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sábado, 25 de fevereiro de 2012

Conclusões de Augsburg

“Sete anos depois de 2004; quatro anos depois de 2007: nada se repete”.

Certa vez, já na segunda metade do século XX, perguntaram ao então primeiro-ministro chinês Zhou Enlai qual teria sido a importância da Revolução Francesa para a humanidade, ao que ele respondeu: “acho que ainda é cedo demais para respondermos a essa pergunta”. Quem me contou esse caso foi um professor no primeiro período de Relações Internacionais. Fiquei com ele na cabeça pelos anos que se seguiram, mas nunca mais ouvi falar a respeito, o que me levou a duvidar da sua veracidade. Até que no mês de janeiro, lá pelas últimas semanas de aula, um professor meu daqui de Augsburg contou-o novamente. Dessa vez ele pareceu fazer ainda mais sentido do que da primeira vez em que o ouvi.

Logo, o título dessa postagem perde desde já o seu valor. A última coisa que eu poderia fazer nesse momento seria tirar conclusões do meu intercâmbio. Eventos de extrema significância demandam muito tempo até serem plenamente compreendidos. Por isso admiro os historiadores mais do que outros profissionais das Humanas, pois que eles não se apressam a tirar conclusões no calor dos acontecimentos. As conclusões que tiramos apressadamente podem ser até engraçadas de tão enganosas. Lembro-me bem que poucos dias antes de voltar da Malásia, ao conversar com uma amiga ao telefone, disse a ela que eu não havia mudado praticamente nada naqueles doze meses, e que iria voltar ao Brasil da mesma maneira como o deixei. Ela disse pra eu ter paciência, pois com o tempo eu iria perceber o quanto aquela experiência me mudou. Nada mais real. Sinto-me revolucionado por aquele intercâmbio cada dia da minha vida, sem exceção, desde aquele mês de junho de 2005 quando retornei ao Brasil. Não consigo, de forma alguma, de jeito algum, por maior esforço de imaginação que eu faça, enxergar como seria minha vida sem esse intercâmbio.

O máximo que posso fazer nesse momento, a apenas três dias de retornar ao Brasil, é um esforço para compreender esses cinco últimos meses, mas com a plena consciência de que muito em breve ele será superado.

Cheguei aqui em uma tarde do dia 5 de outubro de 2011. Desde então, foram 148 dias (mais três pela frente) habitando, estudando, viajando e crescendo em terra estranha. Lugares sobre os quais já tinha aprendido na escola e na faculdade, lido nos livros, visto nos documentários, estiveram ali diante dos meus olhos ao longo desses quase cinco meses. Não que isso nunca tivesse me acontecido antes. Um ano na Malásia foi uma aventura tão grande quanto esses cinco meses na Europa. A experiência não mudou, quem mudou fui eu. A Alemanha me revelou muito mais o que aprendi na Malásia do que na própria Alemanha (e creio que só um outro intercâmbio iria me mostrar de fato o que aprendi aqui). Após cinco meses na Alemanha, finalmente pude compreender o que a Malásia me ensinou há oito anos atrás. E o que foi que ela me ensinou? Basicamente três coisas: ela me ensinou quem eu sou; ensinou-me a ser quem eu sou; e me ensinou a não ter vergonha de ser quem eu sou. E mais uma quarta coisa: ensinou-me a nunca depositar minhas esperanças no porvir, a não viver de futuro, esperando que um dia lá na frente tudo irá melhorar. Logo, o grande diferencial entre ambos os intercâmbios não foi o país, o continente, a comida e as pessoas: fui eu mesmo, pois que pude aplicar todo esse aprendizado aqui e enxergar esses lugares por onde passei com outros olhos. Não mais aqueles olhos imaturos e desinteressados que viram a Malásia, mas olhos atentos e questionadores. É senso-comum acreditar que à medida que envelhecemos vamos perdendo o interesse pelas coisas. No meu caso, porém/felizmente, foi justamente o contrário e isso é extremamente gratificante.

Poucos conhecem os antecedentes desse intercâmbio. Penso que, se a Alemanha fosse uma mulher dando em cima de mim, certamente ela mereceria algo melhor.

Em 2003, ao ser selecionado pelo programa de intercâmbio de jovens do Rotary, pude escolher entre 5 países, entre os quais figuravam a Alemanha e a Malásia, e minha preferência foi pela última. Sete anos depois, em minha primeira tentativa de seleção para o intercâmbio da UFMG, eu falhei por não ter passado no teste de proficiência. Quando tentei pela segunda vez, nas vagas remanescentes, por muitas vezes duvidei se era aquilo mesmo que eu queria. Já tinha um ótimo estágio na minha área, ganhava bem, era feliz com meu curso e podia até apertar o passo para formar mais cedo. A ideia do intercâmbio nunca foi unanimidade dentro da minha cabeça. Novamente fiz o exame de proficiência e melhorei dez pontos, mas ainda fiquei longe do exigido pela universidade daqui. Na entrevista, porém, saí-me muito bem, apesar de não saber. Um belo dia, enquanto mexia bem à toa na internet, resolvi olhar, por pura curiosidade, logo antes de desligar o computador, o resultado da seleção para o intercâmbio. Foi aí que descobri que havia ficado em primeiro lugar na entrevista. Fui até a Diretoria de Relações Internacionais saber como é que ficava a minha situação, e eles me disseram que eu havia recebido um e-mail informando-me acerca da reunião de preparação para intercambistas. Disse a eles que eu desconhecia tal e-mail, e eles me disseram que haviam me enviado para o endereço do Hotmail, que eu raramente abro. Fui olhar e realmente estava lá a mensagem sobre a reunião que aconteceria, se bem me lembro, dali a menos de uma semana. A reunião era compulsória e o não comparecimento sem justificativa acarretava eliminação do programa de intercâmbio. Ou seja: se eu não tivesse olhado o site com o resultado da seleção não teria ido até a DRI, não teria lido esse e-mail, não teria ido à reunião e consequentemente não estaria aqui agora na Alemanha.

Nesse meio tempo recebi um e-mail falando que eu ganhara uma segunda chance de fazer um exame de proficiência, o da pós-graduação, haja vista meu bom desempenho na entrevista. Arrastei-me de má vontade para estudar para essa prova. Não sei por que, fui tomado por uma profunda indiferença frente a esse intercâmbio. Bem lá no fundo eu queria ir, mas não sabia se realmente estava disposto a me esforçar para tal. Contrariando minhas próprias expectativas, tive um excelente desempenho nesse exame, e enfim poderia me considerar selecionado. Não foi bem assim. O exame da pós testa apenas a capacidade de leitura e interpretação de textos. Ainda tive que voltar à FALE e fazer outra prova, dessa vez pra testar meus conhecimentos de escrita. Estudei com mais afinco dessa vez e finalmente passei. Por pouco eu não fico de fora.

Assim, isso foi meu intercâmbio: produto de um estranho amálgama de aspectos voluntários e involuntários.

Do que sentirei saudades? Muitas coisas, mas nenhum clichê. Os brasileiros têm uma visão fetichizante da Europa que chega a beirar o cômico. Acham que aqui tudo é melhor, as pessoas são mais educadas, o país é mais limpo, a mentalidade mais desenvolvida, mas asseguro que muito disso é mentira. Em primeiro lugar: europeus jogam sim lixo no chão. O ponto de bonde da minha universidade era infestado de milhares de bitucas de cigarro ao seu redor. Várias vezes em que entrei no elevador daqui da moradia tive o desprazer de pisar num chão todo melecado de cerveja. Sem contar as vezes em que entrei no elevador e encontrei, jogados no chão, um pote de sorvete pingando, uma garrafa de cerveja, um pé de sapato e até um osso de frango.

Em segundo lugar: europeus podem sim ser inconvenientes. Perdi as contas de quantas vezes eu estava estudando na biblioteca e um grupo de alunos começou a conversar em voz alta, mesmo o funcionário da biblioteca estando ali do lado. Na UFMG, os cochichos na biblioteca quase sempre são seguidos por alguém fazendo um “shhhhh!” a toda altura, ou mesmo pela intervenção de um funcionário pedindo silêncio. Nunca vi, porém, na biblioteca da Universidade de Augsburg, nenhum aluno ou mesmo funcionário pedir silêncio a um grupo barulhento.

Em terceiro lugar: europeus nem sempre são educados. Sempre que ando de ônibus em Belo Horizonte vejo ao menos uma pessoa ceder o lugar a um passageiro idoso. Aqui, porém, várias vezes vi idosos em pé no bonde enquanto jovens ficavam sentados. E por fim: não é só no Brasil que os jornais estampam notícias trágicas com uma mulher seminua na capa. Aqui, um dos jornais populares de maior circulação traz sempre uma mulher nua – literalmente – na capa. Muitos brasileiros leem certas notícias e lamentam: “é só no Brasil mesmo que isso acontece”. Pois não é que, mais ou menos ao mesmo tempo em que houve um escândalo em Lavras de um freguês que achou algumas larvas – com o perdão do trocadilho – dentro do pão dos supermercados Rex, aqui aconteceu algo parecido com uma grande cadeia de padarias? Em uma das filiais os pães eram estocados em meio a muita sujeira: tinha desde poeira até fezes de rato.

Então, não é só no Brasil...

Enfim, essa velha ladainha de achar que na Europa tudo é bom e no Brasil tudo é uma droga é, na minha opinião, só mais um dos elementos que contribuem para que o Brasil continue sendo essa droga. Os europeus não alcançaram o alto padrão de vida que têm hoje desprezando seus próprios países e babando ovo do progresso alheio.

Se estou feliz? Sim, muito. Não só com esses cinco meses que passei aqui, mas principalmente pelo fato de que irei voltar. Sinto saudades do Brasil, do meu ambiente de trabalho e de estudos. Sinto falta de entender plenamente as aulas e poder contribuir com as discussões em sala, de entender os textos e lê-los com mais desenvoltura, sem precisar da ajuda de um dicionário. É claro que melhorei bastante meu alemão, principalmente a leitura, mas sempre ficava com temor de me intrometer nos debates daqui.

Agora meu quarto vai ganhando, aos poucos, a aparência amorfa que ele tinha quando cheguei; a mesma aparência de quando, naquela noite de 5 de outubro, olhei ao meu redor e senti-me ainda mais vazio do que ele, sem saber direito o que eu estava fazendo aqui e se realmente eu deveria estar aqui. Aos poucos ele vai voltando ao seu estado original, pronto para receber seu próximo inquilino. Hoje despachei pelo correio algumas coisas que não irão caber na minha mala. Irei doar minhas blusas de frio. Deixarei aqui também a maioria dos livros que comprei por dez centavos. Eles são pesados demais pra carregar na mala e pagar 75 euros de excesso de bagagem iria fazer o barato sair caro demais. Também vou me despedindo das pessoas que conheci aqui, agradecendo pelos bons momentos, ponderando “se” e “quando” voltaremos a nos ver. Sexta, na universidade, encontrei por acaso meu professor em duas disciplinas. Ele agradeceu-me pela estadia, disse que foi um prazer, desejou-me sucesso e eu prometi traduzir minha monografia e enviá-la a ele no fim do ano, ao que ele de imediato concordou. Hoje me despedi de meu tutor. Dei a ele alguns dos livros que não poderei levar e ele me deu uma pequena bandeira alemã assinada com uma mensagem de agradecimento e sucesso.

Os outros intercambistas também estão no mesmo clima. Todos postando no Facebook mensagens de despedida. Quinta-feira mesmo teve uma grande festa de despedida dos estudantes estrangeiros em uma boate daqui à qual orgulhosamente não compareci. Passar o semestre inteiro recusando convites de festas para depois me despedir com uma festa seria no mínimo contraditório.

Estarei chegando ao Brasil em um dia peculiar: 29 de fevereiro. Só o que eu suplico de joelhos a vocês é que por favor, não venham me irritar com perguntas do tipo: “Marcelo, por que você não visitou tal lugar? Marcelo, por que você não conheceu tal cidade? Marcelo, por que você não viajou pra tal país?”. Gostaria de lembra-los de duas coisas: eu não fiquei aqui por um ano, e sim por cinco meses; e eu não vim aqui a turismo, e sim como estudante. Por isso precisei, dentro desses cinco meses, conciliar minhas viagens com os meus estudos (que, por serem em uma língua estrangeira, requeriam obviamente dedicação redobrada). Sendo assim, precisei traçar prioridades, o que significa que tive que dar preferência a certos lugares em relação a outros. Tendo em vista tais limitações, acho até que consegui conhecer muitos lugares sem ter comprometido em nenhum momento os meus estudos: estive em seis países (Alemanha, Holanda, Áustria, Eslováquia, Hungria e Liechtenstein) e dezessete cidades, além de ter tirado boas notas!

Não me venham também com tiradinhas irônicas do tipo: “Mas você conheceu a Eslováquia e não conheceu a França?! Você conheceu Liechtenstein e não conheceu a Itália?!”. Não, eu não conheci a França, nem a Itália, nem a Espanha e em hora alguma fiz questão de conhecê-las. De uma pessoa que, aos quinze anos de idade, preferiu um ano na Malásia a um ano na Alemanha ou no Canadá, não se poderia esperar outra coisa.

E, ao contrário do que você possa pensar, esse não é um texto de despedida. Muito pelo contrário. Quase todo mundo que lê esse blog está no Brasil, e é justamente para lá que estou indo agora. Além disso, assim como esse blog não nasceu por causa do meu intercâmbio, ele também não irá morrer com o fim dele. Seguirei postando aqui sempre que me vierem ideias à cabeça. Talvez com menos frequência do que nesses cinco meses, mas não com menos dedicação. Agradeço, do fundo do coração, a todos aqueles que leram meus textos ao longo desse período: aos conhecidos e anônimos, aos que comentaram e aos que apenas leram, aos que leram todos e aos que leram apenas alguns. Agradeço aos leitores de Vitória e Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, aos leitores de Atlanta e outras regiões dos Estados Unidos – os quais não faço sequer ideia de quem possam ser, mas que quase sempre apareciam no contador de visitas ali em cima. A todos meu muito obrigado, e àqueles que irei encontrar na semana que vem ou no mês que vem, até breve!

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