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sábado, 25 de fevereiro de 2012

Conclusões de Augsburg

“Sete anos depois de 2004; quatro anos depois de 2007: nada se repete”.

Certa vez, já na segunda metade do século XX, perguntaram ao então primeiro-ministro chinês Zhou Enlai qual teria sido a importância da Revolução Francesa para a humanidade, ao que ele respondeu: “acho que ainda é cedo demais para respondermos a essa pergunta”. Quem me contou esse caso foi um professor no primeiro período de Relações Internacionais. Fiquei com ele na cabeça pelos anos que se seguiram, mas nunca mais ouvi falar a respeito, o que me levou a duvidar da sua veracidade. Até que no mês de janeiro, lá pelas últimas semanas de aula, um professor meu daqui de Augsburg contou-o novamente. Dessa vez ele pareceu fazer ainda mais sentido do que da primeira vez em que o ouvi.

Logo, o título dessa postagem perde desde já o seu valor. A última coisa que eu poderia fazer nesse momento seria tirar conclusões do meu intercâmbio. Eventos de extrema significância demandam muito tempo até serem plenamente compreendidos. Por isso admiro os historiadores mais do que outros profissionais das Humanas, pois que eles não se apressam a tirar conclusões no calor dos acontecimentos. As conclusões que tiramos apressadamente podem ser até engraçadas de tão enganosas. Lembro-me bem que poucos dias antes de voltar da Malásia, ao conversar com uma amiga ao telefone, disse a ela que eu não havia mudado praticamente nada naqueles doze meses, e que iria voltar ao Brasil da mesma maneira como o deixei. Ela disse pra eu ter paciência, pois com o tempo eu iria perceber o quanto aquela experiência me mudou. Nada mais real. Sinto-me revolucionado por aquele intercâmbio cada dia da minha vida, sem exceção, desde aquele mês de junho de 2005 quando retornei ao Brasil. Não consigo, de forma alguma, de jeito algum, por maior esforço de imaginação que eu faça, enxergar como seria minha vida sem esse intercâmbio.

O máximo que posso fazer nesse momento, a apenas três dias de retornar ao Brasil, é um esforço para compreender esses cinco últimos meses, mas com a plena consciência de que muito em breve ele será superado.

Cheguei aqui em uma tarde do dia 5 de outubro de 2011. Desde então, foram 148 dias (mais três pela frente) habitando, estudando, viajando e crescendo em terra estranha. Lugares sobre os quais já tinha aprendido na escola e na faculdade, lido nos livros, visto nos documentários, estiveram ali diante dos meus olhos ao longo desses quase cinco meses. Não que isso nunca tivesse me acontecido antes. Um ano na Malásia foi uma aventura tão grande quanto esses cinco meses na Europa. A experiência não mudou, quem mudou fui eu. A Alemanha me revelou muito mais o que aprendi na Malásia do que na própria Alemanha (e creio que só um outro intercâmbio iria me mostrar de fato o que aprendi aqui). Após cinco meses na Alemanha, finalmente pude compreender o que a Malásia me ensinou há oito anos atrás. E o que foi que ela me ensinou? Basicamente três coisas: ela me ensinou quem eu sou; ensinou-me a ser quem eu sou; e me ensinou a não ter vergonha de ser quem eu sou. E mais uma quarta coisa: ensinou-me a nunca depositar minhas esperanças no porvir, a não viver de futuro, esperando que um dia lá na frente tudo irá melhorar. Logo, o grande diferencial entre ambos os intercâmbios não foi o país, o continente, a comida e as pessoas: fui eu mesmo, pois que pude aplicar todo esse aprendizado aqui e enxergar esses lugares por onde passei com outros olhos. Não mais aqueles olhos imaturos e desinteressados que viram a Malásia, mas olhos atentos e questionadores. É senso-comum acreditar que à medida que envelhecemos vamos perdendo o interesse pelas coisas. No meu caso, porém/felizmente, foi justamente o contrário e isso é extremamente gratificante.

Poucos conhecem os antecedentes desse intercâmbio. Penso que, se a Alemanha fosse uma mulher dando em cima de mim, certamente ela mereceria algo melhor.

Em 2003, ao ser selecionado pelo programa de intercâmbio de jovens do Rotary, pude escolher entre 5 países, entre os quais figuravam a Alemanha e a Malásia, e minha preferência foi pela última. Sete anos depois, em minha primeira tentativa de seleção para o intercâmbio da UFMG, eu falhei por não ter passado no teste de proficiência. Quando tentei pela segunda vez, nas vagas remanescentes, por muitas vezes duvidei se era aquilo mesmo que eu queria. Já tinha um ótimo estágio na minha área, ganhava bem, era feliz com meu curso e podia até apertar o passo para formar mais cedo. A ideia do intercâmbio nunca foi unanimidade dentro da minha cabeça. Novamente fiz o exame de proficiência e melhorei dez pontos, mas ainda fiquei longe do exigido pela universidade daqui. Na entrevista, porém, saí-me muito bem, apesar de não saber. Um belo dia, enquanto mexia bem à toa na internet, resolvi olhar, por pura curiosidade, logo antes de desligar o computador, o resultado da seleção para o intercâmbio. Foi aí que descobri que havia ficado em primeiro lugar na entrevista. Fui até a Diretoria de Relações Internacionais saber como é que ficava a minha situação, e eles me disseram que eu havia recebido um e-mail informando-me acerca da reunião de preparação para intercambistas. Disse a eles que eu desconhecia tal e-mail, e eles me disseram que haviam me enviado para o endereço do Hotmail, que eu raramente abro. Fui olhar e realmente estava lá a mensagem sobre a reunião que aconteceria, se bem me lembro, dali a menos de uma semana. A reunião era compulsória e o não comparecimento sem justificativa acarretava eliminação do programa de intercâmbio. Ou seja: se eu não tivesse olhado o site com o resultado da seleção não teria ido até a DRI, não teria lido esse e-mail, não teria ido à reunião e consequentemente não estaria aqui agora na Alemanha.

Nesse meio tempo recebi um e-mail falando que eu ganhara uma segunda chance de fazer um exame de proficiência, o da pós-graduação, haja vista meu bom desempenho na entrevista. Arrastei-me de má vontade para estudar para essa prova. Não sei por que, fui tomado por uma profunda indiferença frente a esse intercâmbio. Bem lá no fundo eu queria ir, mas não sabia se realmente estava disposto a me esforçar para tal. Contrariando minhas próprias expectativas, tive um excelente desempenho nesse exame, e enfim poderia me considerar selecionado. Não foi bem assim. O exame da pós testa apenas a capacidade de leitura e interpretação de textos. Ainda tive que voltar à FALE e fazer outra prova, dessa vez pra testar meus conhecimentos de escrita. Estudei com mais afinco dessa vez e finalmente passei. Por pouco eu não fico de fora.

Assim, isso foi meu intercâmbio: produto de um estranho amálgama de aspectos voluntários e involuntários.

Do que sentirei saudades? Muitas coisas, mas nenhum clichê. Os brasileiros têm uma visão fetichizante da Europa que chega a beirar o cômico. Acham que aqui tudo é melhor, as pessoas são mais educadas, o país é mais limpo, a mentalidade mais desenvolvida, mas asseguro que muito disso é mentira. Em primeiro lugar: europeus jogam sim lixo no chão. O ponto de bonde da minha universidade era infestado de milhares de bitucas de cigarro ao seu redor. Várias vezes em que entrei no elevador daqui da moradia tive o desprazer de pisar num chão todo melecado de cerveja. Sem contar as vezes em que entrei no elevador e encontrei, jogados no chão, um pote de sorvete pingando, uma garrafa de cerveja, um pé de sapato e até um osso de frango.

Em segundo lugar: europeus podem sim ser inconvenientes. Perdi as contas de quantas vezes eu estava estudando na biblioteca e um grupo de alunos começou a conversar em voz alta, mesmo o funcionário da biblioteca estando ali do lado. Na UFMG, os cochichos na biblioteca quase sempre são seguidos por alguém fazendo um “shhhhh!” a toda altura, ou mesmo pela intervenção de um funcionário pedindo silêncio. Nunca vi, porém, na biblioteca da Universidade de Augsburg, nenhum aluno ou mesmo funcionário pedir silêncio a um grupo barulhento.

Em terceiro lugar: europeus nem sempre são educados. Sempre que ando de ônibus em Belo Horizonte vejo ao menos uma pessoa ceder o lugar a um passageiro idoso. Aqui, porém, várias vezes vi idosos em pé no bonde enquanto jovens ficavam sentados. E por fim: não é só no Brasil que os jornais estampam notícias trágicas com uma mulher seminua na capa. Aqui, um dos jornais populares de maior circulação traz sempre uma mulher nua – literalmente – na capa. Muitos brasileiros leem certas notícias e lamentam: “é só no Brasil mesmo que isso acontece”. Pois não é que, mais ou menos ao mesmo tempo em que houve um escândalo em Lavras de um freguês que achou algumas larvas – com o perdão do trocadilho – dentro do pão dos supermercados Rex, aqui aconteceu algo parecido com uma grande cadeia de padarias? Em uma das filiais os pães eram estocados em meio a muita sujeira: tinha desde poeira até fezes de rato.

Então, não é só no Brasil...

Enfim, essa velha ladainha de achar que na Europa tudo é bom e no Brasil tudo é uma droga é, na minha opinião, só mais um dos elementos que contribuem para que o Brasil continue sendo essa droga. Os europeus não alcançaram o alto padrão de vida que têm hoje desprezando seus próprios países e babando ovo do progresso alheio.

Se estou feliz? Sim, muito. Não só com esses cinco meses que passei aqui, mas principalmente pelo fato de que irei voltar. Sinto saudades do Brasil, do meu ambiente de trabalho e de estudos. Sinto falta de entender plenamente as aulas e poder contribuir com as discussões em sala, de entender os textos e lê-los com mais desenvoltura, sem precisar da ajuda de um dicionário. É claro que melhorei bastante meu alemão, principalmente a leitura, mas sempre ficava com temor de me intrometer nos debates daqui.

Agora meu quarto vai ganhando, aos poucos, a aparência amorfa que ele tinha quando cheguei; a mesma aparência de quando, naquela noite de 5 de outubro, olhei ao meu redor e senti-me ainda mais vazio do que ele, sem saber direito o que eu estava fazendo aqui e se realmente eu deveria estar aqui. Aos poucos ele vai voltando ao seu estado original, pronto para receber seu próximo inquilino. Hoje despachei pelo correio algumas coisas que não irão caber na minha mala. Irei doar minhas blusas de frio. Deixarei aqui também a maioria dos livros que comprei por dez centavos. Eles são pesados demais pra carregar na mala e pagar 75 euros de excesso de bagagem iria fazer o barato sair caro demais. Também vou me despedindo das pessoas que conheci aqui, agradecendo pelos bons momentos, ponderando “se” e “quando” voltaremos a nos ver. Sexta, na universidade, encontrei por acaso meu professor em duas disciplinas. Ele agradeceu-me pela estadia, disse que foi um prazer, desejou-me sucesso e eu prometi traduzir minha monografia e enviá-la a ele no fim do ano, ao que ele de imediato concordou. Hoje me despedi de meu tutor. Dei a ele alguns dos livros que não poderei levar e ele me deu uma pequena bandeira alemã assinada com uma mensagem de agradecimento e sucesso.

Os outros intercambistas também estão no mesmo clima. Todos postando no Facebook mensagens de despedida. Quinta-feira mesmo teve uma grande festa de despedida dos estudantes estrangeiros em uma boate daqui à qual orgulhosamente não compareci. Passar o semestre inteiro recusando convites de festas para depois me despedir com uma festa seria no mínimo contraditório.

Estarei chegando ao Brasil em um dia peculiar: 29 de fevereiro. Só o que eu suplico de joelhos a vocês é que por favor, não venham me irritar com perguntas do tipo: “Marcelo, por que você não visitou tal lugar? Marcelo, por que você não conheceu tal cidade? Marcelo, por que você não viajou pra tal país?”. Gostaria de lembra-los de duas coisas: eu não fiquei aqui por um ano, e sim por cinco meses; e eu não vim aqui a turismo, e sim como estudante. Por isso precisei, dentro desses cinco meses, conciliar minhas viagens com os meus estudos (que, por serem em uma língua estrangeira, requeriam obviamente dedicação redobrada). Sendo assim, precisei traçar prioridades, o que significa que tive que dar preferência a certos lugares em relação a outros. Tendo em vista tais limitações, acho até que consegui conhecer muitos lugares sem ter comprometido em nenhum momento os meus estudos: estive em seis países (Alemanha, Holanda, Áustria, Eslováquia, Hungria e Liechtenstein) e dezessete cidades, além de ter tirado boas notas!

Não me venham também com tiradinhas irônicas do tipo: “Mas você conheceu a Eslováquia e não conheceu a França?! Você conheceu Liechtenstein e não conheceu a Itália?!”. Não, eu não conheci a França, nem a Itália, nem a Espanha e em hora alguma fiz questão de conhecê-las. De uma pessoa que, aos quinze anos de idade, preferiu um ano na Malásia a um ano na Alemanha ou no Canadá, não se poderia esperar outra coisa.

E, ao contrário do que você possa pensar, esse não é um texto de despedida. Muito pelo contrário. Quase todo mundo que lê esse blog está no Brasil, e é justamente para lá que estou indo agora. Além disso, assim como esse blog não nasceu por causa do meu intercâmbio, ele também não irá morrer com o fim dele. Seguirei postando aqui sempre que me vierem ideias à cabeça. Talvez com menos frequência do que nesses cinco meses, mas não com menos dedicação. Agradeço, do fundo do coração, a todos aqueles que leram meus textos ao longo desse período: aos conhecidos e anônimos, aos que comentaram e aos que apenas leram, aos que leram todos e aos que leram apenas alguns. Agradeço aos leitores de Vitória e Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, aos leitores de Atlanta e outras regiões dos Estados Unidos – os quais não faço sequer ideia de quem possam ser, mas que quase sempre apareciam no contador de visitas ali em cima. A todos meu muito obrigado, e àqueles que irei encontrar na semana que vem ou no mês que vem, até breve!

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Confissões de Augsburg - a ofensiva final

As semanas após meu vigésimo-quarto aniversário foram bem tranquilas. O final de semestre aqui tem ocupado todos com trabalhos e provas, de modo que meus contatos com outras pessoas, que já foram raros ao longo do semestre, escassearam ainda mais. No dia 31 de janeiro tive minha prova de alemão; foi minha melhor nota até aqui, como já era de se esperar. Dia 10 de fevereiro foi a vez da prova oral de “Temas de pesquisa em nacional-socialismo”. Também bem tranquila, embora eu estivesse bastante tenso.

Nesse mesmo dia 10, logo após a prova, fui até um local que ficava a umas cinco estações de distância da universidade, uma espécie de feira de produtos usados que reunia de tudo: desde roupas e vasos até vinis e livros. Não entendi muito bem, mas acho que o dinheiro arrecadado é revertido para caridade. Acontece que nessa sexta estava tendo uma promoção: todos os livros (sem exceção) por apenas 10 centavos! Fiz questão de aparecer para dar uma olhada. Geralmente eu passo a quilômetros de distância das prateleiras de livrarias com livros em desconto, pois geralmente só tem coisa trash. Mas dessa vez não me decepcionei. Tinha muita coisa boa, principalmente na área de História. Comprei, ao todo, quatorze livros, alguns deles bem grandes e ilustrados, sobre a história da Alemanha e da Bavária. Comprei alguns menores também de História e Política, além de um volume único com três obras do Kafka. Depois dessa reconheci meus limites e decidi que não iria mais comprar livros aqui – além, é claro, daqueles que eu já tinha encomendado. Foi tanto livro que precisei fazer duas viagens: comprei um tanto, trouxe pra moradia, voltei lá e comprei mais outro tanto. Quatorze livros nem parece muita coisa, mas o problema é que muitos eram grandes e pesados. Nessa história toda não gastei sequer quatro euros.

No dia seguinte, sábado de manhã, fui para Berlim. Percebi que seria uma disparate passar cinco meses na Alemanha sem conhecer essa cidade e resolvi passar alguns dias lá. Fiquei em um hostel minúsculo em Alt-Moabit, cheio de hóspedes esquisitos que passavam o dia todo discutindo com o recepcionista sobre a possibilidade de se gravar um filme ou um documentário. Logo na minha primeira noite resolvi sair pra conhecer a cidade; percebi, pelo mapa, que o hostel ficava não muito longe do Portão de Brandenburg, o cartão postal de Berlim. Só que esse “não muito longe” na verdade é um “fácil de chegar”: era só seguir reto toda a Avenida 17 de junho, só que a tal avenida é imensa! Andei muito, mas muito mesmo... Pelo menos foi uma ótima forma de me aquecer em meio ao frio de menos 5 ou 10. Ao fim da caminhada já não sentia mais os dois últimos dedos de um dos pés. Quando vi o Portão de Brandenburg pela primeira vez fiquei fascinado; de perto então ele é ainda mais bonito, principalmente à noite. Fui tirar uma foto e nesse exato momento a pilha da câmera acabou. Mas não me enfureci como de costume. Sabia que no dia seguinte eu iria voltar lá.

No dia seguinte eu havia agendado um passeio turístico cujo tema era “Berlim no Terceiro Reich”. Essas excursões todas começam em frente ao Portão de Brandenburg, onde também ficam várias pessoas fantasiadas de militares americanos e soviéticos que ganham dinheiro tirando fotos com os turistas. No passeio turístico passamos em frente ao Bundestag – o parlamento alemão –, visitamos o memorial aos soldados soviéticos que libertaram Berlim em 1945, o memorial às vítimas do Holocausto e também aos homossexuais vítimas do nazismo. Esse último é um dos memoriais mais esquisitos que já vi. Consiste em um grande quadrado preto escondido atrás de algumas árvores. Em um dos lados do quadrado há uma pequena abertura onde tem uma televisão que fica mostrando repetidamente vídeos de vários casais homossexuais (homens e mulheres) se beijando. Segundo o guia, até mesmo a comunidade homossexual de Berlim se mostrou insatisfeita com essa homenagem.

No dia seguinte fiz outro tour guiado: Berlim Oriental. Esse foi focado nos tempos do governo comunista. Conhecemos o prédio da STASI e, claro, os remanescentes do Muro de Berlim. Em um determinado momento vimos um memorial em homenagem às vítimas do Muro. Entre elas, duas histórias particularmente me chamaram a atenção. Uma delas era de um menino que jogava bola perto do muro e acabou caindo no rio que passava próximo a ele. O menino se afogou porque o resgate demorou; o resgate demorou porque antes de fazer qualquer manobra no rio era preciso informar o outro lado, caso contrário isso poderia ser visto como um ato de guerra. Assim, ele é considerado uma vítima do muro, mesmo não tendo tentado atravessá-lo. Já a vítima mais jovem do muro foi uma criança de três anos de idade: sua mãe tentou atravessar para o lado ocidental com o menino do colo, até que em certo momento ele começou a chorar. A mãe tapou a boca dele para não serem percebidos e seguiu em frente. Ela conseguiu atravessar, mas chegando no outro lado percebeu que havia sufocado o próprio filho ao tentar fazê-lo parar de chorar.

Histórias tristes, não são? Pois é. Berlim tem várias faces e eu optei por conhecer seu lado mais sombrio.

Após esses dois passeios, refleti muito sobre como a Alemanha lida com diferentes períodos da sua História. As milhares de lojas de souvenirs que se espalham por Berlim estão cheias de chaveiros, camisas, copos, bolsas e pratos decorativos que lembram a época em que a cidade esteve dividida entre americanos, ingleses, franceses e soviéticos. Eles vendem até licores com fotos de Stálin, Roosevelt e Churchill. Não se veem, porém, bolsas com a suástica, miniaturas com a águia nazista ou licores com a foto de Hitler, por motivos óbvios. A união alemã forçada por Hitler foi bem mais traumática que a desunião levada a cabo pelas potências estrangeiras. Dessa forma, o tour sobre a Alemanha no Terceiro Reich é um verdadeiro exercício de imaginação. Os prédios, monumentos e símbolos nazistas não deixaram sequer vestígios pela cidade. Chega a ser até engraçado quando o guia aponta para um prédio com cartazes de crianças negras e brancas brincando juntas e fala que ali funcionou o ministério da propaganda sob a direção de Joseph Goebbels. Ao fim, o tour sobre Berlim no Terceiro Reich acaba sendo muito mais um tour pelos memoriais às vítimas do Terceiro Reich.

Eu entendo o motivo disso tudo, mas pra alguém que vive de estudar o passado isso gera um pouco de angústia. Não poder ver sequer um rastro, um vestígio daquela época é, para mim, um pouco frustrante. O esquecimento, mesmo dos acontecimentos mais traumáticos e horrendos, é algo que o historiador deveria evitar. Talvez seja por isso que gosto tanto de cidades históricas, pois lá não só há vestígios do passado como também eles costumam até predominar sobre os traços do presente.

Mas enfim, os guias turísticos não têm culpa de nada disso, e dentro das possibilidades que a cidade oferece acho que eles fizeram um excelente trabalho.

Na terça-feira voltei para Augsburg sendo que na quarta-feira já tinha outra viagem planejada: Feldkirch, uma cidade no extremo Oeste da Áustria. A cidade por si só não tinha atraído minha atenção; fiquei lá porque queria conhecer outro país: o principado de Liechtenstein, um paisinho bem pequeno de 35 mil habitantes, espremido entre a Áustria e a Suíça. Em Liechtenstein há hostéis, mas eles não abrem no inverno e por isso tive que ficar em Feldkirch, a cidade mais próxima. Acontece que acabei me encantando com aquela cidadezinha de apenas 35 mil habitantes. O hostel no qual fiquei era uma construção dos tempos medievais que havia servido como casa para curar leprosos e portadores de várias outras doenças. Por fora parecia mais um castelo abandonado, mas por dentro era extremamente confortável, sem perder seus traços históricos por completo. Os quartos eram muito limpos e bem arrumados, as camas todas novas e a construção ainda mantinha uma grande lareira no centro e um porão.

Após chegar resolvi conhecer um pouco da cidade. Andei pelo centro e descobri um pequeno castelo no alto de uma colina. Subi até lá, onde tive uma linda vista da cidade, principalmente por causa da neve. Ao voltar para o hostel e entrar no meu quarto um dos meus colegas de quarto começou a puxar conversa comigo. Era um homem que parecia estar na casa dos trinta anos. Entendi pouco, pois acho o alemão austríaco bem difícil de entender. Pelo pouco que entendi do que ele me contou, ele havia trabalhado na Scania, com transporte, com silos e com radiadores. Seu tom de voz mostrava que ele estava bem frustrado. Parecia meio sem esperança, desnorteado, acho que estava procurando outro emprego ou lugar pra morar. Ele citou também família, filhos, patrões, mas não entendi exatamente em que contexto. O problema é que ele falava demais e eu não entendia quase nada, de modo que nem ao menos podia dialogar. Apenas fiquei calado e concordei com tudo; qualquer coisa que eu falasse iria denunciar que eu não havia entendido quase nada do que ele disse, e isso poderia fazê-lo pensar que eu não estava interessado ou não estava prestando atenção.

A minha salvação foi quando chegou um outro hóspede no quarto: outro homem talvez na casa dos 40, natural de Frankfurt, com cabelo parecido ao do Steven Seagal e os dentes quase todos amarelos (alguns até em falta). Por sorte ele falava ainda mais que o outro e acabou roubando a cena. Mas o alemão dele foi mais fácil de entender. Além disso, ele não tinha o tom soturno do outro: ele falava com empolgação e alegria, e também muito rápido. Disse que havia morado no Canadá por muito tempo e que lá era um ótimo lugar pra se viver e trabalhar. Disse ainda que estava lá hospedado porque tinha uma entrevista de emprego na Suíça, mas não entendi exatamente qual tipo de emprego. A uma determinada altura pedi licença sob o pretexto de que tinha que colocar o leite que comprara na geladeira, e então eu saí.

Mais tarde, quando voltei, o hóspede com cabelo do Steven Seagal me perguntou o que eu fazia na Áustria, e então expliquei a ele sobre meu intercâmbio na Alemanha, sobre o curso de História e sobre meu tema de pesquisa. Ele se interessou muito, e disse que um dos melhores lugares do mundo para se pesquisar o nazismo é a Universidade de Haifa, em Israel. Segundo ele, a biblioteca de lá tem um acervo imenso acerca do tema. Então ele falou muito sobre o que ele achava do nazismo, sobre a importância de se estudar esse tema sob um ponto de vista neutro, sem ser influenciado pelo radicalismo de nenhum dos lados. Disse ainda que os alemães precisavam se dedicar mais a estudar esse tema, pois os movimentos radicais neonazistas seriam frutos da incompreensão desse passado.

No dia seguinte parti para Liechtenstein. Por que eu resolvi conhecer esse país do qual muita gente sequer ouviu falar? Por várias razões. Principalmente pelo próprio fato de muita gente nunca ter ouvido falar. Liechtenstein é o tipo de país que a gente só sabe que existe quando precisa preencher um formulário na internet com seus dados e, na hora de escolher o país, abre uma lista com todos os países do mundo (o mesmo se dá com o Território Britânico do Oceano Índico, Brunei e Afeganistão antes de 11 de setembro de 2001). Passei minha viagem inteira ouvindo pessoas falando da França, da Bélgica, da Inglaterra e da Suíça, mas nunca conheci sequer uma pessoa que tenha visitado Liechtenstein. E ele está ali, tão perto de tudo e tão acessível. Mais perto até do que Berlim. De Augsburg até Feldkirch são quase 4 horas apenas, e de Feldkirch até Vaduz, capital de Liechtenstein, cerca de 20 ou 30 minutos. Assim, Liechtenstein era a única oportunidade de visitar um país diferente sem gastar muito tempo, já que meu intercâmbio vai chegando ao fim.

Os ônibus para Liechtenstein partem do centro de Feldkirch regularmente – com mais frequência que o 5102 e a peste do 1207 em BH. São mais baratos que o trem (apenas dois euros e trinta). Peguei um logo pela manhã. Na fronteira entre a Áustria e Liechtenstein o oficial da alfândega parou o ônibus, entrou e pegou dois ou três passageiros para Cristo, pedindo suas identidades. Eu não fui um deles. Foi até bom, afinal de contas, nesse momento me dei conta de que Liechtenstein não faz parte da União Europeia, de modo que não sabia ao certo se cidadãos brasileiros podiam entrar sem visto ou não. Passei a noite anterior só pesquisando sobre a História do país mas nem me dei conta dos problemas burocráticos... Enfim, ilegal ou não, eu entrei no país. Desci na estação central de Schaan, a maior cidade do país de acordo com a Wikipédia. Senti-me uma besta. Tirando uma igreja bonita e a vista dos Alpes, a cidade não tinha absolutamente nada. Fui até a administração na estação perguntar onde ficava o setor de informações turísticas. A mulher me disse que não existia, que ali era uma vila muito pequena, sem atrações turísticas. Disse ainda que se eu quisesse conhecer lugares interessantes deveria ir para a capital, Vaduz, e me mostrou onde eu pegava o ônibus. Agradeci, mas teimoso que sou, resolvi andar por Schaan.

A cidade é muito limpa, organizada e agradável, além de ser tranquila. Mas, de fato, não tem nada além de casas, padarias, algumas lojas, restaurantes e cafés. Tem também um teatro ao lado da prefeitura que anunciava festividades de carnaval. Nas minhas andanças achei apenas uma igreja, uma torre medieval que, segundo as informações na placa, era usada para cristianizar os invasores alamanos, e as ruínas de uma fortificação romana. Também achei uma pequena pracinha com um córrego semicongelado e alguns patos. Foi aí que decidi que era hora de ir para a capital. No caminho até a estação vi um monte de criancinhas conduzidas por uma professora de escola andando pela cidade, como numa excursão. Acho que essa foi a cena mais emocionante que presenciei em Schaan.

A viagem de Schaan até Vaduz não deve ter durado sequer cinco minutos. Apesar de ser menor que Schaan e ter apenas 5 mil habitantes, Vaduz é mais movimentada e tem mais lugares interessantes para se ver. Comecei passando pelo palácio governamental. Logo ao lado ficava o parlamento, um prédio esquisito, marrom, com teto triangular, parecendo um pastel ou um guardanapo. Mais à frente passei pelas informações turísticas e depois fui trocar meu dinheiro em um banco. Em Liechtenstein eles usam o franco suíço. Aliás, o que mais tem nessa cidade são bancos: eles estão por toda parte, de todos os tipos e nomes. Li na internet que Liechtenstein é um dos grandes paraísos fiscais do mundo, um dos lugares preferidos para se lavar dinheiro. Lá também se fala alemão, e achei o alemão deles bem simples de entender. Depois do banco passei pela prefeitura. Todos esses prédios ficam mais ou menos no mesmo lugar, em um grande calçadão, onde vi outros turistas e algumas estátuas exóticas.
Na hora de almoçar não teve outro jeito: comida turca, como de costume. Os restaurantes lá são muito caros e mais uma vez o kebab me salvou. Depois de comer fui visitar a igreja que ficava ao lado do palácio governamental. Enquanto tirava algumas fotos chegou, do nada, um ônibus cheio de homens fantasiados de esqueletos, com martelos e outros penduricalhos pelo corpo. Parecia até uma festa de Halloween. Eles desceram do ônibus e se postaram em frente a um prédio do lado da igreja. Foi aí que percebi que era uma banda: todos eles com trombones, saxofones e tambores. Eles entraram então no prédio. Achei aquilo tudo meio surreal: eu, num país esquisito e quase vazio, presenciar uma banda de homens vestidos de caveira entrando em um prédio. Parecia aqueles sonhos que a gente costuma ter em cochilos durante a tarde. Me senti em uma pintura de Dalí. Quando me sentei para descansar em uma praça entre a igreja e o referido prédio, a banda começou a tocar. Não podia vê-los, mas ouvia-os muito bem. Eles estavam em um pátio do prédio. Tocaram várias músicas animadas, entre elas aquela do “The Killers” (“somebody told me, that you have a boyfriend, who looks like a girlfriend”). Foi o suficiente para quebrar de vez o silêncio e a monotonia daquela cidade parada. O som ecoou por todos os cantos e alguns transeuntes até pararam para observar. Também fiquei escutando durante um bom tempo.

Quando a banda dos esqueletos parou, resolvi seguir em frente. Eis que eu ouvi uma outra banda tocando, em outro ponto da cidade. Eram vários homens e mulheres vestidos com roupas carnavalescas tocando diversas músicas, inclusive algumas músicas clássicas. Eles estavam em frente ao prédio de uma empresa e os funcionários da empresa estavam na porta observando tudo. Acabado o show, todos aplaudiram muito e os membros da banda foram agraciados com doces e bebidas preparados pelos funcionários. Foi então que percebi que o carnaval em Liechtenstein é a domicílio: acho que na semana do carnaval os patrões contratam bandas para tocar em suas empresas e, em retribuição, oferecem uma pequena refeição. Achei interessante a ideia. Depois dessa apresentação voltei ao calçadão do parlamento e percebi que havia vários vestígios de confetes e serpentinas, o que talvez sugira que eles também fazem suas folias.

Tendo em vista que já havia visto de tudo no lado de baixo, cheguei à conclusão que era hora de subir. Bem lá no alto de uma colina, quase prestes a desabar, via-se uma castelo: era a morada oficial da família real de Liechtenstein. Incrustado na montanha havia um caminho com escadas e corrimões de madeira que conduziam até o castelo. Tive que ir com cuidado: tinha muita neve e o caminho estava escorregadio. Enquanto subia ia tendo uma visão panorâmica da cidade. Foi quando percebi que, em outro ponto da cidade, outra banda carnavalesca tocava. Os Alpes que cercam Vaduz oferecem uma acústica ótima, de modo que minha subida até o castelo foi acompanhada da trilha sonora que vinha lá de baixo! Ao longo do caminho, várias placas davam informações sobre a economia, a história e o sistema político de Liechtenstein.
O castelo é muito bonito, mas não é aberto para visitação, visto que a família reside lá. A vista que se tem de toda a cidade, porém, é muito bonita e vale o esforço de 30 minutos de subida. Quando vi que ia escurecendo resolvi descer e pegar o ônibus de volta para Feldkirch.

No dia seguinte enfrentei uma série de contratempos com os trens. Peguei um trem até Lindau, cidade alemã às margens do Bodensee, e o trem que ia de lá até Augsburg teve um problema nos freios (se não me engano por causa do excesso de neve acumulado). Assim, ele dirigiu bem lentamente até Kempten, onde interrompeu sua viagem. De lá peguei o trem até Ulm e de Ulm, enfim, até Augsburg. Cheguei muito cansado, mas não podia desistir. Nos dias seguintes – sábado e domingo – iria fazer minhas últimas viagens. Aproveitei que meu Eurail ainda tinha dois dias e reservei esses dois dias para conhecer melhor duas cidades alemãs pelas quais tinha passado mas não tinha conhecido muito bem.

No sábado de manhã fui para Munique, em cuja estação eu já estivera várias vezes, mas cujos pontos turísticos eu nunca tinha visitado. Pela manhã participei de um tour guiado: Munique no Terceiro Reich. Nosso guia nos contou muito sobre os vários anos que Hitler passou em Munique, sobre seu apreço pela cidade e os locais que ele gostava de frequentar. Mostrou as fotos de alguns quadros que ele pintou. Visitamos a Hofbräuhaus, a cervejaria na qual ele fez um dos discursos que o consagrou, em 1920. Pudemos entrar no salão e o guia nos mostrou até o local onde ele estava quando discursou.

Após sairmos de lá fomos para outros pontos importantes na história do nazismo em Munique, como a rua pela qual Hitler e seus seguidores andaram ao tentar dar seu primeiro golpe. Ao lado dela os nazistas construíram um memorial diante do qual todos deveriam fazer a saudação com o braço direito quando passavam. Hoje resta apenas uma marca no muro onde ficava a placa de ferro. Logo antes desse memorial fica uma rua que servia como desvio a todos aqueles que queriam evitar a saudação. Essa rua é célebre e existe até mesmo um trecho dela marcado de dourado que indica o caminho que esses “insurgentes” silenciosos faziam a fim de evitar o memorial.

Depois passamos por um prédio com paredes de vidro onde hoje funciona, se não me engano, um laboratório. Bem na esquina do prédio, quase imperceptível, há uma placa de ferro que indica que ali funcionava o escritório da Gestapo, a polícia secreta nazista. Mais uma vez veio à tona aquela minha angústia diante do esquecimento. Não conseguia encarar aquele prédio moderno, cheio de vidraças e com seu interior bem à mostra, como tendo sido sede de uma polícia secreta. Aqui meu esforço de imaginação foi em vão.

Mais pra frente, porém, isso iria mudar. O guia guardou o melhor para o final. Atravessamos uma praça redonda com um grande obelisco preto e chegamos até dois prédios, um ao lado do outro. Ele então nos disse que aqueles tinham sido alguns dos poucos prédios de Munique que não haviam sido danificados por bombardeios aliados, e que portanto permaneciam intactos desde o Terceiro Reich. São eles a sede das SS (a guarda pessoal de Hitler) e a sede do Partido Nazista. Ambos lado a lado, separados por apenas uma rua. Na sede do Partido Nazista era possível até mesmo ver as marcas de tiros nas janelas e na parede. O prédio das SS parece um casarão abandonado; fica escondido atrás de um monte de árvores. Já o prédio do partido é hoje uma escola de música e teatro. Seu interior também foi preservado. Permanece aquele estilo neoclássico do qual Hitler tanto gostava: colunas, escadarias e mármore italiano. Tudo bem seco e liso, nada de detalhezinhos. Tudo também com uma coloração bem sóbria, com tons de bronze e dourado meio desbotado (perdoem-me o pedantismo, pois que não entendo nada de arte ou arquitetura). Aquele foi o último ponto do tour, onde o guia se despediu de nós. Mas me detive ali por muito mais tempo. Enfim, após tanto usar a minha imaginação para aprender sobre o nazismo, eu finalmente estava vendo algo daquela época que realmente permaneceu. Fiquei surpreso ao constatar que justo os prédios das SS e do partido sobreviveram aos bombardeios e, acima de tudo, à neura alemã de esquecer esse período.

No sábado ao fim da tarde retornei a Augsburg e no domingo de manhã parti para mais uma viagem, a última: Nuremberg. Já havia estado lá no Natal, mas não conheci tudo o que queria. Visitei apenas o Museu dos Brinquedos, algumas igrejas e o mercado de Natal. Dessa vez fui decidido a visitar o centro de documentação para História do nazismo. Nuremberg foi uma cidade extremamente importante para os nazistas antes mesmo de 1933, pois lá eram realizadas as festividades do “dia do partido”. O museu mostra tudo isso. Com muitos vídeos, fotos e cartazes de propaganda ele explica passo a passo a ascensão do nazismo, dando um enfoque especial à importância da cidade de Nuremberg dentro desse processo. Uma das partes que mais me chamaram a atenção foram as exibições sobre o conteúdo antissemita da educação na Alemanha nazista. Vi um desenho de uma criança que mostrava um judeu ao ler uma placa que dizia algo do tipo “caminho de volta para casa”. Outro desenho, esse feito por uma criança mais nova e todo esgarranchado, mostrava outro judeu e vinha acompanhado da frase (também em garranchos infantis): “os judeus são nosso infortúnio”. Ao lado havia um livro didático que ensinava, em uma ilustração colorida, como as crianças podiam reconhecer um judeu (o nariz pontudo e a barriga grande eram algumas das características). Mas sem dúvida o melhor de todos foi o joguinho “Ajude o judeu a encontrar seu caminho de volta para a Palestina”. Era um jogo normal de tabuleiro, onde cada casa era o estabelecimento comercial de um judeu. O objetivo era juntar o máximo de judeus possíveis e manda-los de volta para sua terra, bem longe da Alemanha. E no tabuleiro ainda vinha escrito a seguinte frase que, em alemão, dá uma rima muito interessante: “se você conseguiu expulsar mais judeus que seu companheiro / então você é o vencedor inconteste!”. O museu funciona bem ao lado do Kongresshalle, um grande estádio no qual Hitler gostava de discursar. Hoje esse estádio está tomado por plantas e musgos mas, se não me engano, ainda acontecem eventos por lá.

Após tomar mais essa dose de história nazista resolvi parar um pouco com isso. Já estava ficando cansado de tanto ouvir falar a respeito; tão cansado que nem me animei a visitar o Tribunal de Nuremberg. Resolvi conhecer a parte histórica da cidade e não me arrependi. Subindo algumas ladeiras por entre casas históricas que muito me lembraram Ouro Preto, cheguei até o castelo que protegia a cidade e no qual o rei da Bavária costumava reunir-se com representantes do Sacro-Império. A vista que se tem do alto do castelo é maravilhosa. Só então pude perceber de fato o quanto aquela cidade é bonita. Quando começou a escurecer voltei para Augsburg. Era hora de voltar pra casa após tanto tempo errando por cidades, castelos, montanhas e museus. Passarei minha última semana na Alemanha aqui em Augsburg mesmo, até retornar ao Brasil no dia 28 de fevereiro (terça-feira da semana que vem).

E para encerrar com chave de ouro essas quase duas semanas de prova oral, tours e museus sobre nacional-socialismo, nada melhor do que passar uma semana tomando a dose contrária. Voltando para casa no sábado à noite fui olhar minha caixa de correio e lá vi um convite da juventude do Partido Socialdemocrata Alemão chamando para a “semana antinazista de Augsburg”. Trata-se de vários eventos ao longo da semana que buscam debater o nacional-socialismo não só na sua história, mas também nos dias de hoje. Hoje (segunda à noite) foi o primeiro evento. Um filme ucraniano dublado em alemão (os alemães odeiam filmes legendados): Babi Yar. Conta a história de um massacre de cerca de 150 mil judeus em uma região nos arredores de Kiev, capital da Ucrânia, durante a ocupação nazista em 1941. O filme me deixou perplexo, mais ainda que todos os museus e tours juntos. Em um único dia foram mortos mais de 33 mil judeus e não judeus. Uma das cenas mais medonhas do filme mostra um soldado chegando para o seu oficial após uma das matanças e perguntando: “isso é tudo por hoje, senhor?”. Ao que o oficial, ele mesmo já cansado de tanto horror, se irrita: “qual seu problema?! 33 mil mortos não são o suficiente pra você?!”.

Ao longo da semana haverá mesas de debates versando sobre diversos temas: o nazismo em Augsburg, extremismo de direita entre os migrantes, a face da nova direita e, para encerrar, um “café da manhã antinazista” [sic!] no sábado. Não me perguntem do que se trata, pois eu também não faço ideia. De qualquer forma, estou encarando isso tudo como sendo a minha despedida daqui. Ainda terei uma semana para matar minhas saudades antecipadas daqui da Alemanha e então voltar ao Brasil. Prometo, no entanto, escrever mais uma vez antes do meu retorno a fim de fazer alguns apontamentos gerais sobre meu intercâmbio.