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terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Tipos ideais: o vestibulando feliz

O grande sociólogo alemão Max Weber trabalhava, em suas pesquisas, com o conceito de tipos ideais, construtos mentais que consistiam na acentuação de um caráter da realidade a fim de se compreender situações corriqueiras. A realidade corresponderia, para Weber, a meras aproximações ou distanciamentos desse tipo ideal.
Hoje vamos trabalhar com um tipo extremamente relevante na nossa sociedade: o vestibulando feliz, que, inclusive, se manifesta vivamente nesta época do ano.
O vestibulando feliz ideal é, antes de mais nada, aquele que presta vestibular em ao menos uma instituição federal e, no dia marcado para divulgação do resultado final, faz morada em frente ao computador, esperando ver seu destino, atualizando incansavelmente a página da universidade e contribuindo para sobrecarregá-la de maneira colossal. Ao mesmo tempo, ele troca mensagens instantâneas com seus amigos confessando a sua apreensão, sua insegurança e, até, o que reside bem lá no seu âmago: "acho que dessa vez não deu...".
Mas, eis que após muita espera, sai a temida lista: ele passou no vestibular! caso contrário, não se trataria de um vestibulando feliz. Tão logo o vestibulando feliz tem acesso a tal informação, uma de suas primeiras atitudes, logo após dar gritos de alegria e alardear a notícia entre seus amigos na internet, é acessar seu Orkut e participar da comunidade intitulada "Ih, foi mal! A minha é federal!", que ostenta em sua foto um imponente e intimante brasão da República e reúne vários outros vestibulandos felizes que lá se encontram para compartilhar seu orgulho e - talvez ainda mais importante - ridicularizar os que não conseguiram alcançar o mesmo feito.
E de fato, o maior orgulho para o vestibulando feliz não é nem saber que, graças ao seu esforço e sua dedicação, ele passou; mas sim, saber que, por causa dele, dezenas de outros não passaram.
O vestibulando feliz, portanto, não ignora que ele enfrentou e venceu uma concorrência feroz, e o fato de ele ter desbancado os outros deixa de ser coadjuvante e acaba tomando a cena e tendo o papel principal, sobrepondo-se à alegria de ele mesmo ter passado.
Decorre disso tudo que, consumado o resultado positivo do vestibular, nosso vestibulando feliz encontra como fonte predileta de lazer atazanar os estudantes de universidades e faculdades particulares, seja conversando animadamente com seus outros amigos vestibulandos felizes, seja em tópicos postados na referida comunidade do Orkut.
Para eles, os candidatos que tentaram federal mas acabaram se contentando com a particularsão vítimas de um infortúnio cujos maiores causadores são suas respectivas incapacidades intelectuais - em outras palavras, suas burrices.
Tentou federal e não conseguiu? É burro. Tá na particular? É burro. Não deu conta de levar em frente a espartana rotina daqueles que almejam ingressar na federal? É burro.
E assim, com simples mas sinceras explicações, o vestibulando feliz, há pouco acostumado a se retorcer e contorcer mentalmente a fim de relatar, na mesa de prova, os prós e contras da transposição do São Francisco, o motivo pelo qual faz frio na Europa e calor na África ou o porquê da tração no fio no instante imediatamente posterior à aplicação da força de 100N num dado ponto do sistema de forças atuantes, reduz à uma simples palavra um problema que aflige a tantos. Fosse esse problema uma questão aberta de vestibular, ele teria se estrebuchado com uma tal explicação tão destituída de complexidade, e dificilmente, para infelicidade dele - e nossa-, se converteria num vestibulando feliz, digno de nossa análise.
Nessas alturas do campeonato, o vestibulando feliz mal se lembra que ele também já sofreu, ele também já se mostrou inseguro, ele também já chegou, no seu âmago, a crer que a batalha contra o vestibular não lhe daria mais chances. No entanto, vestibulando feliz que ele é, apenas finge jamais ter passado por tais provações - tal como Lula fecha os olhos para os tempos em que ainda cria que greves eram a solução - e age como se ele sempre estivesse convicto de sua vitória.
Ser vestibulando feliz, por fim, não requer apenas passar na federal e se deleitar com quem não o fez. O vestibulando feliz ideal também entra na vida universitária impregnado por um certo ufanismo, que o faz crente de que está lá para mudar o país; esperançoso de que exercerá sua profissão para transformar o mundo. O discurso de boas-vindas do reitor no primeiro dia de aula alimenta tal sentimento missionário, podendo até mesmo ser o responsável pro criá-lo.
Por conta disso, o vestibulando feliz não passaria de um adorável sonhador, não fosse sua total ignorância quanto a certos fatos básicos. Um deles é o de que um país e um mundo melhores se fazem com educação, mas educação não se faz com universidades que acolhem poucos e excluem "restos". E, como já vimos, é esse o charm que envolve a federal, do qual nosso vestibulando feliz jamais abriria mão, que o faz orgulhoso de estar onde está.
Mas ainda que ele aceite o peso da educação na construção de um mundo melhor, continua achando que a praga da educação se chama burrice. Desconhece ele o fato de que, ainda que todo vestibulando tivesse o Q.I. de Einstein, continuaria havendo gente naquelas faculdades particulares que eles tanto satirizam, unicamente porque não se trata de excesso de burrice nos pré-universitários, mas de escassez de carteiras nas universidades. De modo que as poucas vagas existentes ficam reservadas apenas ao "povo escolhido de Deus" que conseguiu marcar os X´s nos lugares certos e colorir as bolinhas do gabarito sem borrá-las nem riscar fora.
Enfim, só nos resta agradecer a Deus... ou melhor, a Weber, por ter nos ensinado que tipos ideais não passam de aproximações e não representações da realidade. Portanto, para nossa felicidade e segurança, jamais nos depararemos com um vestibulando feliz nu e crú tal como descrito aqui.
Para todos aqueles que ficaram com medo ao ler sobre tal criatura - eu mesmo senti até calafrios aos descrevê-la - vos digo o que mamãe dizia nas minhas noites de pesadelo: "é só a sua imaginação...".
Nos resta, no entanto, ter cuidado com as prováveis aproximações que pudermos por ventura encontrar por aí.

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