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segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

O Processo no Século XXI

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Ana Maria deu por si na cama metamorfoseada numa terrível celebridade virtual. Estava deitada sobre seu celular, que vibrava forte a cada notificação. Após apanhar o aparelho com a mão esquerda, visualizou, ainda sob o efeito do sono, o frisson que emanava de cada um dos aplicativos que a colocavam em contato com o mundo. Todos – amigos, parentes, conhecidos e principalmente desconhecidos – tentando entrar em contato com a jovem. Uns alertando, outros lamentando, outros tantos reprovando. A maioria escarnecendo.

“Que me aconteceu?” – pensou. Não era nenhum sonho. O quarto continuava exatamente o mesmo da noite anterior. Alguém devia ter caluniado Ana Maria, visto que naquela manhã acordara abarrotada das mais gravíssimas acusações, embora ela não tivesse feito qualquer mal. A mãe de Ana Maria, que todos os dias, pelas 8 horas, aparecia para lhe desejar bom dia e abrir as cortinas do quarto, não aparecera naquela manhã. Tal coisa jamais acontecera. Ana Maria ainda se deixou ficar um instante à espera; entretanto, deitada, com a cabeça reclinada na almofada, observou os jovens da república em frente que, por sua vez, contemplavam-na com uma curiosidade fora do comum.

Neste momento bateram à porta, e um homem que Ana Maria jamais vira em sua casa entrou no quarto:

- Quem é o senhor? ― perguntou Ana Maria, soerguendo-se imediatamente na cama.

- Vim para te ajudar no seu processo.

- Qual processo?

- Este do qual já deve estar inteirada em seu celular.

Fez-se breve silêncio. Ana Maria quis emendar nova pergunta, mas antes que pudesse fazê-lo o homem afirmou, puxando a cadeira que se achava em frente ao computador da jovem:

- Sente-se. Traga seu celular também.

Talvez porque não entendesse direito o que se passava, talvez porque estivesse curiosa para saber para onde seria conduzida, a moça obedeceu ao senhor sem questionar. Este, sentado na beirada da cama, ao lado de Ana Maria, mostrava os vídeos postados há apenas dois dias em um site hospedado nas Ilhas Fiji, mas rapidamente disseminado pelas mais diversas páginas de vídeos on-line, humor, blogs, redes sociais e aplicativos de mensagem instantânea. Por cinco ou seis minutos a garota observava, em silêncio, o furor que seu vídeo causara. Quis bocejar de sono, mas até nisso foi interrompida pelo senhor:

- Estou aqui para garantir que você tenha uma compreensão plena do processo ao qual está sendo submetida.

- Processo? Mas não fiz nada de errado.

O senhor, como se já estivesse acostumado a ouvir – e ignorar – perguntas daquele tipo, apenas deu continuidade ao raciocínio iniciado anteriormente:

- A Justiça é a internet. É direito de todo cidadão de bem conhecê-la. Seu crime não possui nenhuma relevância em particular. Foi mais um entre muitos do mesmo tipo, talvez variando um pouco aqui e ali em intensidade, mas nada fora da regra.

Ana Maria quis protestar novamente que não havia cometido nada de errado, que não possuía antecedentes criminais e que, portanto, o senhor certamente estaria a confundi-la com outra pessoa. Porém, lembrou-se de que o senhor já havia ignorado seu primeiro protesto, e com isso achou mais sensato permanecer em silêncio. O senhor prosseguiu com sua explicação, agora em tom mais douto do que nunca:

- Como já disse, a Justiça é a internet, mas ela é dividida em várias instâncias. Aqui, por exemplo, está a Gerúsia, o Conselho de Anciãos. Pessoas de cinquenta anos ou mais responsáveis por registrar que a repugnância de seu comportamento naquele vídeo é digna dos novos tempos, que no tempo deles não havia nada disso, pois as mulheres se davam o respeito.

Ana Maria achou graça daquilo. O peso da culpa ainda não havia caído sobre ela. Enquanto isso, apenas acompanhava os comentários com um misto de curiosidade e desdém. Chegava até a divertir-se com um ou outro. Ao perceber que o senhor não parecia ter intenção de proferir novas palavras, a moça achou que seria prudente finalmente exprimir as suas. Estava curiosa por saber qual teria sido seu crime, mas preferiu começar com outro questionamento:

- Como...? Como conseguiram me filmar? Quem me filmou?

- As estratégias de colocar todo o poder nas mãos de um ditador já se mostraram suficientemente trágicas ao longo do século passado. Todas acabavam degringolando cedo ou tarde, tropeçando nas próprias pernas, fuziladas pelos próprios soldados, decapitadas pelas próprias guilhotinas. Para que um Grande Irmão vigiando a vida de todos se podemos ter vários grandes irmãos fazendo o mesmo serviço e com ainda mais competência? Para que polícia política, serviço secreto, agentes de espionagem e câmeras espalhadas cidade afora se podemos simplesmente armar cada cidadão com uma câmera? E nem precisamos pagar-lhes cursos de treinamento. Eles sabem exatamente como devem agir sempre que presenciam algo suspeito.

- E os grandes irmãos que filmaram meu crime... Eles também não têm pecados?

- Certamente.

- Então?

- Não é um sistema perfeito, mas é o melhor que temos. Enquanto não conseguirmos vídeos ou fotos dos seus pecados, pouco há que possamos fazer.

- Então os grandes irmãos também fiscalizam um ao outro?

- Idealmente sim, mas é um sistema ainda em aperfeiçoamento.

- E será possível que nenhum desses grandes irmãos tenha filmado a pessoa responsável por disponibilizar meu vídeo on-line? Porque, convenhamos, esse tipo de exposição é crime.

- É esse o seu problema, Ana Maria – disse o senhor, reportando-se à jovem pelo seu nome pela primeira vez. Você ainda acredita na justiça do mundo real, na justiça de carne e osso. Está mais do que na hora de saber que ela é inútil. Tribunais, fóruns, cortes, não passam de museus. Há mais vida no sarcófago de Tutancâmon do que nesses ambientes empoeirados. Advogados, procuradores e juízes são, hoje, múmias vivas. Nada há que se possa esperar deles. Digo-o pela terceira vez: a Justiça é a internet.

O senhor mirava Ana Maria em silêncio, como que já aguardando novo protesto por parte da moça. Esta nada dizia, não porque nada tivesse a dizer, mas porque não sabia por onde começar. Após muito hesitar, a moça afirmou:

- E qual garantia esse Conselho de Anciãos me dá de que, naquela época, há trinta ou quarenta anos, as pessoas não fizeram o mesmo que eu fiz?

- Nenhuma. Naquela época não havia grandes irmãos para registrarem-no. Por isso os grandes irmãos representam um avanço tão grande em nosso sistema judiciário. De agora em diante, cada vez menos crimes ficarão impunes.

- O comportamento desse Conselho de Anciãos... O senhor não o acha anti-histórico? Julgam-me tendo como parâmetro os valores do passado, mas os tempos mudaram tanto.

- É uma reclamação plausível. Mas não se preocupe com a Gerúsia, geralmente são inofensivos. Aqui está – disse o senhor, voltando o olhar para a tela do computador – uma instância que inspira cuidados: é a Ala Sacerdotal. Eles julgarão seu comportamento de acordo com a moral religiosa. Vê-se, pelos comentários, que sua postura no vídeo não agradou ao deus deles, de maneira que também acho extremamente improvável que a Srta. seja absolvida nessa instância.

Ana Maria começou a ler os comentários, que ultrapassavam os mil e duzentos. Prisão, estupro corretivo, cinta, correia, medidas disciplinares, morte. Os mais cautelosos exigiam o pagamento de uma multa simbólica ou serviços sociais para o resto da vida.

- Não são esses os discípulos do homem que exortou a jogarem pedras todos aqueles livres de pecado?

- Esses mesmos.

- Então?

- Quanto a isso a Srta. pode permanecer tranquila. Nosso processo civilizador atingiu um tal estágio que apedrejamentos não são mais permitidos como em outros tempos. Sua integridade física permanecerá inviolável.

- E por que as penalidades se adequaram aos novos tempos, mas os parâmetros de julgamento permanecem arcaicos, como vimos no caso da Gerúsia?

- Já disse que não é um sistema perfeito.

- E esses aqui? – perguntara a moça, após um longo suspiro no qual seu sono residual se misturava ao desdém pelas normas daquele processo que ia conhecendo aos poucos.

- Essa é a Ala Liberal.

- Estão a meu favor?

- Não. Acham que o que fez foi repugnante e asqueroso.

- Mas não são liberais?

- Sim, pois apesar da repugnância com que agiu, acham que podem desfrutar de algum proveito disso.

- Então não me defenderão?

- Apenas se estiver disposta a fazer, com eles, o mesmo que fez no vídeo.

Pela primeira vez, desde que acordara naquela manhã, Ana Maria exalava preocupação. A seriedade da situação começava a se desenhar em contornos mais fortes e menos imprecisos. Já não era tão engraçado como antes.

- Um Conselho de Anciãos, uma Ala Sacerdotal e uma Ala Liberal, todos unidos no consenso de me condenar?

- Exato.

- Ninguém a me defender?

- Chegaremos lá. Agora veja mais estes. Formam a Comissão de Disseminação de Conteúdo. Não são declaradamente favoráveis nem contrários a você. Seu trabalho, como o de qualquer comissão séria, é puramente técnico: consiste apenas em difundir seu vídeo pelos mais diversos canais a fim de que atinja o maior público possível, angariado assim mais pessoas para te julgar. Alguns até se dão ao trabalho de colocar legendas ou explicações em outros idiomas a fim de que pessoas em outros países também possam dar seu veredicto.

- Parece um serviço pesado. O que ganham com isso?

- Comentários, curtidas, compartilhamentos. É essa a moeda de troca nesse ambiente. Mais um exemplo que atesta o quanto a Justiça avançou. A Srta. deveria ser grata por isso. Há não muito tempo, trabalhava-se apenas por bons vencimentos. Era horrendo como certos promotores se lançavam a processar um indivíduo inofensivo, cujo crime mais bárbaro havia sido baixar músicas na internet, com o único objetivo de aferir lucros do processo. Hoje não se vê mais essa luta encarniçada e renhida por bens materiais. Nossa Justiça evoluiu espiritualmente. Seus funcionários sentem-se plenamente realizados apenas com curtidas e comentários. A palavra venceu o dinheiro.

Após ouvir essa longa exposição, Ana Maria achou por bem fazer a pergunta que a atormentava desde o início. A garota se deixou levar com tamanha facilidade pelo discurso do senhor que acabou se esquecendo de questionar a validade mesmo de todo aquele processo:

- Qual foi o meu crime? Diga-me, senhor, qual foi?

- A essas alturas da exposição, a Srta. ainda tem dúvidas?

- Filmaram-me fazendo algo que não contraria nenhuma lei escrita e querem me processar por isso?! – Ana Maria expressava os primeiros sinais mais patentes de revolta.

- Preciso lembrá-la mais uma vez – e agora será a quarta – de que a Justiça é a internet?

- Não há lei, regra, norma que fundamente tais acusações. Não há!

- A Srta. vai insistir na Justiça tradicional? Fique à vontade. Os tribunais estão aí: entra-se e sai deles com toda a facilidade do mundo. A Srta. também pode recorrer a um deles. Tudo o que irá encontrar é poeira, ratos e teias de aranha. Com sorte, uma ou outra múmia aguardando sua aposentadoria. Nenhuma estará interessada em ouvir suas histórias, e ainda que estivesse, nenhuma delas irá livrá-la do julgamento da internet.

Ana Maria raciocinava a mil. Tentava controlar-se, mas era difícil:

- Me atacam sem qualquer tipo de reflexão ou questionamento. A execração veio antes da culpa. Sou culpada unicamente porque fui execrada!

- E os ditadores do século XX achavam que estavam fazendo um bom trabalho, hein?! – redarguiu o senhor, pela primeira vez em tom jocoso, ensaiando um sorriso no canto da boca.

Ana Maria sentia-se cada vez mais desamparada. Ao passar os olhos por tantos comentários enfurecidos, raivosos e sarcásticos, teve ânsia de desmaiar. Como era possível que ela, uma simples estudante nos seus vinte anos, que não saía, não dava entrevistas e não tinha pretensões a qualquer tipo de fama, da noite para o dia se metamorfoseasse em alvo de tantas e tantas atenções? Os tempos mudaram. Hoje, vira-se estrela num piscar de olhos, para o bem ou para o mal. A velocidade das informações atingiu níveis nunca antes vistos.

Enquanto refletia sobre isso, Ana Maria se deu conta de que o senhor desaparecera. Ela também precisava ir. Estava atrasada para o estágio. Ao abrir a porta de seu quarto, deu com seus familiares reunidos na sala em tom fúnebre. Sua chegada não causou o menor abalo no ambiente. Era como se já esperassem a garota. Era como se todos quisessem dizer alguma coisa, mas ninguém tivesse a coragem de começar. Diante do impasse, Ana Maria deu de costas e foi tomar banho. Já havia sido suficientemente humilhada na internet. Aproveitando o ensejo, seu pai, que desde o início mal conseguia controlar seu tremor, foi tomado por um impulso irrefreável e disparou a emitir impropérios contra a filha:

- É um absurdo! É lastimável! É repugnante e asqueroso tudo isso! Como pode ser?!

Ana Maria virou-se na tentativa de se defender, mas antes que desse por si caiu em lágrimas. O pai continuou, furioso:

- Quando me separei de sua mãe, fiz o possível e o impossível para que você continuasse sendo a menina que nós criamos desde a infância, para que continuasse recebendo tudo do bom e do melhor, inclusive muito amor, educação e respeito! Olha só o que você fez! Estragou tudo!

- Você passou dois anos e meio sem dar notícias nem pagar pensão, Rogério – interrompeu a mãe, mas foi ignorada.

- Acha certo uma moça de família agir assim dessa forma? Acha certo uma menina educada, que nunca sofreu qualquer tipo de privação material ou espiritual, desonrar assim a sua família que sempre te acolheu nos seus momentos de dificuldade? Acha justo fazer uma sem-vergonhice dessas e ainda espalhar para toda a cidade, para todo o mundo ver? Eu aposto que isso é má-influência daqueles gays com quem você anda na faculdade! Por isso não os queria aqui no seu aniversário.

- Você perdeu a virgindade com quinze anos num puteiro, Rogério – interrompia novamente a mãe. O pai seguia impávido:

- E agora, o que é que eu vou falar no trabalho? O que é que vou falar na minha roda de amigos? O que é que vou falar na igreja? O que, Ana Maria? Me diz, o que?!

O pai quase veio às lágrimas, mas não podia demonstrar fraqueza. Ana Maria chorava copiosamente. Já não se importava mais em refletir se sua atitude, gravada em vídeo e amplamente divulgada em todas as esferas, era moralmente aceitável ou não. Sua família estava contra ela, e era isso o que importava.

- Sabe o que você é? É uma ingrata! Isso sim... É uma ingrata! Depois de tudo o que sempre fizemos por você, você nos retribui desse jeito! Não sente vergonha?

- Você não demonstrou o menor pudor quando te peguei me traindo com sua aluna, Rogério – manifestou-se a mãe novamente. O pai não descansava:

- Tá todo mundo vendo a merda que você fez nos computadores e celulares! Todo mundo!

- Eu já te peguei vendo pornografia de adolescentes no seu celular, Rogério – emendava novamente a mãe.

O pai, que até então estivera indiferente às intervenções da mãe, dessa vez reagiu. No ápice de sua fúria, pegou uma maçã da fruteira e atirou-a contra a filha, embora, em seu coração, o alvo fosse a ex-mulher. A maçã acertou em cheio a nuca de Ana Maria, que corria para seu quarto, e deixou-lhe uma marca roxa. Tão logo se trancou no quarto, outro objeto, dessa vez sinceramente dirigido à moça, acertou o canto superior direito da porta. Era a estatueta de bronze que o pai havia jogado.

Estavam todos desolados.

Ana Maria não foi para o estágio. Passou o dia trancada em seu quarto, pois sabia que se saísse de lá seria novamente agredida. O movimento na casa da jovem foi intenso. Seu pai, que raramente aparecia, não foi embora naquele dia. A cada vez que resolvia encostar o ouvido na porta escutava sua voz, embora fosse incapaz de distinguir o que ele dizia.

Naquele dia, Ana Maria não tomara café nem almoçara. Também não foi para a aula à noite. E ainda bem, porque, segundo os informes que recebia em seu celular, todos na faculdade já estavam sabendo. Houve até quem procurasse a menina em sua sala para poder importuná-la. Apenas quando o relógio anunciou oito da noite foi que a fome começou a perturbá-la com força. Não sabia como reagir. Abriu cuidadosamente a porta de seu quarto, apenas o suficiente para ver se havia condições de ir à cozinha, pegar uma fruta e logo voltar ao recolhimento. Quando ia terminar de abrir a porta para colocar seu plano em prática, foi surpreendida por seu irmão mais novo que surgiu de repente e balbuciou algumas palavras. Ana Maria fechou a porta de sobressalto, trancou-a duas vezes e caiu sentada no chão. Saciou um pouco da fome com alguns biscoitos que guardava em seu armário. Adormeceu pouco tempo depois.

Acordou, no dia seguinte, com alguém batendo à porta. Quem quer que fosse, já deveria estar batendo há algum tempo. As batidas finais expressavam resignação. Alguns minutos depois, alguém jogou uma marmita de comida pela janela. A marmita bateu no estrado da cama e se espatifou no chão, mas a menina devorou o conteúdo com gosto. Sentia muita fome. Chegada a hora do almoço, o ritual se repetiu. Com o ouvido esquerdo pregado à porta, a menina conseguiu captar alguns trechos da conversa de seus familiares na mesa do almoço. Eles instruíam o irmão caçula a não caçoar da irmã e a não se aproximar dela. Diziam que ela precisava descansar, que estava muito exausta, e que por enquanto era melhor deixá-la em paz.

O irmão mais velho concordava com tudo e lembrava a todos na mesa que eles possuíam parentes distantes que moravam numa cidade em outro estado, e que talvez pudesse ser uma boa ideia mandar a menina para lá. A ideia não agradava à mãe. Ela só foi convencida de que aquele era o melhor caminho a seguir depois de muita confabulação com o filho e o ex-marido. Num dado momento, os tons de voz se tornaram mais baixos e Ana Maria não conseguiu mais identificar o conteúdo dos diálogos.

Foi nesse momento que o senhor da manhã anterior apareceu novamente, sentado na beirada da cama da moça e mirando-a fixamente, como se estivesse a aguardá-la para um compromisso com data e hora marcada da qual ela já deveria estar ciente. Assim que Ana Maria sentou-se à frente do computador, o senhor não fez cerimônia:

- Hoje vou te mostrar sua defesa. São essas pessoas aqui, com fotos coloridas no perfil e óculos de armação grossa que gostam de fazer abajur de garrafa pet, aplaudir o nascer do sol, comer tofu e frequentar shows de bandas idiotas com nomes toscos que ninguém conhece.

- E por que são eles a minha defesa?

- Porque não sobrou mais ninguém.

- Como irão me defender?

- Com longos textos amplamente compartilhados nas redes sociais, carregados de reflexões, questionamentos e ponderações, com amplo embasamento teórico.

- Parece uma boa defesa.

- Não é.

- Não?

- Definitivamente não. Seus textos são compridos e complicados de entender. Pouquíssimos são os que os leem até o fim. Desses poucos, uma parcela ainda menor consegue compreendê-los e dentro dessa parcela minoritária, uma porção ainda mais ínfima concorda com eles.

- Não há mais ninguém para me defender?

- Sua família está contra você, Ana Maria. Você não está em posição de decidir quem advoga em sua causa.

A moça baixou a cabeça com um olhar reflexivo.

- Continuando – prosseguiu o senhor –, devo alertar de que minha função aqui não é protegê-la ou atacá-la. Fui enviado com o único intento de ajudá-la a entender o funcionamento do processo ao qual está sendo submetida.

Naquele momento, Ana Maria explodiu:

- Pare de falar em processos! Não cometi crime algum. Isso está tudo errado! Estão todos se voltando contra mim sem motivos. Estão todos errados! Assisti a esse vídeo duas, três, oito vezes, e quanto mais o assisto mais convicta estou de minha inocência. Hoje mesmo vou sair e dar um jeito nisso. Não pode ficar assim.

A jovem ameaçou mais uma vez romper em lágrimas, mas dessa vez resistiu. Estava convicta de sua inocência, isso era fato. Não era apenas força de expressão. O senhor assistia ao protesto de Ana Maria incólume. Quando ela já parecia se acalmar, ele disse:

- Vai sair para dar um jeito nisso? Com quem vai falar? As pessoas que te acusam e defendem estão todas aqui no mundo virtual. Sair por aí à cata delas é inútil. Precisaria rodar literalmente o mundo inteiro para alcança-las e não temos muito tempo.

- Não posso seguir confinada nesse quarto. Já não aguento mais. Quero minha vida de volta.

Enquanto Ana Maria desligava o computador e o celular para evitar ser molestada, o senhor desapareceu. Ela mal deu com seu sumiço. Queria sair do quarto, tomar um banho, vestir novas roupas e tomar um ar. Não podia ser prisioneira sem um crime pelo qual pagar. Abriu a porta do quarto e deu de cara com o pai ajudando o filho mais novo com a lição de casa na mesa da sala. Ao ver a filha, o pai puxou o filho pelo braço, tapou seus olhos e mandou-o para o quarto. Ana Maria permanecia imóvel à porta do quarto, encarando o pai, que a olhava com seriedade.

- Aonde vai?

- Viver.

- Espere até que as coisas se acalmem.

- A única pessoa aqui que tem direito a exigir um pouco de calma sou eu. Estou definhando desde ontem de manhã.

O pai tentou contemporizar, mas Ana Maria estava decidida. Tomou um banho, vestiu sua roupa e saiu. Sua caminhada pela cidade, no entanto, foi sofrível. Os lojistas não a atendiam, os ônibus não paravam para ela entrar, as pessoas com quem tentava falar a ignoravam e as igrejas fechavam as portas sempre que a avistavam. Os jovens saindo das escolas praguejavam contra ela e, entre as senhoras que se reuniam na praça no final da tarde, grassava um burburinho infernal sempre que ela passava.

Chegando em casa ao final do dia, Ana Maria foi recebida com desespero pela sua mãe:

- Minha filha! Onde esteve? Por onde andou? Estamos ligando no seu celular o dia todo.

- Desliguei meu celular, mãe. Não aguento mais tanta gente me importunando.

- Mas minha filha! Você já se expôs demais... Não pode continuar se expondo assim nas ruas. Precisa ficar aqui em casa, pelo menos até que tudo volte ao normal.

- Sua mãe e eu estamos tentando superar nossas diferenças para te ajudar, Ana Maria. Por favor, não dificulte.

- Eu não fiz nada do que deva me arrepender! E vocês, que deveriam querer apenas o meu melhor...

- Mas nós queremos – adiantou-se a mãe.

- ...vocês estão contra mim assim como todo o mundo. Eu não mereço isso, ninguém merece!

Antes que a mãe pudesse consolá-la, Ana Maria trancou-se em seu quarto. Teria sido má ideia sair de casa? Talvez. Talvez fosse melhor escutar seus pais e ficar reclusa até que a poeira abaixasse e os dedos julgadores também.

Os dias que se seguiram transcorreram calmamente. Ana Maria decidira permanecer encerrada em seu quarto. Não queria sair para ser exposta a novas humilhações. Seus pais e o irmão mais velho decidiram barrar qualquer nova tentativa da moça de sair. Fizeram até uma escala para que sempre houvesse, a qualquer hora do dia e da noite, alguém a guardar a porta. Mas como Ana Maria abandonara a ideia de sair, pouco trabalho tiveram.

Demorou um pouco até que a moça fosse lentamente readmitida nos demais cômodos da casa. Em algumas semanas ela até já estava comendo na sala, junto com o resto da família – exceto com o irmão caçula, que sempre era mandado para a casa de avós, tios ou amigos minutos antes de Ana Maria sair do quarto. Os pais não queriam correr o risco de expor o filho de apenas onze anos a influências perniciosas. Com alguns meses, Ana Maria já era readmitida até nas reuniões familiares, embora seu contato com os primos mais novos fosse interditado pelos motivos acima referidos. Além disso, apenas alguns dos familiares aceitavam a moça em suas casas. Havia tios e primos que nem com muita negociação cediam e raramente compareciam às reuniões em que Ana Maria estivesse presente.

Ana Maria também retomou sua rotina original de aulas na faculdade. O alvoroço inicialmente criado em torno da jovem foi rapidamente dissipado por medidas duras por parte do reitor. A jovem finalmente conseguiria voltar a estudar em paz. Especialmente agora que até seus amigos da faculdade a haviam abandonado, horrorizados que estavam com seu comportamento reprovável. Ela chegava sozinha, lanchava sozinha, estudava sozinha e ia embora sozinha. Sempre em paz. No estágio não foi muito diferente.

Demorou algum tempo até que o senhor que a auxiliava em seu processo fizesse nova aparição. Quando, em uma noite quente, ele finalmente reapareceu, foi apenas para sanar as dúvidas que a jovem ainda pudesse ter sobre o desenrolar do processo. Ana Maria aproveitou o ensejo para perguntar-lhe sobre suas penas, caso fosse condenada. O senhor riu:

- Penas? Que penas, Ana Maria?

- Caso eu realmente seja considerada culpada nesse processo... O que pode me acontecer?

- Você já é culpada, Ana Maria. Desde o começo, você sempre foi culpada. As leis da internet são muito mais dinâmicas e eficientes. É um mundo novo esse em que vivemos: as informações chegam mais rápido, os veredictos também. Da noite para o dia torna-se celebridade, e também da noite para o dia se é julgado. Ninguém mais tem tempo para longos processos que se arrastam por anos e anos. As pessoas querem conclusões rápidas. Quanto menos reflexão melhor. Roubou? Bandido. Fumou? Drogado. Transou? Puta. Filmou? Mais puta ainda.

- Mas isso é cruel!

- Cruel? Não conheço nada mais humano. Sua integridade física permanecerá inviolável. Todas essas pessoas continuarão a praguejar e maldizer seu nome, talvez por muitos e muitos anos ainda, mas nenhuma delas irá te tocar. Você não será presa, não sofrerá castigos físicos, não será torturada nem precisará enfrentar longas sessões judiciais. Há milhares de pessoas ao redor do mundo que já te condenaram, mas ainda assim você continuará livre, já que nenhuma dessas milhares de pessoas tem o poder de te colocar na prisão. A internet humanizou a justiça: tornou as coisas mais rápidas e menos doloridas. Num estado de barbárie, as desavenças são resolvidas em duelos ou emboscadas: quando você menos espera, alguém te mata. No Estado de direito, tais desavenças são solucionadas recorrendo-se a instâncias superiores e, caso seja julgado culpado, o réu é punido dentro dos limites da lei. Por fim, o mundo virtual é o coroamento do processo civilizador: não será morta, não será presa, não será agredida. Será apenas difamada nas redes sociais. Nada que te impeça de ir e vir.

- Mas... Mas e a minha defesa?!

- Sua defesa consiste em um bando de esnobes arrogantes que ninguém tem saco para ouvir, muito menos para ler.

- Ora essa! Mas e...?

- Agradeça por ter nascido nesses novos tempos, Ana Maria! Há algumas décadas atrás você certamente estaria em situação muito pior. Você foi condenada por um vasto tribunal por pessoas das mais diferentes classes, profissões, idades e origens, e ainda assim pode continuar frequentando suas aulas, estagiando, comendo fora e desfrutando da companhia de seus familiares sem sequer precisar de uma tornozeleira eletrônica. Ontem mesmo você esteve naquele jantar na sua avó. Quando, em toda a história da humanidade, se poderia imaginar uma coisa dessas?

- É claro que não preciso de uma tornozeleira eletrônica. Quem precisa de uma tornozeleira eletrônica quando se tem milhares de grandes irmãos espalhados por aí pra me monitorar, não é mesmo?

A jovem pronunciou essas últimas palavras num tom de voz tão seguro de si que o senhor, pela primeira vez desde o início de seus encontros, dera mostras de estar acuado. Tanto que apenas limitou-se a dizer:

- Meu trabalho termina aqui. Como já lhe disse: não estou aqui para proteger ou para condenar, apenas para esclarecer.

Ana Maria teve repulsa. Apesar de nunca ter simpatizado com a figura daquele senhor, pela primeira vez sentia ânsia de agredi-lo, espancá-lo, talvez até de esfaqueá-lo. Caiu desolada em sua cama e cerrou os olhos de exaustão – tempo suficiente para que o senhor desaparecesse. Ao sair de seu quarto para tomar uma água e se acalmar, deu com seus primos e o irmão menor brincando na sala. Seu tio também estava lá. Ao ver a jovem, interrompeu a leitura de seu jornal e orientou os filhos e sobrinhos:

- Já para o quarto!

Como as crianças não demonstrassem interesse de sair, essa ordem foi reafirmada com ainda mais vigor mais duas ou três vezes, até que todos se fossem e a sala se esvaziasse, restando apenas Ana Maria e seu tio, que disse:

- Nós já temos a solução.

- Para o que?

- Para você.

- Problemas precisam de solução. Não sou um problema.

O tio ignorou esta última frase e prosseguiu com seriedade:

- Você vai para a casa do meu primo no interior, onde a internet ainda é pouco difundida e lenta e as pessoas provavelmente ainda nem sabem das suas aventuras.

- Aqui eu tenho estudos, tenho estágio, tenho amigos.

- Lá vai poder trabalhar e continuar seu curso à distância. Eu e sua mãe já acertamos todos esses detalhes. No seu novo emprego vai ganhar um salário ainda melhor que o de estagiário, com a diferença de que estará vivendo em uma localidade com custo de vida muito menor.

Ana Maria ouvia o tio atentamente, mas balançava a cabeça num sinal de desdém.

- Quanto aos seus amigos, sejamos realistas. Esses te abandonaram há muito tempo. Já dizem por aí que ninguém mais fala com você na faculdade nem...

- Vocês também estão me abandonando!

- Queremos o seu melhor, minha filha! – adiantou-se a mãe, que até então observava tudo de seu quarto em silêncio.

- Eu não quero, eu não vou a lugar algum! Condenam-me por um crime que nunca cometi. Não sentem vergonha de si mesmos?

- Você vai sim – interrompeu o pai, que apareceu atrás de Ana Maria. Conforme seu tio disse, já está tudo organizado. O caminhão de mudanças chega amanhã pela manhã. Peço mais uma vez sua compreensão, Ana Maria. É tudo sempre pelo seu bem.

A jovem entrara em desespero. Olhava para seu tio sério, para sua mãe aflita, para seu pai decidido. Não via um aliado em nenhum deles. Não podia contar com ninguém ali. Foi quando avistou o irmão mais velho a retirar as coisas do quarto dela e colocá-las próximas à porta.

- O que está fazendo?! – berrou a jovem.

- Não precisa me ajudar. Eu me encarrego de tudo. Apenas sente-se e descanse. O jantar já vai ser servido.

Sua mãe tentou conduzi-la para a poltrona, mas a jovem resistiu:

- Não! Vou embora. Não mereço isso... Nunca mereci.

Tentou desesperadamente abrir a porta, mas estava trancada e com uma fechadura nova. Saiu então pela porta dos fundos, na cozinha, aos berros do pai que ordenava seu retorno, da mãe que clamava aos céus e do tio, que apenas dizia: “Deixa-a ir, logo mais ela volta!”.

Entre exilar-se por um crime que nunca cometeu e sair pelo mundo sem rumo, Ana Maria fez sua escolha. Saiu correndo na noite mal iluminada pelas luzes dos bordéis que se proliferavam e pelos cigarros acesos dos pais de família que os frequentavam. Nunca mais foi vista por aquelas bandas. A família nutria esperanças de que voltasse após alguns meses, mas ela nunca voltou. A diretoria do lugar em que a jovem estagiava mandou vários e-mails ameaçando desliga-la caso ela não retornasse às atividades imediatamente. Seu chefe demonstrava solidariedade e dizia que o comportamento abusivo da moça não iria interferir na relação entre ela e a empresa, que era estritamente profissional. Ao mesmo tempo, porém, instou-a a apressar-se porque eles dependiam muito do trabalho dela. Na faculdade se deu coisa semelhante. À medida que os meses passavam e ela não comparecia às aulas, ia sendo sumariamente reprovada, até chegar o momento em que foi reprovada por falta em todas as seis disciplinas. A faculdade também lhe enviou um e-mail para comunicá-la. No celular de Ana Maria, que caíra no meio da rua enquanto a jovem fugia, esses e-mails eram apenas algumas poucas notificações entre centenas de outras a assediá-la e a reprová-la por mais essa atitude lamentável de abandonar sua família.

Decorridos seis meses de sua fuga, o quarto de Ana Maria foi transformado em quarto de despejo pelo pai, que voltara a morar com a mãe, embora ainda oficialmente divorciados. Na família, as coisas foram progressivamente voltando ao normal, até que já não mais se tocasse no assunto nem mesmo em conversas mais reservadas. Um ano e dois meses após o vazamento do vídeo de Ana Maria, outra menina da cidade foi flagrada em vídeo cometendo crime semelhante. Era o suficiente para que Ana Maria fosse esquecida de vez e sua família voltasse a ter a paz que tanto almejara.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Passeando por Belo Horizonte em uma tarde esturricante do penúltimo domingo de setembro de 2012

Cidade planejada de republicanos sonhos
Que a Monarquia sepultaram em cova rasa
Como o atestam os olhares tristonhos
Do busto de Pedro diante da Casa

Da tarde, quase uma hora
Raios fortes sobre o asfalto
O sol a pino chora
E do desencanto vira arauto

Quente, muito quente
Brasa, cinzeiro, lava
Chamusca o sol no horizonte
Secura, cansaço, falta d’água

Despede-te de tuas quimeras, rapaz!
Foram-se todas embora
A neve, que em nossa janela caía assaz
Amacia lábios que te bendisseram outrora

E aqui o cerrado

Como Roma na Europa de Dante
Como Moscou nos anos 50
O palácio do Azul Mirante
É aquele que te orienta

Não sonhe, não ouse, não voe
Sem antes consultar o Azul Mirante
Não sorria, não ame, não louve
Sem ordens do palácio distante

A tarde segue incessante, traiçoeira
Chicote de fogo a nos queimar a rabeira
É a hora terceira, o relógio anuncia
Triunfa a barbárie! O amor silencia

Calçada quebrada, rachada de sol
Asfalto impávido, bonito e formoso
Cai sobre os carros macio lençol
E sobre os pedestres, roldão furioso

Edifícios, concreto, vidro espelhado
Refletem a imagem de moça e curral
Quem ousa espiar fica envergonhado
Pois vê apenas sua cara de pau

Um shopping center desponta ao longe

Oásis de ar-condicionado
Miríade de sonhos e oportunidades em aberto
Alívio imediato a quem vem cansado
Triste cilada a quem se sente incompleto

Non plus ultra, fim da História
Não há mais para onde ir
Só no Mirante Azul há vitória
Sê sempre fiel, sem transgredir

Já passa das quatro

Grito! Ouço um grito... Sarcástico e irônico
Berros de arranhar a garganta
Olhar tímido, medo crônico
Tomba-me a cabeça, não mais se levanta

Erguida em nome da res publica
Que o Império abalou de um golpe certeiro
De Cícero a Franklin se lamenta e suplica
Pois aqui a Ideia encontrou seu coveiro.