abril de 2020

Diários da quarentena - 4 de abril de 2020

O muro de minha casa é o túmulo da imprensa nacional.

É muito alto e muito próximo do telhado. Resta ao pobre jornaleiro, todas as manhãs, calcular muito bem onde arremessar o jornal para que ele caia exatamente no pequeno espaço que existe entre o muro e o telhado – o que nem sempre acontece. Hoje avistei um desses jornais que jaziam no alto do muro e empurrei-o de lá com uma vassoura. Pensei: vou recolhê-lo e logo depois lavar bem as mãos.

Nem foi preciso. O jornal era de outubro de 2019, quando o vírus sequer passeava pelo nosso país, nem mesmo pelo noticiário internacional.

O jornal, já roto e maltratado pela ação do sol e da chuva, era inofensivo. Contemplei-o por alguns instantes com um misto de nostalgia e inveja. Afinal, era como se ele viesse de outra época, de uma época feliz: sem Covid-19, sem toques de recolher, sem eventos esportivos suspensos nem ruas vazias. Em menos de um mês essa pandemia virou nossas vidas do avesso com enorme violência. Hoje olhamos para poucos meses atrás com o mesmo saudosismo enviesado com que um idoso se lembra de sua infância.

Não havia uma só notícia boa na primeira página, a única pela qual passei os olhos. Uma delas anunciava um artigo de opinião: “Reinações de Jairzinho”. Dizia que o presidente se elegera como excêntrico e continuaria pagando de excêntrico sabe Deus até quando. Outro artigo de opinião alertava para a direita democrática, esclarecida e tolerante que se vendeu para o terraplanismo olavista ao apoiar [Jairzinho] Bolsonaro.

Mas nem o circo lamentável da política me impediu de sentir saudades. Saudades de quando nosso maior problema era Jairzinho (não que hoje ele não seja mais). Mais saudades ainda de quando a classe média pseudomoralista venerava Joaquim Barbosa em lugar do “capitão”.

Hoje recusei, pela segunda ou terceira vez, um boteco virtual com amigos. Têm certas coisas na vida que ou se faz direito, ou não se faz. Se chegamos ao ponto de ter que marcar confraternizações por videoconferência, então já não há mais motivo para confraternização. Falou-se o dia inteiro na “Live do Jorge e Mateus” no YouTube: uma noite inteira de músicas que nos fazem lembrar os tempos de faculdade. Também recusei. Já tive minha dose diária de nostalgia ao encontrar o jornal de outubro de 2019.

O jornal também me contemplava, mas com pena. Ele cumprira sua função: noticiara os eventos daquele dia de outubro de 2019 com maestria invejável. Se não foi lido, não era culpa sua. Ele nada tinha a ver com o jornaleiro que não acertou o vão entre o muro e a telha, nem tampouco com o pedreiro que projetou um muro tão alto. Do fundo de suas páginas rasgadas e desbotadas, o jornal me olhava com um olhar inquiridor: e você, cumprirá a sua função?

Não soube o que responder, mas fiz a minha parte. Joguei o jornal na reciclagem como quem envia uma carta para o futuro. Façamos nossos votos para que dentro em breve aquelas mesmas folhas, redivivas, estejam anunciando o aniversário do fim da pandemia, e não um aumento exponencial no número de casos.