Visualizações de página do mês passado

sábado, 27 de dezembro de 2008

Chapeuzinho Vermelho nos vestibulares

Você já parou pra pensar como cada vestibular cobraria a história da Chapeuzinho Vermelho? Eu já.

UFOP
1.Redija um texto EXPLICANDO o que aconteceu quando Chapeuzinho Vermelho entrou na casa da vovó.

2.Redija um texto JUSTIFICANDO a decisão do caçador de matar o Lobo Mau.

3.Leia atentamente a frase:

"...é pra te enxergar melhor(...)"

Com base no incidente envolvendo Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau, explique a ironia que ela contém.

UFMG
1.CITE e EXPLIQUE quatro conseqüências (duas positivas e duas negativas) da morte do Lobo Mau para a economia brasileira.

Conseqüência positiva 1___________________________

Conseqüência positiva 2___________________________

Explicação da conseqüência positiva 1________________________________________

Explicação da conseqüência positiva 2________________________________________

Conseqüência negativa 1__________________________

Conseqüência negativa 2__________________________

Explicação da conseqüência negativa 1________________________________________

Explicação da conseqüência negativa 2________________________________________

2.CITE e EXPLIQUE três fatores (um de ordem política, um de ordem social e um de ordem econômica) que levaram o Lobo Mau a comer a vovozinha.

Fator político______________________________________________

Fator social_______________________________________________

Fator econômico____________________________________________

Explicação do fator político_________________________________________________

Explicação do fator social__________________________________________________

Explicação do fator econômico______________________________________________

3.a)APONTE ao menos três evidências que nos permitem concluir que o crime contra a vovozinha e Chapeuzinho Vermelho foi premeditado.

Evidência 1________________________________________________

Evidência 2________________________________________________

Evidência 3________________________________________________

b)Relacione cada uma dessas evidências com o impacto que o crime gerou na opinião pública

Relação da evidência 1___________________________________________________

Relação da evidência 2___________________________________________________

Relação da evidência 3___________________________________________________

USP
1. Leia atentamente a frase:

"...pela estrada afora/eu vou bem sozinha/levar esses doces para a vovozinha(...)"

Contextualize o período no qual ela foi enunciada e problematize os eventos que a sucederam, contemplando em sua resposta a temática do conflito Lobo/idoso, Lobo/criança e Lobo/caçador e seus respectivos impactos nos movimentos de defesa dos idosos, nos grupos de defesa de crianças e adolescentes e nos movimentos de proteção aos animais.


2. Leia atentamente o texto:

"Todos nós sabíamos o que aconteceria ali naquela tarde, mas poucos foram os que tiveram coragem de assumir uma postura. A maioria ficou intacta, temerosa, ambígua, como quem espera o fim dos tempos: impotente, sem capacidade de fazer nada. Os poucos que fizeram alguma coisa a respeito se limitaram a pegar em armas mas não ousaram dar um só passo sequer para fora de suas residências; estes sim estavam dispostos a usar a violência, mas apenas em legítima defesa. Eles sabiam que o inimigo era mais perigoso, mais preparado e mais inteligente, por isso o máximo que ousaram foi zelar pela própria vida. Uma coisa, no entanto, era certa: se todos se unissem, certamente o venceriam. Tal proposição não só era verdade, como também era do conhecimento de todos ali, mas os motivos pelos quais ninguém propôs uma união permanecem até hoje desconhecidos. Nunca a baixa auto-estima de um povo lhe custou tão caro(...)"

Depoimento de um camponês que habitava o bosque do Lobo Mau

Com base no texto e em outros conhecimentos sobre o assunto, justifique por que o Lobo Mau foi bem-sucedido em sua empreitada ao atacar a choupana da vovozinha de Chapeuzinho Vermelho, levando em consideração a postura assumida pelos habitantes do local e a conjuntura sócio-econômica do Brasil rural de então. É possível que medidas assistencialistas tenham precipitado o incidente?

3. Apresente e analise ao menos cinco argumentos que nos permitam concluir que a ação do caçador ao matar o Lobo Mau foi legalmente inválida, levando em consideração, em cada um de seus argumentos, a ameaça que os biomas brasileiros vêm sofrendo, a crescente ocupação antrópica nas áreas de reserva florestal e a ausência de uma legislação mais rígida para crimes cometidos por animais.

UnB
1. Tendo em vista o recente incidente envolvendo o Lobo Mau, a vovozinha, Chapeuzinho Vermelho e o caçador, julgue os itens a seguir:

( ) Ao ingerir a vovozinha, o Lobo Mau não pode tê-la digerido dada a estrutura simplificada e limitada do sistema digestório dos canídeos.
( ) Tendo em vista o tempo que o Lobo Mau gastou para comer a vovozinha, vestir suas roupas, ajeitar-se na cama e encontrar Chapeuzinho Vermelho já devidamente disfarçado, é possível concluir que Chapeuzinho Vermelho não se deslocou pela floresta em movimento reilíneo uniformemente variado.
( ) A função sintática da palavra "que" na frase "(...) que olhos grandes você tem" é a mesma da palavra "por" na frase "(...)e o Lobo Mau passeia aqui por perto".
( ) Tendo em vista a coloração clara da pele de Chapeuzinho Vermelho e a coloração escura do pêlo do Lobo, podemos concluir que, no momento em que os dois se encontram, o Lobo está para Chapeuzinho assim como João Cândido estava para Hermes da Fonseca em 1910 na Revolta da Chibata.
( ) Tendo em vista a coloração da capa da protagonista juvenil, a fragilidade da personagem idosa e a prepotência do animal, podemos concluir que Chapeuzinho Vermelho, a vovozinha e o Lobo Mau estavam um para o outro assim como a União Soviética, Cuba e os Estados Unidos, respectivamente, estavam um para o outro na Crise dos Mísseis de 1962.

sábado, 11 de outubro de 2008

Análise comportamental dos Chraetinus ignobilis durante a cretamia

PREFÁCIO
Biologia é algo que nunca fez sentido para mim. Com este texto, procurarei me redimir. Dedico-o a todas as professoras de biologia que já tive - e ainda tenho - na vida: não sei o que seria de mim sem vocês - embora saiba muito bem o que seria de vocês sem mim.

ABSTRACT
O Sul do estado de Minas Gerais é sazonalmente afetado por um fenômeno de proporções bíblicas desde alguns anos atrás, mas que, mesmo assim, não tem despertado o interesse de acadêmicos ou leitores. O presente artigo tem como objetivo realizar uma análise fria e acurada do referido fenômeno - o fenômeno da cretamia - bem como de seu principal causador, o Chraetinus ignobilis, sem nenhuma pretensão, no entanto, de exaurir o tema. Estou aberto a sugestões.

A CRETAMIA: DE SUA OCORRÊNCIA E DE SEU CAUSADOR
Entre os meses de setembro e outubro (a data varia de ano em ano), o interior do estado de Minas Gerais é acometido pelo fenômeno da cretamia. Grosso modo, a cretamia representa, para o núcleo urbano, o mesmo que uma proliferação de pragas no cafezal representaria para o meio rural. Ainda assim, sua ocorrência nunca foi reconhecida como um caso de calamidade pública pelas autoridades. Pelo contrário, a cretamia por vezes traz até benefícios econômicos para a região atingida, embora o mesmo não possa ser dito sobre seus benefícios sócio-culturais.
O fenômeno da cretamia não é exclusivo do estado de Minas Gerais, sendo comum em diversas outras regiões urbanas do país. Em cada um delas se manifesta de maneira peculiar, apesar de seguir uma linha geral pré-estabelecida, comum a todos os lugares, e de ser sempre causada pelo mesmo agente: o Chraetinus ignobilis.
Acredita-se que o Chraetinus ignobilis tenha se originado de uma linhagem de Homo erectus que não conseguiu evoluir para Homo sapiens, ficando, portanto, estagnada a meio caminho dessas duas espécies e se degenerado, descambando para a formação de outra espécie, sem um reino muito definido. Vale aqui lembrar o quão pouco tem sido dedicado ao estudo desses indivíduos, de maneira que pouco sabemos a respeito das causas que levaram à estagnação da referida linhagem.
O Chraetinus ignobilis tem propriedades que os assemelham à algumas bactérias, como a capacidade de proliferar-se e de organizar-se em colônias. A cretamia nada mais é do que uma concentração em massa de diversos Chraetinus num mesmo espaço geográfico a fim de satisfazer suas necessidades de associação.
Por outro lado, a estrutura extremamente simplificada dos Chraetinus, especialmente de sua caixa craniana, assemelha-os diversas vezes aos vírus, além é claro de sua capacidade de ser nocivo ao ser humano.
Apesar dessa semelhança com os vírus e de especulações acerca de uma possível origem dos Chraetinus a partir da evolução de alguns vírus bacteriófagos - ou vice-versa - esses indivíduos são seres sexuados. A cretamia, portanto, constitui-se em um dos maiores paradoxos da natureza, por ser um período de intensa atividade sexual entre os Chraetinus e, ao mesmo tempo, sem qualquer aumento de sua taxa de natalidade. Isso se deve a mais uma característica típica dos Chraetinus, que é a capacidade de controle de natalidade, altamente eficaz. Por razões ainda desconhecidas, os Chraetinus que se reproduzem deixam de praticar a cretamia. A cópula durante a cretamia adquire, portanto, um caráter meramente lúdico.
A cópula entre os Chraetinus ignobilis costuma ser antecedida por uma série de rituais a fim de atrair o sexo oposto. Tais rituais, durante a cretamia, são freqüentes e quase imperceptíveis de tão comuns. Chraetinus do sexo masculino costumam deixar em evidência seus tecidos musculares - geralmente complexos e volumosos -, ao passo que as fêmeas procuram salientar seus mecanismos de locomoção e seus sistemas de nutrição da prole. As fêmeas cujos mecanismos locomotores são demasiado volumosos ou excessivamente delgados têm menos chances de encontrar um parceiro, bem como aquelas que possuem sistemas de nutrição da prole reduzidos.
Apesar de fazerem parte de uma mesma espécie, os Chraetinus ignobilis são extremamente diversificados , podendo ser agrupados segundo as mais diversas tipologias e critérios. Tal classificação pode ser tema para um trabalho posterior, haja vista ser complexa e polêmica, não permitindo portanto que eu me detenha neste ponto. O mais relevante para esse trabalho é notar que, durante a cretamia, os Chraetinus tendem a uma uniformização física: todos eles desenvolvem carapaças denominadas sadaba que cobrem a metade do corpo, dando à sua colônia um aspecto regular. Os sadaba mudam de cor de ano em ano e de lugar pra lugar, segundo parâmetros ainda desconhecidos. Regra-geral, porém, apresentam coloração vistosa. O motivo mais provável pelo qual essa carapaça é desenvolvida é a necessidade de diferenciar-se do meio externo e de identificação entre os próprios Chraetinus. Tal uniformização, entretanto, não impede que cada Chraetinus expresse sua individualidade.
A cretamia é um evento particularmente curioso porque altera o hábito alimentar dos indivíduos da referida espécie. Os Chraetinus se alimentam, naturalmente, por fagocitose e pinocitose. Ao longo da cretamia, no entanto, seus hábitos pinossômicos predominam, praticamente anulando a atividade fagocitária. Tal mudança brusca em sua nutrição deixa os Chraetinus em estado de profunda excitação, podendo inclusive prejudicar seu organismo e alterar a harmonia e o equilíbrio de suas sociedades. A alimentação principal durante a cretamia consiste no consumo de substâncias à base de etanol. O excesso de etanol, bem como sua ausência, pode afetar o comportamento da espécie de forma drástica.
Apesar de durar no máximo três ou quatro dias, a cretamia deixa seqüelas irreversíveis nos locais onde ocorre, tais como poluição - sonora e visual - e prejuízos ao bem público. Além disso, a crescente migração de Chraetinus ignobilis de diversas partes do país para se concentrarem em um só lugar por vezes resulta em tumultos e em disputas por território entre os Chraetinus e outras espécies e entre os próprios Chraetinus . Tendo em vista a já mencionada simplicidade de sua caixa craniana, esses indivíduos por vezes são desprovidos de qualquer senso de orientação, o que só tende a se agravar com a também já mencionada mudança de hábitos alimentares.
Chegar a um veredicto final sobre a cretamia e os Chraetinus ignobilis que a praticam é difícil, até porque seus prejuízos costumam ser compensados pelos benefícios financeiros à região afetada. Como o presente artigo não pretende ser tendencioso, a única conclusão a que me permito chegar é a de que somente mais estudos e análises sobre o tema serão capazes de nos dar uma visão geral mais fiel do assunto, tendo em vista estarmos diante de um problema ainda pouco explorado e ao qual não tem sido dada a devida importância.


POSFÁCIO
Para entender o texto, desembaralhe a palavra "cretamia" e substitua-a; faça o mesmo com "sadaba" , lendo-a de trás para frente.


Caso continue não entendendo, troque Chraetinus ignobilis por micareteiro.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

A Bíblia e a pá: notas sobre o infanticídio amazônico

É cada vez mais estarrecedora a total falta de capacidade de tomar um caminho do meio para a qual a maioria das pessoas parece tender atualmente. Exemplo disso foi a polêmica criada em torno da recente - pelo menos para mim - divulgação de um vídeo na internet que mostrava um ritual indígena em uma tribo amazônica ainda pouco aculturada. O exótico ritual consiste em cavar um buraco de cerca de um metro de profundidade, ali mesmo, nas terras próximas à aldeia, e nesse buraco enterrar uma criança de seus sete ou oito anos de idade, viva, chorando de desespero. O significado do ritual eu ignoro. O desfecho do vídeo também, uma vez que não tive sangue frio o suficiente para assisti-lo até o final - alguns dizem que a criança se salva; duvido, mas tomara...E como se não bastassem os recentes eventos que se operaram na demarcação de terras indígenas na reserva Raposa/Serra do Sol, além da chocante cena veiculada há alguns meses atrás na qual um engenheiro era brutalmente atacado por indígenas com facões, temos mais uma vez o primeiro habitante do Brasil como o foco das atenções midiáticas.
Arrisco-me a dizer que nenhuma outra figura foi tão controvertidamente retratada pelos meios de comunicação nacionais como a figura do índio: de um estúpido incapaz nos árcades a heróis nacional exaltado pelos românticos, o índio assume uma postura cômica com os modernistas para depois fazer as vezes de símbolo vivo do atraso brasileiro na época da TV a cores: aquele homenzinho coitado, que não possui livre arbítrio e que depende de nós para se libertar do "jugo e da maldição da ignorância e do atraso".
Tão logo as minorias étnicas em nosso país passaram a ser valorizadas, com cotas para negros nas universidades e a necessidade de se repensar nossa história suscitada por ocasião do nosso "aniversário" de 500 anos, ser índio deixou de ser motivo de deboche e de piada para ocupar um espaço de singular destaque, o qual não se via desde José de Alencar e Gonçalves Dias.
E é exatamente nesse ressurgimento do orgulho índio; nesse momento tão propício ao desenvolvimento de novos mitos acerca de um possível bom selvagem do século XXI, que nos deparamos com as notícias de práticas de infanticídio vindas da tribo suruwaha, para a qual o enterro de crianças vivas constitui-se como parte de sua cultura. Momento mais oportuno para denunciar o sacrifício de crianças indígenas não poderia haver: ao mesmo tempo que acompanhamos a novela Raposa/Serra do Sol, celebramos a maioridade do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Mais chocante do que as cenas do ritual foi a forma como a opinião pública reagiu à elas, em dois grandes blocos bastante homogêneos e extremados, aos quais podemos chamar, de maneira simplificada porém acertada, de bloco das pás, por um lado, e bloco das Bíblias, por outro. Analisemos, pois, o bloco das Bíblias.
Os bíblicos têm uma visão bastante crítica do ritual infanticida suruwaha, bem como de todos os outros problemas reltivos à questão indígena, cuja solução é eficiente, fácil e simples, tão simples que pode ser encontrada na maioria dos lares brasileiros ou mesmo no criado mudo de qualquer indivíduo: Bíblias. Querem esses indivíduos acreditar que, um povo que não foi socializado sequer com as demais tribos indígenas que os rodeiam, irá aceitar e compreender toda uma série de conhecimentos, leis e princípios originários de uma realidade, um contexto e uma região totalmente diferentes dos seus. Em outras palavras: esperam que uma tribo dos confins da Amazônia baseie sua fé e sua crença em epopéias que narram a saga do povo de Moisés, Abraão e Davi errando pelos desertos da Palestina e fugindo do faraó do Egito.
As atrocidades cometidas contra crianças são um poderoso trunfo para os partidários da tese bíblica, levando-os a concluir que a solução para o problema dos rituais malignos dos índios é botar um fim à toda cultura indígena e fazê-los aceitar o cristianismo. Talvez eles nunca tenham parado para pensar que a solução encontrada para por fim aos tribunais da Santa Inquisição da Idade Média passou muito longe de abolir a religião católica...
Articulados com o bloco bíblico estão seres não tão imbuídos de um espírito jesuítico mas igualmente brilhantes em seus argumentos: são os civilizados exemplares. Civilizados exemplares são todos aqueles que sentem verdadeiro pânico de antropólgos, sociólgos, etnólogos e tantos outros -ólogos que se prestam a estudar e compreender outras culturas mais a fundo. Para eles, a civilização Ocidental, apesar de toda sua magnificência, supremacia e inquestionável autoridade, carrega um pesado fardo: o árduo dever de moldar todas as outras sociedade e civilizações à sua imagem e semelhança.
Os civilizados exemplares se indignam ao ver rituais macabros de crianças sendo enterradas vivas, ridicularizam os defensores dos direitos indígenas, questionando-os se eles deixariam que fosse feito aquilo com seus filhos, e defendem uma aculturação rápida e imediata dos índios a fim de dar um basta a práticas horrendas como essa. O padrão de sociedade pelo qual todos deveriam se guiar é o padrão Ocidental, afinal de contas, nós não enterramos nossas crianças em nossos jardins, enterramos? Nós deixamos nossas crianças morrendo de fome nas sarjetas; nos acostumamos a ver meninos que nem sequer largaram a chupeta errando pelos sinais de trânsito todos os dias apenas para continuarem vivos, mesmo sabendo o quão miserável essa vida é; vivemos nossas vidas e nossos prazeres no conforto de nossas residências como se todo o mundo lá fora fosse pacífico como a nossa sala de estar, enquanto o crime ceifa vidas e ganha cifras cadas vez mais assustadoras nos jornais; reelegemos, ano após ano, aqueles mesmos políticos que desviam verbas da educação, saúde e moradia para seus próprios bolsos em detrimento de milhares de crianças e jovens; somos coniventes com um sistema educacional que exclui milhares de jovens do acesso à educação de qualidade; aceitamos de cabeça baixa a lei das selvas que rege o tal mercado de trabalho, que premia um número cada vez menor de pessoas em detrimento de um número cada vez maior de excluídos - nós até achamos essas leis bastante sedutoras, temos um certo fetiche por elas, afinal, quem nunca presenciou a hilária cena de um jovem engravatado de maleta na mão, ansioso para sua primeira entrevista, preocupado em parecer atraente ao mercado de trabalho? Vivemos todos sob um sistema que nos mastiga e nos tritura com uma força cada vez maior, e no entanto seguimos lutando mais para não sermos engolidos do que do que para tentar mudá-lo. Mas enterrar crianças vivas? Isso jamais!
O pé-de-guerra que se criou com essa situação não estaria consolidado se não contasse com a presença de um outro bloco, diametralmente oposto mas igualmente excêntrico: o bloco das pás. Qual a diferença para o bloco da Bíblia? Está na cara: para estes a solução é distribuir Bíblias, para aqueles, é distribuir pás, ou seja, deixar que os índios continuem cavando buracos e enterrando suas crianças vivas dentro deles, afinal, essa é a cultura indígena e ela deve ser preservada.
O bloco das pás é formado por toda sorte de pseudo-intelectualóides aplicados nos saberes antropológicos, etnológicos e sociológicos. É toda aquela gente revoltada com a imposição de valores à força, que acha que a diversidade cultural é, no final das contas, tudo o que importa de verdade. Gente dessa estirpe é contra a imposição de modos de vida, mas impõe que a diversidade étnico-cultural deve reinar acima de tudo - até mesmo do corpo de uma criança.
Fazendo coro com essa elite intelectual estão os defensores dos direitos indígenas, ávidos também por preservar suas práticas e seus rituais, por mais estranhos que eles possam parecer aos olhos do homem branco. O mais interessante é notar que esses mesmos indigenistas que defendem o infanticídio como prática cultural cuspiram marimbondos quando o índio pataxó Galdino dos Santos teve seu corpo carbonizado em um ato estúpido há onze anos atrás. Ao que não posso deixar de me questionar: e se Galdino tivesse sido vítima de um ritual de magia negra? Por que condenar a sua morte se, afinal de contas, esta se daria obedecendo à uma prática cultural? E vou mais longe: os jovens que queimaram Galdino não fizeram, afinal de contas, uma prática cultural? Não é da nossa cultura, da cultura de nossa juventude, praticar atos que impressionem nossos amigos, fazer programas exóticos, divertir-se brincando com o perigo? Por que então nossa cultura de queimar corpos é condenável e a cultura suruwaha de enterrar corpos não?
É claro, Galdino era um índio, não tinha nada a ver com nossa sociedade e suas práticas e por isso não merecia ser vítima de uma brutalidade dessas. Perfeito. E o indiozinho que foi enterrado aos prantos na selva amazônica? Ele também não tem o direito de escolher se quer ou não fazer parte daquela cultura? Nossos cientistas sociais ficam perplexos ao ver filhos que são forçados pelos pais a ir à Igreja todos os domingos; defendem que a criança deve ter o direito de escolher a religião que quer seguir e a maneira como quer segui-la, mas não admitem que a criança suruwaha também tenha o direito de não querer ser enterrada viva. O pai que faz o filho ir à Igreja contra a vontade dele é um ditador fascista; o pai que enterra uma criança viva na selva amazônica contra a vontade dela está só mantendo uma tradição.
Se tivéssemos de aceitar tudo aquilo que passa sob nossos olhos apenas sob o pretexto de que é algo cultural, até hoje a Europa estaria ardendo sob as fogueiras da Inquisição. Pois não era em nome de Deus todo poderoso que nossos antepassados mandavam bruxas para morrer? Não era isso parte da tradição católica?
Enfim, vendo os dois lados do confronto e não achando qualquer sentido em nenhuma das duas defesas, a única conclusão a que cheguei foi que nenhum dos dois lados chegará a uma conclusão sensata sobre o assunto. Uma conclusão que permita colocar um fim à morte de crianças inocentes sem que para isso se coloque fim à uma cultura. Só existe cultura porque existe vida; logo, a vida vem antes da cultura, e querer sacrificar aquela em nome desta deve ser algo condenável em qualquer credo ou não-credo do mundo. Os pró-indígenas sabem que há crianças índias morrendo de fome e doenças em diversas aldeias do país; os missionários evangélicos sabem que Abraão aceitou sacrificar seu filho a Deus, tal como os suruwaha - embora as pobres crianças nem sempre tenham a mesma sorte de Isaac. Enquanto o homem for incapaz de enxergar um caminho que não seja pura e simplesmente a Bíblia ou a pá, o mundo continuará caminhando torto, em guinadas e arranques, hora pra esquerda, hora pra direita, sem nunca seguir em frente.

domingo, 24 de agosto de 2008

Poema concreto

Fiz castelos na areia

Tão bonitos ficaram

Mas veio uma onda feia

E eles então
desabaram...

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Tipos ideais: o estudante de relações internacionais (vulgo internacionalóide)

Ultimamente tenho ouvido o rádio com muita freqüência, e quase sempre me deparo com aqueles programas do fundo do baú, que resgatam músicas antigas daquelas que já nos cansamos de ouvir mas nem nos lembramos mais. A impressão que isso me dá é que as pessoas já não conseguem mais inventar, e acham na reciclagem musical, artística e cultural a única maneira de permanecer fazendo sucesso. Pois bem, já que os cantores não conseguem mais inovar, nós do hiperativo-categórico.blogspot também decidimos não inovar nas postagens, de modo que estamos aqui de volta - após um longo período estagnado - com um tema já quase exaurido: o dos tipos ideais! O texto a seguir apresenta o tipo ideal do estudante de relações internacionais. Inicialmente, meu objetivo era publicá-lo no jornalzinho do CAIK - o centro acadêmico de relações internacionais da PUC-Minas - mesmo sabendo que seus editores dificilmente o aceitariam. Mas vieram as tormentas, as provas e trabalhos de faculdade e de repente não pude mais me dar ao luxo de continuar o artigo, que ficou um bom tempo pela metade. Conclui-o hoje. Espero que vocês aproveitem - mais do que eu venho aproveitando as músicas ressuscitadas pelas rádios.

O grande sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) introduziu, no seu campo de estudos, a noção de "tipos ideais". De acordo com Weber, o conhecimento, longe de ser uma representação fiel da realidade, era apenas uma mera aproximação, o que implica que um determinado objeto de estudo é analisado de acordo com sua maior ou menor aproximação em relação a um tipo ideal correspondente.
Weber trabalhou sobretudo com o tipo ideal do protestante, que, anos antes, era uma figura essencial nos processos históricos. Eu - humilde que sou - me restringirei aqui a elaborar um tipo ideal historicamente menos importante, mas igualmente em ascensão: o tipo ideal do estudante de relações internacionais (RI).
O estudante ideal de RI é, não raro, aquele sujeito que passou um ano no exterior de intercâmbio - de preferência em um país rico, como Estados Unidos, Austrália ou Canadá - e, maravilhado com os encantos que observou lá fora, retornou ao Brasil decidido a fazer relações internacionais numa chula tentativa de imortalizar seu intercâmbio e reviver as suas glórias. O estudante ideal de RI tem um quê de Napoleão III, uma vontade louca de reavivar o passado, um sentimento inexplicável de retornar ao que já morreu. E, tal como Napoleão III, acaba incorrendo em sérias mancadas.
Durante seu tempo de intercâmbio, o típico estudante de RI absorveu cada metro cúbico da cultura e do modo de ser do país onde ele viveu; morreu de saudades do Brasil - saudades confessas - mas, logo que retornou às suas origens, se embuíu de uma "psicose retornista" (o termo é nosso) e, seja por uma vontade de acertar contas com o passado, seja por uma necessidade de esbanjar seu "status internacional", ele recusou a desgarrar-se da sua quimera internacionalista: agora ele só come no McDonalds, só assiste à CNN ou à BBC, só acompanha o campeonato inglês de futebol, só lê as notícias do mundo. Em outras palavras: seu corpo retorna, mas sua mente permanece vagando numa dimensão espaço-tempo paralela à realidade. Não tem mais jeito: nosso estudante vive em um eterno intercâmbio.
A entrada no curso de relações internacionais é o último passo para a concretização desse tipo ideal. Não bastasse sua alma internacionalóide, ele ainda aprende muito mais: aprende sobre a integração econômica européia, a balança de poder na África Oriental, a política externa dos Estados Unidos, as disputas fronteiriças nos Bálcãs, as relações bilaterais China-Índia, o crescimento econômico japonês, a escalada dos conflitos no Curdistão, a guerrilha tâmil no Sri Lanka... E agora - pergunto eu, e também há de se perguntar nosso estudante ideal - o que faremos com tudo isso? Qual sera a utilidade de um brasileiro que conhece o mundo como a palma de sua mão, mas é um estranho no próprio solo em que está pisando? Onde quer chegar esse sujeito, que enuncia sem hesitar todos os passos da guerra do Iraque, mas é incapaz de saber qual a conjuntura política de seu estado? O que esperar de um ser que aspira a analista internacional mas não tem a mínima noção de qual foi a última decisão que o governo federal tomou em relação à educação?
O tipo ideal do estudante de RI carrega um discurso louvável de querer representar o Brasil no mundo, mas nem ao menos sabe o que esse Brasil é. Em suma: ele quer representar algo que ele ignora, assegurar os interesses de um ente desconhecido. Sabe de tudo o que se passa pela vizinhança, mas não sabe nem se orientar entre os cômodos de sua residência. Apesar disso tudo, não nos enganemos: nem só de lamentos é feito o tipo ideal do internacionalóide. Ele também nos diverte!
Fazer um intercâmbio e entrar no curso de RI equivale a nunca mais pronunciar um palavrão em português. Por algum motivo, falar palavras chulas em inglês confere ao nosso estudante um certo status, fazendo-o sentir-se um nobre em meio aos párias. Assim, entre shits, damn yous, darn its e fuck yous, o estudante ideal de RI vai ganhando confiança e se sentindo cada vez mais prepotente - os seus xingamentos ganham um tom muito mais humilhante se pronunciados de forma anglófona do que na língua pátria que, de fato, só continua sendo utilizada por nosso herói por mera conveniência social. Se ele pudesse falaria inglês sempre, não por achar mais simples ou mais prático mas, como já mencionado acima, porque dá status. O típico estudante de RI não perde a pompa, e por isso nunca deixa passar a oportunidade de mostrar aos outros sua mente globalizada. E para aqueles que pensam que um ano vivendo no exterior foi o suficiente para satisfazer a fome internacionalóide de nosso estudante ideal, aqui vai a contundente prova em contrário.
Tão logo retorna de seu intercâmbio, o internacionalóide não sossega o rabo e continua bolando novos planos mirabolantes para sair do país. Agora, cidadão do mundo que ele é - ou ao menos se acha -, o planeta virou sua casa, pela qual ele se sente livre para circular sem temer. A moda então vira fazer mochilões: colocar a casa nas costas e viajar pela América do Sul ou - no caso dos mais ousados - pela Europa, junto com os amigos. Tais planos também fazem parte da estratégia de reviver o intercâmbio mas, tal como o 18 Brumário de Luís Bonaparte, incorrem em grandes farsas pois que nunca se concretizam. Só aí nosso estudante ideal começa a se tocar que a vida não é uma grande viagem.
E nem só de mochilões vivem esses seres frustrados. A nova onda dos ex-intercambistas é fazer voluntariado na África. O estudante de RI chega à uma certa altura do curso na qual se sente totalmente comovido pelas agruras que enfrentam as crianças da África Subsaariana, levando-o desesperadamente a torrar alguns milhares de reais...perdão, de dólares (o estudante ideal de RI sempre fala os preços em dólar, a fim de mostrar a todos o quanto ele está bem-informado do mercado de câmbio) em programas que treinam voluntários para prestar assistência ao sofrido povo africano. Nessas alturas do campeonato, nossa figura já se encontra num estado de profundo apatia em relação ao seu país, fazendo-o ignorar que ele mora num lugar onde 90 milhões de pessoas vivem na miséria, sendo mais da metade desses indivíduos habitantes das cerca de 16 mil favelas que, de tempos em tempos, se proliferam pelo Brasil. À essas alturas, em meio a tantos bombardeios no Iraque, quedas na bolsa de New York e investimentos alemães no Japão, o estudante ideal de RI se esquece que seu país é campeão de desigualdade de renda, e que na esquina mais próxima de sua casa é possível achar uma criança passando fome.
Por que então gastar tempo e dinheiro indo até a África se tem gente precisando de ajuda aqui? É simples; tudo se resume a uma só palavra: status. Dá status exibir toda sua pujança financeira a fim de ajudar os miseráveis do continente africano. O jovem que vai até a África para ajudar quem sofre é um sujeito de grande sentimento humanitário, alma caridosa e bondosa; um cidadão do mundo consciente e preocupado com suas mazelas. O jovem que se presta a fazer trabalho voluntário na favela na rua de trás da sua casa é só um assistentezinho social fracassado.
Após fazer uma análise tão acurada desse tipo ideal, acho importante fazer algumas ressalvas, antes que coloquem minha cabeça a prêmio nos murais do CAIK. Antes de mais nada, caso o leitor desavisado não o saiba, também sou estudante de RI e também já fiz intercâmbio um ano no exterior; logo, eu também me aproximo em maior ou menor grau do estudante ideal aqui representado. Dessa forma, gostaria que todos enxergassem nesse artigo não tanto um mecanismo pra esculhambar meus colegas, mas sim que vissem o teor auto-crítico que ele possui. Ao contrário - e muito ao contrário - do vestibulando feliz, do jovem motorista independente e do missionário ateu, eu me identifico sim um pouco com o típico estudante de RI, ainda que essa identificação muito me perturbe. Nós, do hiperativo-categórico.blogspot não temos, na elaboração dos tipos ideais, a finalidade de desmoralizar ninguém, apenas a de construir um retrato escrito da juventude que me cerca e que tanto me intriga. O internacionalóide é só mais um componente dela.
E por fim, caso esse artigo seja lido por um de meus colegas de curso, saiba ele que não precisa se sentir ofendido. Não escrevi essas linhas com nenhum de vocês em mente, e portanto elas não se dirigem a ninguém em especial. Afinal de contas, como já fiz questão de frisar logo no início, tipos ideais são - como o próprio nome diz - ideais, não existindo pois correspondentes fieis na realidade. Logo, a figura aqui relatada simplesmente não existe, seja na PUC ou em qualquer outro curso de relações internacionais espalhado pelo Brasil, ao que não posso deixar de expressar o meu alívio: ainda bem.

sábado, 22 de março de 2008

Tipos ideais: o cinéfilo

Hoje resolvi retomar o tema dos tipos ideais, seja porque já faz um tempo que não escrevo, seja porque minha tentativa de dedicar um post aos micareteiros não logrou êxito - e eu, então, continuei sentindo a necessidade de alfinetar alguém. Acredito que esta é uma semana propícia para escrever, dado o atual estágio evolutivo de minhas forças sentimentais...
O tipo ideal aqui retratado será o do cinéfilo - essa figurinha quixotesca que habita os principais sebos, cinemas alternativos e mostras de cinema de todo o país.
O cinéfilo é, antes de mais nada, aquele sujeito ao qual não se pode nem sugerir o nome de um filme comercial que ele já te olha com aquela cara de bunda e diz: "ah...esse aí é comercial não é?" ou, no caso dos mais agressivos, "desculpe, não assisto a filmes comerciais". Pois bem, o cinéfilo é dotado de uma doce e ingênua ilusão que o faz pensar que os diretores de filmes alternativos - estes, suas grandes paixões - são apenas figuras com muito dinheiro e pouca coisa pra fazer que, num belo dia, se levantam de suas poltronas e dizem: "estou entediado...acho que vou gravar um filme!". Em suma: esses diretores não fazem qualquer questão de lucrar com seus filmes - só os grandes diretores das super-produções cinematográficas se atrevem a saciar sua fome capitalista de lucros por meio da produção de filmes.
O cinéfilo ideal adentra o cinema munido de um incrível complexo de superioridade, que o faz olhar do alto todos os outros que ali estão, seja por diversão, seja pra namorar ou porque simplesmente não arrumaram outro programa para o final de semana. Aos olhos dele, toda aquela gentalha, com um baldão de pipoca e um copo de Coca-Cola, de mãos dadas, acompanhada da família ou dos amigos e conversando animadamente, não passa de um monte de "profanadores do templo da sétima arte", incapazes de "enxergar a beleza oculta em um filme", "insensíveis à essência da arte de se contemplar uma produção cinematográfica". Em suma: só ele se enxerga com um propósito nobre ali, naquela noite.
Logo que entra, o cinéfilo senta - claro - bem lá na frente, a fim de se livrar dos incrédulos. As primeiras fileiras, além de manterem-no bem próximo da tela, são, segundo ele, propícias a que possam fluir suas "reflexões e elucubrações a respeito da obra" - note que um cinéfilo raríssimas vezes chama o filme de filme, salvo quando vai esculachá-lo, o que, como veremos, não raro acontece.
O cinéfilo não pode jamais se ocupar de outras atividades enquanto assiste a um filme. Não surpreende, então, o fato de ele considerar uma afronta pessoas que comem ou namoram durante a exibição. Tanto é assim que, quando ele leva sua namorada não-cinéfila ao cinema, esta não pode nem pensar em segurar sua mão ou lhe pedir um humilde beijo alegando carência, no meio do filme. Tem mesmo é que se contentar em ver o seu amor de olhos vidrados em cada cena: ou com a cabeça levemente inclinada para frente - como quem é submetido a sessões de hipnose - ou com a mão segurando o queixo - apenas pra bancar de intelectual. E ela que não se atreva a lhe fazer qualquer tipo de pergunta a respeito do filme, pois que será duramente repreendida com um tapão na coxa, seguido ou não da dura: "presta atenção que você entende!", geralmente pronunciada com voz baixa e ríspida, tudo para puni-la pelo pecado de ter interrompido um cinéfilo durante sua apreciação - note também que os cinéfilos não assistem a filmes; eles apreciam-nos, ou, quando a obra é muito boa, degustam-na).
O acender das luzes seguido da exibição dos créditos finais é, diria eu, a parte mais traumática da convivência com um cinéfilo ideal. É nesse momento que ele esbanja seu acurado saber a respeito do tema, seja para fazer comentários inteligentes e confusos, que nem ele mesmo compreende - comentários estes expressos em alto e bom som pra que todos os demais ouçam e se embasbaquem com seu QI cinematográfico - seja para criticar e expressar sua insatisfação, alegando que esperava mais daquele diretor, "dados seus vários sucessos em produções como..." e ele se põe a citar todos os filmes do indivíduo em questão, tudo pra assegurar e provar seus conhecimentos, e talvez afrontar qualquer potencial divergente.
Um cinéfilo ideal saindo de uma sala de cinema é como uma mulher descendo da balança: raríssimas vezes está satisfeito. Por vezes ele alega que viu alguns erros de gravação que passaram desapercebidos pelos diretores. É comum também que ele reclame que o jogo de luz e sombra nas cenas mais soturnas do filme não seguiu os padrões adotados pela maioria dos diretores daquela geração, ou ainda que o grau de abstração dos diálogos entre figurantes e coadjuvantes foi deveras que ofuscou qualquer possível identificação protagonista-telespectador, fundamental para uma apreciação saudável da obra. Seguem-se a essas importantes observações algumas comparações entre o papel dos protagonistas naquele filme e suas atuações passadas. Ao não-cinéfilo que ouve essa série de fundamentais e relevantes considerações acerca do filme, só resta duas opções: passar por cinéfilo e concordar categoricamente com tudo aquilo que ele diz; ou ter a cara de dizer, sem qualquer escrúpulo: "ah, pois é... acho que depois que voltei do banheiro entrei na sala errada."
Sinceramente, não sei que conclusões tirar a respeito dessa figura. Só quero deixar claro que não pretendo, de modo algum, fazer desse texto uma auto-crítica, tendo em vista que sou freqüentador assíduo dos cinemas alternativos de Belo Horizonte. Ademais, também tenho minhas birras com aquela gente que assiste a um filme movida unicamente pelo seu estrondoso sucesso de bilheterias ou porque o ator/atriz principal é um/uma gostoso/gostosa (tal justificativa seria válida em caso de um filme pornô, mas isso já é assunto pra outra discussão). É a gente dessa laia que poderíamos dar o nome de anti-cinéfilos, por terem um comportamento diametralmente oposto ao deles - mas igualmente bizarro.
Mas anti-cinéfilos existem aos montes, e não sei se um estudo detalhado deles se faz interessante. Afinal de contas, como outrora disse um sujeito (que vem a ser, ninguém mais ninguém menos que eu mesmo): a graça de um artigo está escondida nas coisas que se escondem de nós (espero que isso faça algum sentido ao leitor).

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

18 de fevereiro!

Ontem descobri que odeio o passado. Descobri que tenho aversão a anúncios de eventos que já ocorreram, calendários desatualizados, jornais velhos que noticiam fatos já ocorridos como prestes a ocorrer e tudo mais que seja impregnado de algum teor pretérito, que não tenha qualquer importância para o dia de hoje. Tanto é que, ao reparar que na minha geladeira havia um calendário-ímã parado no mês de março de 2007, eu tremi. Aquele tremor que se sente sempre que estamos diante de algo que, temos certeza, não podemos recuperar. Até pensei em joga-lo fora hoje de manhã logo que acordei, mas relutei. Ou melhor, esqueci.

O que foi que aconteceu de tão bom em março de 2007, que pudesse despertar em mim qualquer tipo de saudosismo ou nostalgia? Certamente nada. Mas é o simples fato de saber que aquele tempo jamais voltará (exceto no calendário de algum desavisado que esqueceu de atualizá-lo) o que me faz supervalorizar suas boas memórias e ignorar as ruins, como se essas últimas fossem rebento unicamente do agora.

Certa vez meu avô escreveu, em um de seus poemas, que não gostava do passado, por ele ser recheado de boas lembranças. Uma pena eu ter captado o sentido dessa frase tão tardiamente, a ponto de já não ser mais possível parabenizá-lo pessoalmente. O máximo que posso fazer é exaltar o agora, e que melhor maneira de fazê-lo do que intitulando meu texto com o seu nome!

Hoje é dia 18 de fevereiro, e aparentemente nada de especial ocorrerá. Exalto-o pela pura certeza de que, em algum lugar no futuro ele será valioso.

Ultimamente, meu passatempo preferido tem sido contemplar o calendário focando-me no quadrinho que representa o dia de hoje. É um ótimo entretenimento para aqueles que, como eu, só conseguem ver a beleza de uma data como esperança futura ou nostalgia. O presente - já diz o nome - é, pra essas pessoas, uma dádiva, mas uma dádiva que nos recusamos a aceitar, seja porque pensamos que antes eles eram mais formosos, seja porque esperamos que no futuro eles serão melhores.

Enquanto matutava sobre aquelas questões relativas ao tempo, lembrei-me de uma das lições que a igreja me dava e as quais nunca consegui entender bem: ao mesmo tempo que éramos instruídos a viver o agora ("o pão nosso (...) nos dai hoje), tínhamos que atentar para a vinda do Messias no futuro.

Mais do que isso: lembrei da conversa que tive com um certo amigo meu que dizia que, ao longo de nossa vida, éramos observados pelos anjos a fim de que avaliassem se poderíamos ou não ir para o céu. Sendo assim, a cada ação ruim que fazíamos, uma ação boa seria anulada. Só então percebi a profundidade da coisa: um erro anula um acerto? Por Deus! É o CESPE-UnB quem elabora as provas de admissão para o céu!

Desde aquele dia, passei a agir com muita cautela. Enquanto acreditei na veracidade de tal relato, me tornei cada vez mais assíduo na casa do Senhor, afinal de contas, se o céu só admitia concursados, a igreja seria, de longe, o melhor curso preparatório.

Deixando um pouco de lado esse papo de tempo - mesmo que temporariamente -, só tenho a dizer que, passatempo melhor que o do calendário é só aquele de ficar plantado na sacada do prédio, no domingo à noite, esperando as pernas se cansarem e o sono chegar. É de lá de cima que contemplo a cidade e, antes de receber o sono esperado, só recebo inspiração pra escrever, o que só me agita e torna a espera pelo sono ainda mais demorada.

Quando era moleque e quase não conseguia ver direito sobre a grade da sacada, minha maior satisfação era esperar o ônibus que ia para o Sol Nascente passar. Tão logo ele passava, eu entrava novamente, mas não sem antes admira-lo, como um fenômeno que só ocorre no dia 29 de fevereiro, ou um cometa que rasga o céu brevemente e só reaparece para os nossos bisnetos verem.

Muitos anos depois, só o que eu vejo daquela minúscula varanda é a festa de 15 anos da noite anterior; quer dizer, seus resquícios: cadeiras jogadas, mesas abandonadas, uma ou outra sujeira no chão... Enfim, nada que lembre a inebriante agitação que tirou o meu sono no meio da madrugada. Assim como o mês de março de 2007 do meu calendário, aquela festa não volta mais...

Só a título de conclusão: hoje são 18 de fevereiro de 2008, o dia mais especial e notável da história até agora, unicamente porque só ele é o agora. Ele não morreu como muitos, e também não é um embrião como tantos outros. 18 de fevereiro de 2008!

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

2 décadas

Hoje Marcelo acordou relativamente cedo, apesar das férias e apesar de mais uma vez ter madrugado. Tão logo caiu em si, demorou um pouco pra se lembrar que era seu vigésimo aniversário. Talvez esse tenha sido o único incentivo pra que ele se levantasse.
Ao longo do dia, repensou esses vinte anos como um estudante preguiçoso folheando seu livro. De início, ficou indeciso entre comemorar seus vinte anos ou comemorar o primeiro aniversário de sua aprovação no vestibular da UFMG, que, por uma feliz ironia, acabou saindo também em um dia 29/1.
De súbito, decidiu comemorar só seus vinte anos - de indecisões, sua vida já estava cheia. E ao repensar essas duas décadas de vida, enxergou nelas uma síntese da história da humanidade. De início, temeu, pois teve o receio de carregar consigo tanto ódio, tanto mal e desgraça, ainda que em menor escala. Mas com tempo, se empolgou com a idéia de poder servir como a personificação da história mundial.
Até seus quatro ou cinco anos de idade, viveu Marcelo sua pré-história, dado que há poucos resquícios desse período em sua mente, que foi marcado por uma relativa inatividade intelectual, mas por seus primeiros contatos com o mundo.
Dos seis aos quatorze, ele experimentou seu Período Clássico: muito interessado em livros, adorava ler, escrever, compor poemas, desenhas...Logo demonstrou um grande interesse pela Geografia e pela História. Nutria grande simpatia pelos textos de Monteiro Lobato e padre Anchieta. Sonhava alto com ser marinheiro, monge budista e escritor...Ou até mesmo secretário-geral da Agência Internacional de Energia Atômica.
Mas os anos difíceis vieram, e, lá pelos seus quatorze ou quinze anos, mergulhou na sua Idade Média. Até então, Marcelo jamais se interessara muito quando o assunto era vestibular. Tão logo entrou no ensino médio, tomou pavor mortal desse fenômeno. Não fazia mais sentido ser feliz, para ele, enquanto o vestibular não fosse superado. Em pouco tempo, o menino dos livros que sonhava alto, embalado nos seus poemas e nos grandes homens em quem se espelhava, tornou-se rabugento, descrente do mundo e da vida. Afinal de contas, pra todos os seus sonhos havia uma vestibular como pedágio. Os livros, o prazer de escrever e de saber, foram abandonados...Ir à escola virou um drama diário, que ele reprimia por meio do cultivo de um amor pela ignorância. Sua lógica resumida era: "se não consigo ser sábio o bastante pra vencer o vestibular, então pro diabo com a sabedoria".
O tal vestibular, convertido no bicho-papão de sua adolescência, o fez buscar abrigo no futuro, no porvir. Assim que foi aprovado em uma seleção pra intercâmbio, depositou aí mesmo suas esperanças. Sim, aleluia! A Malásia o salvaria - ainda que temporariamente - de todas as desgraças que infestavam sua vida. Na Malásia não tem vestibular, nem escola pra se preocupar.
Muito mais do que isso, a Malásia era sua esperança de fugir de uma outra angústia além do vestibular: suas carências sentimentais. Marcelo sonhava em ser diplomata pra negociar frente a frente com todos os Castros, Kadaffis e Husseins que existissem no mundo, mas era incapaz de gracejar uma menina.
O intercâmbio veio, e com ele, a dura lição: a salvação não está no porvir. Aquele que vive de mirar o futuro e menosprezar o presente está fadado a permanecer para sempre na Idade Média. Felizmente, não foi assim com Marcelo.
Seu Renascimento se deu no meio de seu décimo-sétimo ano de vida, assim que retornou do intercâmbio. Suas carências sentimentais estavam quase supridas - ele finalmente conseguira seu primeiro beijo - mas o vestibular continuava vivo.
Não tinha outro jeito: era aceitar a realidade e se preparar pra acordar desse horrível pesadelo. O Renascimento não foi tiro e queda. Tal como na história do mundo, ele ainda guardava resquícios feudais...
Mas eis que o temido vestibular foi superado! Iniciava então seu período de luzes: as luzes da razão. Os livros, o saber e o amor por escrever, abandonados em sua Idade Média, foram retomados. As luzes da razão apagaram as trevas que o vestibular dissipara: era quase como uma revolução burguesa!
A apoteose de tal conquista se deu exatamente há um ano atrás, em seu décimo-nono aniversário. Com a Malásia conquistada - e depois abominada - e o vestibular superado, o que mais ele poderia querer?
Mas logo surgiram as contradições. Tal como o intercâmbio não fora um paraíso bíblico da forma que se esperava, a temida - mas agora conquistada - "federal" não era nenhuma redenção. As luzes da razão dissiparam as trevas, mas logo essa nova fase da vida de Marcelo começou a se parecer cada vez mais com a outra, a do vestibular macabro, a do medo e da tensão...
Já dizia Marx em seu cultuado Manifesto, que na passagem da sociedade feudal para o Estado burguês, só o que muda é a classe opressora, nunca a opressão. Se antes quem dominava era sua mentalidade avessa ao saber e ao agora, quem passara a dominar dessa vez era sua mentalidade racional, também reprimida outrora.
Mas, se as trevas se dissiparam e a razão não mais era oprimida, quem saiu perdendo com isso tudo?
Sim...Marcelo também tem sentimentos. A derrubada da velha ordem não fez cessar a opressão em que vivia sua classe sentimental. Um grito de pavor ainda ecoava, mesmo com o demônio do vestibular trespassado por uma lança, já sem sinais de vida.
Confiante que estava na razão e no saber como armas letais que derrubam tudo o que lhe vier de ameaça pelo caminho, Marcelo muito se assustou ao ver que nem tudo nele estava feliz. As bases de sua mentalidade racional hão de tremer sempre que seu lado sentimental insistir em se manifestar. Afinal de contas, classe proletária jamais escapará de suas angústias enquanto houver burguesia.
E agora, então? Agora Marcelo se encontra na berlinda da história. Não pode haver revolução sentimental sem uma classe racional fortemente consolidada, o que não é fato na vida de Marcelo. Quem sabe, no seu próximo aniversário ele não estará celebrando a derrubada de sua já antiquada mentalidade racional em favor de uma nova ordem: plena, serena e sem exploração?
A história condenará Marcelo por plágio? Deixem que outros 29´s de janeiro venham, e então saberemos.
E a propósito, é importante ressaltar, a título de conclusão, que Marcelo é, ninguém mais ninguém menos, que este quem vos fala! Ele prefere se descrever assim, na terceira pessoa, pelo mesmo motivo segundo o qual Brás Cubas achou conveniente se descrever depois de morto. Falar de si mesmo na terceira pessoa te desvincula de todas as suas responsabilidades por seus atos, além de evitar que um caráter excessivamente egoísta seja impregnado ao teto. Sendo assim, feliz aniversário Marcelo! Continue espelhando-se em seu livro de História do ensino médio para viver...

Tipos ideais: o missionário ateu

Teresópolis estava ótimo. Já Cabo Frio, decepcionou um pouco por dois motivos: um deles é que eu, há cinco anos que não ia à uma praia no Brasil, não via a hora de entrar no mar e sentir a areia entre os dedos novamente, mas cheguei naquela cidadezinha maldita e fui recebido por um tempo mais fechado que Bíblia de ateu.
E é justamente desse ser que iremos tratar hoje. Não qualquer ateu: mas o ateu missionário. Dando como já esclarecida, em meu último post, a questão acerca da minha autoridade pra estipular tais tipos, podemos então prosseguir com o assunto falando do missionário ateu ideal, que, apesar de carregar um título aparentemente contraditório, parece ser um dos tipos mais fáceis de se encontrar aproximações na realidade.
Fazer bundão em frente à igreja, aterrorizar os colegas religiosos e tentar provar a inexistência de Deus sentado em um botequim após ter lido livros com títulos nada presunçosos do tipo "Deus, um delírio" ou "Deus não existe" (os quais ele rapidamente transforma em seus chavões) são algumas das práticas mais corriqueiras desse ser, que se torna perfeitamente capaz de lamber o saco de qualquer personalidade que ele antes tinha por "um filho da puta" tão logo ele descobre que esse indivíduo não crê em Deus.
O missionário ateu ideal nem sempre foi ateu. Nasceu em uma família cristã e passou a enxergar a existência de Deus de maneira diferente lá pelos seus quinze anos de idade. Logo que passou a se declarar ateu, esse indivíduo começou a sofrer do que um certo psicólogo palestino chamou de "identificação com o agressor".
Ao tentar explicar a situação ambígua do Estado judeu como abrigando vítimas do genocídio nazista ao mesmo tempo que comete um outro genocídio - dessa vez contra o povo palestino -, o psicólogo afirmou que os judeus hoje se identificam com seus antigos agressores ao oprimirem refugiados e demais civis de origem palestina.
Pois então, nosso missionário ateu sofre desse mesmo mal: até atingir sua adolescência, foi vítima fácil dos mais diversos discursos e pregações religiosas. Mostrando-se sempre incomodado com tais falatórios, passou a abominá-los abertamente assim que abandonou sua religião. Mal sabe ele que acabara de assumir exatamente a mesma postura do padre ou do pastor que tanto o atazanara: agora é ele quem vai aprontar pregações, a fim de laicizar todos os seus amigos que crêem em Deus.
A cena que se segue é ridícula mas inevitável: o missionário ateu não suporta mais os crentes que buscam lhe re-converter, mas acaba herdando a mesma chatice deles ao olhar pra sua cara e te ridicularizar quando descobre que você vai à missa ou reza antes de dormir; se ele busca calar a boca dos fiéis que aterrorizam a toda hora os gentios, é apenas pra que sua verborragia atéia possa ecoar ainda mais ensurdecedoramente.
As contradições de nosso missionário da não-crença-em-Deus não param por aí. É que ele, revoltado que é contra o púlpito que tanto o influenciou em seu estágio inicial de vida, sente uma necessidade doentia de renegá-lo, de enxergá-lo como coisa do passado. Talvez porque sua convicção atéia seja tão fraca quanto seus argumentos que, segundo ele, "provam" a inexistência de Deus.
O missionário ateu então incorre em vícios. Vícios que servem perfeitamente para minar os "resquícios deístas" ainda nele impregnados, uma vez que contrariam ponto a ponto tudo o que ele costumava ouvir na igreja aos domingos. Vícios que minam, ainda mais, sua própria saúde.
Beber, ficar tonto a ponto de se acordar no dia seguinte jogado num terreno baldio e ter que checar se suas calças estão ou não arriadas, fazendo-o temer ter sido vítima de uma violação sexual enquanto estava em seu transe. Fumar uma quantidade colossal de cigarros, que aumenta quase que exponencialmente a cada semana, deixando sua respiração mais e mais débil, e seu fôlego mais e mais decadente. Gastar dinheiro com vícios que nada fazem além de destruí-lo aos poucos. Eis algumas novas atitudes que o referido missionário adota assim que larga sua crença em Deus para sempre.
Mas é claro que esses efeitos colaterais não duram pra sempre, e o fôlego de nosso missionário logo volta assim que ele começa a discursar entusiasticamente - qual pastor de igreja carismática - sobre os fiéis que gastam rios de dinheiro em doações a cada sessão do descarrego que vão, denunciando o quanto são alienados e facilmente submissos. Se ao menos o missionário ateu pudesse enxergar, na geladeira do boteco, a silhueta de um pastor trambiqueiro...
Mas ele não tem tempo pra isso - prefere buscar credibilidade por meio da citação de grandes autores.
Quando chega nesse estágio, o missionário ateu já está a ponto de pregar uma braçadeira negra em cada amigo seu que professa uma religião, a fim de segregá-los adequadamente.
Invocando Sobre a questão judaica, de Marx, ele enuncia o total descrédito que os ateus possuem mesmo dentro de um Estado laico. E a brilhante solução que ele parece encontrar pra essa questão é tomar a via extrema-inversa: desacreditar os que professam uma religião. Na concepção do ateu missionário, desconfiar de um ateu é um mal arraigado, mas desconfiar de um religioso é mera questão preventiva. Em outras palavras: ele apaga o fogo com um extintor movido a álcool. Ao mesmo tempo que o Estado burguês exclui os ateus a nível nacional, o missionário ateu exclui os religiosos a seu nível.
Enfim, se o leitor for uma figura próxima à do missionário ateu, terá concluído: "mais um FDP da TFP que fica escrevendo merda por aí". Ou se for um fiel daqueles que não perdem um domingo de culto e adoração, estará se lamentando: "é mais um que se desvia de seu caminho".
A verdade é que minha paciência anda esgotada tanto com um, como com outro. Estou enfrentando o fatídico destino que precisam enfrentar todos aqueles que escolhem andar no meio do caminho.
A minha falta de assiduidade na igreja me faz ser recebido com olhos suspeitos; o meu cristianismo confesso me faz alvo de escárnio de figuras próximas ao missionário ateu. Já não tenho mais saco pra missionários com ou sem cruz. Busco levar uma religião não tão apegada ao que vem do púlpito; mas os fiéis só entendem que eu não me apego ao púlpito, e os ateus, que eu tenho religião.
O tipo ideal do missionário ateu não me desperta repulsa como o vestibulando feliz, nem pena como o jovem motorista independente. Apenas admiração. Admiração ao ver como uma linhagem dessa espécie ainda não entrou em extinção.
Bom, tanto falamos dessa figura caricata e débil que nem pude contar o segundo motivo pelo qual Cabo Frio me decepcionou. Acontece que, pensava eu, se Teresópolis forneceu montanhas que me forneceram inspiração, Cabo Frio forneceria folias, que me forneceriam material de estudo: os micareteiros! espécie da qual sempre quis analisar o tipo ideal. O problema é que o tal Cabo Folia (algo da mesma estirpe do Lavras Fobia, que acontece aqui em setembro) tinha acabado logo antes de minha chegada, impedindo-me dedicar um post em homenagem a essa figura que, ao contrário do missionário ateu, está bem longe de entrar em extinção. Mas tudo bem. Oportunidades não faltarão, afinal de contas: nesse carnaval, "Mariana, aí vou eu!!".

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Tipos ideais: o vestibulando feliz

O grande sociólogo alemão Max Weber trabalhava, em suas pesquisas, com o conceito de tipos ideais, construtos mentais que consistiam na acentuação de um caráter da realidade a fim de se compreender situações corriqueiras. A realidade corresponderia, para Weber, a meras aproximações ou distanciamentos desse tipo ideal.
Hoje vamos trabalhar com um tipo extremamente relevante na nossa sociedade: o vestibulando feliz, que, inclusive, se manifesta vivamente nesta época do ano.
O vestibulando feliz ideal é, antes de mais nada, aquele que presta vestibular em ao menos uma instituição federal e, no dia marcado para divulgação do resultado final, faz morada em frente ao computador, esperando ver seu destino, atualizando incansavelmente a página da universidade e contribuindo para sobrecarregá-la de maneira colossal. Ao mesmo tempo, ele troca mensagens instantâneas com seus amigos confessando a sua apreensão, sua insegurança e, até, o que reside bem lá no seu âmago: "acho que dessa vez não deu...".
Mas, eis que após muita espera, sai a temida lista: ele passou no vestibular! caso contrário, não se trataria de um vestibulando feliz. Tão logo o vestibulando feliz tem acesso a tal informação, uma de suas primeiras atitudes, logo após dar gritos de alegria e alardear a notícia entre seus amigos na internet, é acessar seu Orkut e participar da comunidade intitulada "Ih, foi mal! A minha é federal!", que ostenta em sua foto um imponente e intimante brasão da República e reúne vários outros vestibulandos felizes que lá se encontram para compartilhar seu orgulho e - talvez ainda mais importante - ridicularizar os que não conseguiram alcançar o mesmo feito.
E de fato, o maior orgulho para o vestibulando feliz não é nem saber que, graças ao seu esforço e sua dedicação, ele passou; mas sim, saber que, por causa dele, dezenas de outros não passaram.
O vestibulando feliz, portanto, não ignora que ele enfrentou e venceu uma concorrência feroz, e o fato de ele ter desbancado os outros deixa de ser coadjuvante e acaba tomando a cena e tendo o papel principal, sobrepondo-se à alegria de ele mesmo ter passado.
Decorre disso tudo que, consumado o resultado positivo do vestibular, nosso vestibulando feliz encontra como fonte predileta de lazer atazanar os estudantes de universidades e faculdades particulares, seja conversando animadamente com seus outros amigos vestibulandos felizes, seja em tópicos postados na referida comunidade do Orkut.
Para eles, os candidatos que tentaram federal mas acabaram se contentando com a particularsão vítimas de um infortúnio cujos maiores causadores são suas respectivas incapacidades intelectuais - em outras palavras, suas burrices.
Tentou federal e não conseguiu? É burro. Tá na particular? É burro. Não deu conta de levar em frente a espartana rotina daqueles que almejam ingressar na federal? É burro.
E assim, com simples mas sinceras explicações, o vestibulando feliz, há pouco acostumado a se retorcer e contorcer mentalmente a fim de relatar, na mesa de prova, os prós e contras da transposição do São Francisco, o motivo pelo qual faz frio na Europa e calor na África ou o porquê da tração no fio no instante imediatamente posterior à aplicação da força de 100N num dado ponto do sistema de forças atuantes, reduz à uma simples palavra um problema que aflige a tantos. Fosse esse problema uma questão aberta de vestibular, ele teria se estrebuchado com uma tal explicação tão destituída de complexidade, e dificilmente, para infelicidade dele - e nossa-, se converteria num vestibulando feliz, digno de nossa análise.
Nessas alturas do campeonato, o vestibulando feliz mal se lembra que ele também já sofreu, ele também já se mostrou inseguro, ele também já chegou, no seu âmago, a crer que a batalha contra o vestibular não lhe daria mais chances. No entanto, vestibulando feliz que ele é, apenas finge jamais ter passado por tais provações - tal como Lula fecha os olhos para os tempos em que ainda cria que greves eram a solução - e age como se ele sempre estivesse convicto de sua vitória.
Ser vestibulando feliz, por fim, não requer apenas passar na federal e se deleitar com quem não o fez. O vestibulando feliz ideal também entra na vida universitária impregnado por um certo ufanismo, que o faz crente de que está lá para mudar o país; esperançoso de que exercerá sua profissão para transformar o mundo. O discurso de boas-vindas do reitor no primeiro dia de aula alimenta tal sentimento missionário, podendo até mesmo ser o responsável pro criá-lo.
Por conta disso, o vestibulando feliz não passaria de um adorável sonhador, não fosse sua total ignorância quanto a certos fatos básicos. Um deles é o de que um país e um mundo melhores se fazem com educação, mas educação não se faz com universidades que acolhem poucos e excluem "restos". E, como já vimos, é esse o charm que envolve a federal, do qual nosso vestibulando feliz jamais abriria mão, que o faz orgulhoso de estar onde está.
Mas ainda que ele aceite o peso da educação na construção de um mundo melhor, continua achando que a praga da educação se chama burrice. Desconhece ele o fato de que, ainda que todo vestibulando tivesse o Q.I. de Einstein, continuaria havendo gente naquelas faculdades particulares que eles tanto satirizam, unicamente porque não se trata de excesso de burrice nos pré-universitários, mas de escassez de carteiras nas universidades. De modo que as poucas vagas existentes ficam reservadas apenas ao "povo escolhido de Deus" que conseguiu marcar os X´s nos lugares certos e colorir as bolinhas do gabarito sem borrá-las nem riscar fora.
Enfim, só nos resta agradecer a Deus... ou melhor, a Weber, por ter nos ensinado que tipos ideais não passam de aproximações e não representações da realidade. Portanto, para nossa felicidade e segurança, jamais nos depararemos com um vestibulando feliz nu e crú tal como descrito aqui.
Para todos aqueles que ficaram com medo ao ler sobre tal criatura - eu mesmo senti até calafrios aos descrevê-la - vos digo o que mamãe dizia nas minhas noites de pesadelo: "é só a sua imaginação...".
Nos resta, no entanto, ter cuidado com as prováveis aproximações que pudermos por ventura encontrar por aí.