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quarta-feira, 8 de abril de 2020

Diários de quarentena - 7 de abril de 2020


No final de 2016, em minha segunda passagem pela Alemanha, combinei de me encontrar com um amigo em um bar.

Enquanto aguardava por ele, pedi à balconista uma Coca-Cola. Seja pelo barulho ambiente, por um erro de pronúncia ou mesmo pela incredulidade da atendente ao ver que alguém em um ambiente daquele consumiria algo não-alcoólico, ela acabou me trazendo uma cerveja Corona. Antes mesmo que eu pudesse comunicar o equívoco ela já abriu a tampa, forçando-me assim a me contentar com a cerveja mesmo odiando bebidas alcoólicas. Custei a beber metade da garrafa. Quando fomos embora, o resto que não consegui tomar já estava quente.

Resignei-me àquela Corona calado, assim como me resigno ao atual.

Quando se vive em quarentena, tudo que vem de fora dos muros de sua casa é um intruso. O jornal do dia, as compras encomendadas, o ovo de páscoa pedido no aplicativo, os boletos para pagar: tudo que cruza o batente do portão é um potencial portador do temido vírus espreitando a melhor oportunidade para te atacar.

Na noite de domingo para segunda sonhei, pela segunda vez desde a quarentena, que eu era condenado por um crime que não cometi. Uma menina que nunca vi na vida me acusou de agredi-la quando eu tinha onze anos de idade, pelo que fui sentenciado a 20 ou 30 anos de cadeia. No primeiro sonho fui condenado à morte. O lugar de minha execução era nada menos que a cozinha de minha casa. O oficial de justiça ainda me deixou escolher entre o enforcamento ou a decapitação – sugeriu o enforcamento, alegando ser indolor.

Lembro-me de ter me angustiado muito mais no segundo sonho do que no primeiro, e nisto não há nada de surpreendente. É muito mais fácil se imaginar morto do que se imaginar recluso em uma cela por 30 longos anos.   

Em algum dia entre os dois sonhos tive outro sonho no qual eu também era injustiçado.

Sonhei que morava em uma república em Belo Horizonte, e em dado momento uma das meninas com quem morava entrou comendo um pedaço de pão e tomando um copo de café. Com uma naturalidade desconcertante, minha colega de apê pediu que eu pagasse pelo seu lanche lá na padaria. Diante de minha visível incompreensão, ela retrucou (erroneamente) que eu não contribuía com nada na casa: não fazia compras e não limpava as áreas comuns, de modo que pagar pelo seu café e pelo seu pão seria uma forma de me redimir pela minha negligência.

Não sou bom em interpretar sonhos, mas creio que estes não sejam tão difíceis. Enquanto passo a quarentena no conforto de casa, muitos se expõem – seja porque precisam trabalhar, seja porque sequer tenham uma casa. Talvez até a tenham, mas sem qualquer conforto. Fazer-me injustiçado por alguns momentos é a ingênua estratégia que o inconsciente achou para tentar reparar as injustiças da vida real.

Ser historiador é fazer uma incursão por todas as misérias humanas enquanto se pergunta (com medo da resposta) se você também viverá o suficiente para presenciar alguma.

Entro em sala de aula, dou bom dia aos meus alunos, falo sobre pestes, guerras, fomes, crises e medo com a frieza de um perito a analisar um cadáver. O alarme soa e eu me vou, não sem antes me desculpar por não ter conseguido terminar o conteúdo. Mas não faz mal. Na próxima aula haverá tempo de sobra para continuar falando de mortos e injustiçados com a serenidade que só o distanciamento temporal me permite. Até que um belo dia o horror se abate sobre meu próprio tempo, e eu sinto raiva de saber que daqui a 500 anos haverá um professor de História narrando minha desgraça com a mesma serenidade e leveza com que eu narrava a dos outros.

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