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terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Tipos ideais: o missionário ateu

Teresópolis estava ótimo. Já Cabo Frio, decepcionou um pouco por dois motivos: um deles é que eu, há cinco anos que não ia à uma praia no Brasil, não via a hora de entrar no mar e sentir a areia entre os dedos novamente, mas cheguei naquela cidadezinha maldita e fui recebido por um tempo mais fechado que Bíblia de ateu.
E é justamente desse ser que iremos tratar hoje. Não qualquer ateu: mas o ateu missionário. Dando como já esclarecida, em meu último post, a questão acerca da minha autoridade pra estipular tais tipos, podemos então prosseguir com o assunto falando do missionário ateu ideal, que, apesar de carregar um título aparentemente contraditório, parece ser um dos tipos mais fáceis de se encontrar aproximações na realidade.
Fazer bundão em frente à igreja, aterrorizar os colegas religiosos e tentar provar a inexistência de Deus sentado em um botequim após ter lido livros com títulos nada presunçosos do tipo "Deus, um delírio" ou "Deus não existe" (os quais ele rapidamente transforma em seus chavões) são algumas das práticas mais corriqueiras desse ser, que se torna perfeitamente capaz de lamber o saco de qualquer personalidade que ele antes tinha por "um filho da puta" tão logo ele descobre que esse indivíduo não crê em Deus.
O missionário ateu ideal nem sempre foi ateu. Nasceu em uma família cristã e passou a enxergar a existência de Deus de maneira diferente lá pelos seus quinze anos de idade. Logo que passou a se declarar ateu, esse indivíduo começou a sofrer do que um certo psicólogo palestino chamou de "identificação com o agressor".
Ao tentar explicar a situação ambígua do Estado judeu como abrigando vítimas do genocídio nazista ao mesmo tempo que comete um outro genocídio - dessa vez contra o povo palestino -, o psicólogo afirmou que os judeus hoje se identificam com seus antigos agressores ao oprimirem refugiados e demais civis de origem palestina.
Pois então, nosso missionário ateu sofre desse mesmo mal: até atingir sua adolescência, foi vítima fácil dos mais diversos discursos e pregações religiosas. Mostrando-se sempre incomodado com tais falatórios, passou a abominá-los abertamente assim que abandonou sua religião. Mal sabe ele que acabara de assumir exatamente a mesma postura do padre ou do pastor que tanto o atazanara: agora é ele quem vai aprontar pregações, a fim de laicizar todos os seus amigos que crêem em Deus.
A cena que se segue é ridícula mas inevitável: o missionário ateu não suporta mais os crentes que buscam lhe re-converter, mas acaba herdando a mesma chatice deles ao olhar pra sua cara e te ridicularizar quando descobre que você vai à missa ou reza antes de dormir; se ele busca calar a boca dos fiéis que aterrorizam a toda hora os gentios, é apenas pra que sua verborragia atéia possa ecoar ainda mais ensurdecedoramente.
As contradições de nosso missionário da não-crença-em-Deus não param por aí. É que ele, revoltado que é contra o púlpito que tanto o influenciou em seu estágio inicial de vida, sente uma necessidade doentia de renegá-lo, de enxergá-lo como coisa do passado. Talvez porque sua convicção atéia seja tão fraca quanto seus argumentos que, segundo ele, "provam" a inexistência de Deus.
O missionário ateu então incorre em vícios. Vícios que servem perfeitamente para minar os "resquícios deístas" ainda nele impregnados, uma vez que contrariam ponto a ponto tudo o que ele costumava ouvir na igreja aos domingos. Vícios que minam, ainda mais, sua própria saúde.
Beber, ficar tonto a ponto de se acordar no dia seguinte jogado num terreno baldio e ter que checar se suas calças estão ou não arriadas, fazendo-o temer ter sido vítima de uma violação sexual enquanto estava em seu transe. Fumar uma quantidade colossal de cigarros, que aumenta quase que exponencialmente a cada semana, deixando sua respiração mais e mais débil, e seu fôlego mais e mais decadente. Gastar dinheiro com vícios que nada fazem além de destruí-lo aos poucos. Eis algumas novas atitudes que o referido missionário adota assim que larga sua crença em Deus para sempre.
Mas é claro que esses efeitos colaterais não duram pra sempre, e o fôlego de nosso missionário logo volta assim que ele começa a discursar entusiasticamente - qual pastor de igreja carismática - sobre os fiéis que gastam rios de dinheiro em doações a cada sessão do descarrego que vão, denunciando o quanto são alienados e facilmente submissos. Se ao menos o missionário ateu pudesse enxergar, na geladeira do boteco, a silhueta de um pastor trambiqueiro...
Mas ele não tem tempo pra isso - prefere buscar credibilidade por meio da citação de grandes autores.
Quando chega nesse estágio, o missionário ateu já está a ponto de pregar uma braçadeira negra em cada amigo seu que professa uma religião, a fim de segregá-los adequadamente.
Invocando Sobre a questão judaica, de Marx, ele enuncia o total descrédito que os ateus possuem mesmo dentro de um Estado laico. E a brilhante solução que ele parece encontrar pra essa questão é tomar a via extrema-inversa: desacreditar os que professam uma religião. Na concepção do ateu missionário, desconfiar de um ateu é um mal arraigado, mas desconfiar de um religioso é mera questão preventiva. Em outras palavras: ele apaga o fogo com um extintor movido a álcool. Ao mesmo tempo que o Estado burguês exclui os ateus a nível nacional, o missionário ateu exclui os religiosos a seu nível.
Enfim, se o leitor for uma figura próxima à do missionário ateu, terá concluído: "mais um FDP da TFP que fica escrevendo merda por aí". Ou se for um fiel daqueles que não perdem um domingo de culto e adoração, estará se lamentando: "é mais um que se desvia de seu caminho".
A verdade é que minha paciência anda esgotada tanto com um, como com outro. Estou enfrentando o fatídico destino que precisam enfrentar todos aqueles que escolhem andar no meio do caminho.
A minha falta de assiduidade na igreja me faz ser recebido com olhos suspeitos; o meu cristianismo confesso me faz alvo de escárnio de figuras próximas ao missionário ateu. Já não tenho mais saco pra missionários com ou sem cruz. Busco levar uma religião não tão apegada ao que vem do púlpito; mas os fiéis só entendem que eu não me apego ao púlpito, e os ateus, que eu tenho religião.
O tipo ideal do missionário ateu não me desperta repulsa como o vestibulando feliz, nem pena como o jovem motorista independente. Apenas admiração. Admiração ao ver como uma linhagem dessa espécie ainda não entrou em extinção.
Bom, tanto falamos dessa figura caricata e débil que nem pude contar o segundo motivo pelo qual Cabo Frio me decepcionou. Acontece que, pensava eu, se Teresópolis forneceu montanhas que me forneceram inspiração, Cabo Frio forneceria folias, que me forneceriam material de estudo: os micareteiros! espécie da qual sempre quis analisar o tipo ideal. O problema é que o tal Cabo Folia (algo da mesma estirpe do Lavras Fobia, que acontece aqui em setembro) tinha acabado logo antes de minha chegada, impedindo-me dedicar um post em homenagem a essa figura que, ao contrário do missionário ateu, está bem longe de entrar em extinção. Mas tudo bem. Oportunidades não faltarão, afinal de contas: nesse carnaval, "Mariana, aí vou eu!!".

Um comentário:

Marieta Lilas disse...

Marcelo, você é escritor brilhante!Você demonstra grande capacidade para colocar no papel suas ideias e muita maturidade.Beijos!