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quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

A saga de N. (II)

E eis que N. era um jovem e exímio pintor, cujas mãos, mais do que pintar, faziam maravilhas com o pincel, a tinta e a tela. Seu talento era tamanho que atraía pessoas de todas as regiões ao redor para contemplar e adquirir suas obras, não se importando em pagar por elas preços exorbitantes, de tão lindas que eram. Duas pessoas tinham especial apreço pela obra de N.. Admiravam-no tanto, que até o contrataram como seu pintor particular.

Uma dessas pessoas era um senhor que morava sozinho e vivia em uma casa sombria. Todo final de semana, N. ia até sua residência e lhe pintava um quadro, cujo tema era sempre sugerido pelo senhor. Este, no entanto, tinha um gosto quase obsessivo por cores escuras e sóbrias, como o cinza e o preto. Sendo assim, sempre que julgava que o artista tinha abusado um pouco das cores vivas, o senhor o repreendia, batendo em sua mão esquerda com um martelo. Repetia tal atitude religiosamente, sempre que notasse qualquer manifestação de cores vivas no quadro, por mais discreta que fosse.

Por outro lado, N. também era o pintor particular de uma senhora que habitava uma casa amplamente iluminada pela luz do sol, à beira de uma simpática lagoa. A senhora gostava muito de cores vivas e pulsantes em seus quadros, de modo que, sempre que N. fizesse um uso significativo de cores tristes e escuras, ela o punia com uma martelada na mão direita. Por desprezível que possa parecer, a senhora nunca mostrou escrúpulos por tal atitude

N. sempre se resignava diante desses maus tratos. Sua mão doía e se danificava cada vez mais, mas cada vez mais ele procurava agradar a seus respectivos patrões. Quanto mais ele escurecia as pinturas do senhor, no entanto, mais exigente este se tornava e mais marteladas lhe dava; quanto mais clareava as obras da senhora, mais exigente se lhe apresentava e mais marteladas eram necessárias.

N. chegou aos seus quarenta anos de idade com ambas as mãos completamente deformadas e inutilizadas. Tão logo souberam que ele não mais poderia exercer seus ofícios de pintor, seus senhores correram para sua casa a fim de se vingarem da desfeita. Os dois gostavam tanto dos quadros de N. e confiavam tanto nele, que não podiam aceitar o fato de terem sido por ele traído de forma tão grosseira. Inconformados que estavam, começaram a espancar o artista. Não cessaram até que o tivessem matado.

Uma vez sepultado o cadáver de N. no quintal dos fundos, o senhor da casa sombria convidou a senhora da casa iluminada para uma xícara de chá. Ambos viriam a se casar três meses mais tarde.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Henrique, o historiador confiante

Esse é um dia na vida de Henrique. Henrique tem dezenove anos de idade e é estudante do primeiro período de História na UFMG. Todos os dias ele acorda cedo e vai pra aula, feliz, contente, confiante de que aquele será mais um dia de muito aprendizado.

No primeiro horário, sua primeira aula: Tópicos em História das Minas setecentistas: história da mineração diamantífera no Arraial do Tejuco, com um dos maiores especialistas no assunto. Ele se senta na primeira fileira, assiste à aula atentamente, anota, questiona, pergunta – até aquilo que já sabe – e tece comentários extremamente produtivos, repetindo com outras palavras o que já foi dito pelo professor. Ao fim da aula ele aborda o professor, atrasando ao máximo sua saída da sala. O conteúdo da conversa pode ser o mais diverso: desde o pedido de uma bibliografia adicional sobre o tema ministrado naquela aula até uma crítica edificante sobre algum artigo publicado pelo professor.

No intervalo entre as duas aulas Henrique não sai da sala; prefere se preparar mentalmente relendo os textos que serão o tema da matéria do próximo horário: Estudos de História Econômica de Minas Gerais: análise historiográfica dos cadernos de contabilidade das mercearias das Minas setecentistas. O procedimento adotado nessa aula é exatamente o mesmo, com a pequena diferença que agora Henrique tece menos comentários: por motivos ainda não conhecidos pelo garoto, o professor costuma ignorar suas falas, cortando-as com uma certa frequência. Mas Henrique é confiante e não desiste. Ao fim da aula ele aborda o professor. Dessa vez, o tema é bastante específico: está pleiteando um emprego no Museu do Pão de Queijo, iniciativa levada a cabo pelo docente. A fim de conseguir uma vaga, ele se mostra extremamente solícito para com o professor, carregando seus livros e sua pasta, comprando-lhe café na cantina e mandando-lhe e-mails no final de semana, que raramente são respondidos.

À tarde, Henrique almoça e vai para a biblioteca. Passa a tarde estudando os mais variados temas: lê artigos acadêmicos sobre as origens da pobreza em Minas Gerais, analisa a precariedade das condições sociais de Vila Rica no ápice da mineração, estuda a vida miserável que muitos homens livres levavam na capitania e se surpreende ao ler as terríveis condições nas quais muitos dos escravos mineradores trabalhavam. Henrique ainda acha tempo para estudar um pouco de francês, língua que ele acredita lhe conferir certo distintivo sócio-intelectual; o rapaz optou pelo francês por considerar o espanhol muito fácil, o inglês a língua do imperialismo e o alemão a língua do nazismo. Curiosamente, uma das poucas questões com as quais Henrique teve algum problema no vestibular foi uma que dizia respeito à guerra de independência na Argélia.

Às seis, Henrique tem sua última aula no dia: Teares e Pocilgas: uma análise da complementaridade entre a indústria têxtil e a criação de suínos nas Minas setecentistas. Henrique já está com sono, mas não se entrega fácil. Segue ligado na aula, mas infelizmente não tem mais paciência para abordar o professor no final. Tudo bem – ele pensa – , fica pra próxima.

Henrique volta pra casa ao final de mais um dia na universidade. Ao chegar em sua rua, busca se esquivar desesperadamente de um pedinte que lhe suplica moedas para comprar um pão. Olha com um certo nojo as condições nas quais os outros moradores de rua se instalam, embaixo de uma marquise, ao mesmo tempo que procura apertar o passo: precisa dormir cedo. No dia seguinte, Henrique tem uma defesa de tese de mestrado para assistir cujo tema é de seu interesse: Mais do Mesmo: história dos vícios e da dependência química nas Minas setecentistas. Ele entra em seu quarto, arruma sua mochila, deita e descansa um pouco. Reflete sobre os mendigos que viu e os que estudou; conclui que da próxima vez tomará um caminho mais longo do ponto de ônibus até seu prédio, a fim de evitar os pedintes.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

A saga de N.

Na semana de seu vigésimo primeiro aniversário, N. se deparou com um fato aterrador: ele não sabia aproveitar a vida. Tantos anos, tantos dias, tanto tempo, tudo passado em branco, batido, como uma folha de papel na qual nunca nenhuma caneta ousou se aventurar.

Horrorizado com sua constatação, N. resolveu agir: pegou uma caneta e um caderno e trancou-se em seu quarto com a missão de não sair de lá até que houvesse elaborado uma estratégia eficaz para aproveitar a vida. N. não queria passar os próximos anos de sua existência da mesma maneira que passara os últimos 21: apático, indiferente, incapaz de viver intensamente cada momento.

Durante esses sete dias trancado N. estipulou um plano de metas: viagens a fazer, festas a frequentar, amigos a conhecer, restaurantes a degustar, filmes a assistir, amores a declarar... Já estava cansado de levar sua vida como se ele ainda tivesse muitas outras pela frente e pudesse se dar ao luxo de viver de forma medíocre.

Após muitas noites em claro, N. concluiu o trabalho na manhã do seu aniversário. Estava exausto, mas todos aqueles dias de reclusão valeram a pena: finalmente ele poderia viver sem medo de repetir os erros do passado. Seu plano de metas ficara impecável, e ele estava decidido a aproveitar a vida.

Feliz, N. saiu de sua casa naquela manhã ensolarada para encontrar os amigos e dar início à sua nova vida. Tão logo botou os pés na rua, foi atropelado por um caminhão de engradados de cerveja, vindo a falecer alguns minutos depois a poucos passos do meio-fio. O motorista do caminhão seguiu seu caminho sem prestar socorro. Estava muito atrasado para entregar uma encomenda na casa da mãe de N., que lhe preparava uma festa surpresa.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Notas da Nova Jerusalém

Muitos jovens que ingressam nas concorridas instituições públicas de ensino superior do país, entram nesse ambiente imbuídos de um orgulho excessivo e, por vezes, caricato. Satisfeitos com a vitória alcançada, nossos novos universitários experimentam uma fase de êxtase, e sentem-se os verdadeiros escolhidos de Deus cada vez que enchem o peito para falar que estudam "na federal".

O jovem universitário se denomina um orgulhoso membro da "elite intelectual do país" – uma entidade mítica, lendária, que só existe dentro de sua cabeça. Ele venceu uma concorrência impiedosa, desbancou adversários e superou o horror de uma das fases mais lamentáveis de nossa vida; enfim, derrotou muitos mares vermelhos para chegar nessa terra prometida à qual poucos têm acesso. E a forma que ele adota para comemorar essa vitória costuma ser peculiar.
Tão logo começam as aulas, ele se converte em um ser esnobe, cheio de si: satiriza aqueles que não passaram classificando-os de "burros" ou "incapazes" e participa de comunidades no Orkut cujo intuito é justamente reunir esses bravos herois que passaram "na federal" em um local onde eles possam cantar toda a sua virtude e majestade.

Sim, a universidade virou objeto de ostentação! Estudar "na federal" dá status entre os amigos. "A federal" é envolta por todo um glamour, toda uma mística que se expressa nos novos e débeis hábitos que o estudante adquire.Esse universitário compraz-se não tanto em ter passado, mas em ter deixado vários outros de fora. Sua atitude reflete uma noção cara à nossa sociedade: só podemos triunfar se alguém definha. Mas afinal, não é a educação um problema social tal como a moradia e a saúde? O estudante que não conseguiu entrar na universidade pública está também sendo privado de seus direitos, tal como uma pessoa que vive na favela ou que não consegue ser atendida no hospital. Frente a esse problema, qual é a solução que nosso universitário - o futuro da nação - encontra? Debochar dos "incapazes", é claro! É muito mais fácil e muito mais divertido do que buscar soluções eficazes. Além do mais, ele já gastou neurônios o suficiente para passar no vestibular; merece, portanto, ter seu descanso intelectual.

E os vis mortais que não passaram no vestibular? Eles que rezem para que, no meio de tantos escolhidos de Deus que habitam essa cidade sagrada - essa Nova Jerusalém chamada universidade pública, - no meio de tantas mentes capazes, possa surgir o novo Messias. E que, tal como Jesus estendeu a salvação para além do povo judeu, ele estenda a universidade pública para além dos escolhidos pelo dedo do vestibular.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

E eis que um dia todo Lula vira presidente

Não é de hoje que nós, do hiperativo-categorico.blogspot, ironizamos o inebriante orgulho dos estudantes brasileiros que, uma vez aprovados em uma universidade federal, sentem-se os escolhidos de Deus após tal conquista.
Acontece que, recentemente, este mesmo quem vos fala foi condecorado com tal mérito, e não obstante sua merecida felicidade, ficou um pouco atormentado ao ver-se virando tudo aquilo que ele um dia satirizou.
A verdade é que o mundo dá voltas, e tal como Lula virou presidente, os porcos de Orwell tomaram o controle da fazenda e os comunistas tomaram o poder dos czares na União Soviética, estamos sempre fadados a virar aquilo que outrora condenamos. É esse o destino fatídico de grande parte da humanidade.

O texto a seguir nada mais é do que uma forma de descontração em meio a esse fatídico destino que acabo de encontrar; mais do que isso, é um compromisso que assumo de jamais virar mais um Renato da vida.
Não sei quem é Renato. Pode ser que ele seja meu alter-ego, embora eu prefira considerá-lo apenas um tipo ideal de vestibulando feliz (vide post número 1). Queira Deus apenas que ele não seja meu filho.

Renato, o calouro feliz

Olá!
Meu nome é Renato - meus amigos me chamam de Renatim -, tenho 18 anos de idade, sou natural de Belo Horizonte, acabei de passar na UFMG - e estou muito feliz por isso! Logo que saiu o resultado, fiquei tão feliz que, pra comemorar, bebi o dia inteiro com meus amigos e só fui acordar no dia seguinte, não lembrando de quase nada...! Foi muito bom, um dia inesquecível, mesmo sabendo que eu não passei pra um curso tão bom nem tão concorrido.
A história de como escolhi prestar vestibular pra tal curso é até estranha sabe...desde os onze anos de idade sempre quis fazer Engenharia Civil, porque meu pai é engenheiro civil e meu avô também era. Porém, no primeiro ano do ensino médio resolvi que iria prestar vestibular pra Medicina, pois o guia do estudante disse que o salário é melhor e o mercado de trabalho também. Já no terceiro ano, quando estava quase me formando e conciliando cursinho com a escola, comecei a ficar meio vagabundo, faltava muito às aulas pra beber e jogar truco e estudava muito pouco. Logo percebi que não ia dar pra passar em Medicina, porque a concorrência na UFMG é muito foda. Fiquei com medo de fracassar no vestibular e ter que fazer cursinho novamente no outro ano - e cursinho é muito ruim, credo, não quero voltar jamais!
Decidi então mudar de idéia e tentar vestibular pra outro curso, um curso mais fácil, mais tranquilo pra passar...inscrevi-me então pra História, mas até hoje não sei bem porquê. Minha vida inteira sempre odiei História (peguei recuperação duas vezes, na quinta e na oitava séries) e só passei a me interessar mesmo no cursinho, porque tive um professor muito bom que dizia que o curso era ótimo. Acho que foi ele quem me incentivou a prestar pra História, e aí felizmente eu passei!
Não sei bem ainda o que eu quero com esse curso (se é que realmente quero alguma coisa), nem tenho muitas ambições quanto a ele até o momento. Acho que no terceiro ou quarto período vou ver se tento transferência pra Engenharia ou pro Direito. Mas o importante mesmo é que eu passei, e foi na FEDERAL! Sempre foi meu sonho estudar na UFMG, e nem ligo muito se o curso não era realmente o que eu queria. Pelo menos agora vou poder zuar meus amigos que estudam na PUC e entrar naquela comu do Orkut "Ih, foi mal! A minha é federal!" para poder confraternizar com estudantes de todo o país e principalmente zuar aqueles mais burrinhos que tentaram mas não conseguiram, e agora estão em universidades particulares...hauahauahauha! Universidade privada é muito ruim, nem se compara à federal... aliás, acho que lugar de merda é na privada mesmo! hauahauahua...
Só quem não está muito feliz é o meu pai...o sonho dele era que eu fosse engenheiro que nem ele, ou então médico, que nem o meu tio...ou até mesmo advogado, que nem minha mãe. Ele disse que o curso de História não leva à nada, ainda mais pra mim que nunca gostei de História. Acho isso uma grande mentira, porque o guia do estudante disse que o salário médio inicial de um historiador gira entre 1300 e 2300 reais, acredita?! E na mostra de profissões da UFMG, o cara do stand de História me falou que o mercado de trabalho na área só tende a melhorar, pois a demanda por historiadores tem crescido muito, mesmo em época de crise econômica. Isso tudo me motivou ainda mais a escolher o curso.
Meu pai continuou discordando, falando que se pelo menos eu me interessasse pelo assunto, lesse mais sobre história do Brasil e do mundo e demonstrasse algum entusiasmo, ele ainda botava fé em mim. Ele até se propôs a pagar uma particular pra mim, se o curso fosse Medicina ou Engenharia Civil, mas particular nem rola. Estudar na particular não dá status, sabe? Não troco o glamour da federal por nada nesse mundo!
A verdade é que eu nem me importo com isso...o importante é que eu passei, e foi na federal, e tô indo estudar na FAFICH! Ouvi falar que lá é cheio de maconheiro e o pessoal adora tomar todas depois da aula...hauahauha, acho que vou gostar muito de lá então! Matar aula pra beber, jogar sinuca, isso pra mim é o paraíso! Acho que até vo desistir da Medicina depois que entrar lá, heuehueheuhe...E tipo, eu nunca experimentei maconha, mas quando eu estiver lá dentro vo ter que experimentar, vo pedir pros meus veteranos me ensinarem a fumar, é bom que ajuda a socializar com todos eles! E ajuda ainda a dar umas viajadas, porque o curso de História demanda muita criatividade, muita imaginação, impossíveis de serem alcançadas quando se está sóbrio...huahauahaua!

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Invasões bárbaras

DEVANEIO Nº 1

No alvorecer dos séculos XIII e XIV, a Europa acordou mais tranquila: as invasões bárbaras se escasseavam, as pessoas começavam a abandonar os campos e migrar para as cidades, e uma nova era parecia ter início, menos negra, menos mística e menos perigosa; mais racional, mais humana e mais segura. A Europa renascia da ignorância, buscava voltar à uma antigüidade da qual jamais deveria ter saído.
Aos poucos, a idéia de queimar bruxas na fogueira começou a parecer absurda; se não absurda, questionável. Andar pelas cidades deixou de representar um risco, pois não havia mais homens montados em cavalos empunhando espadas mortíferas e sedentos por sangue; finalmente, o homem medieval percebia que sua vida não tinha necessariamente que se confinar a um feudo, restrito feudo, que, embora não fosse confortável, era melhor do que lá fora onde o perigo rondava. A felicidade? Sim, a felicidade! Ela não estava somente no porvir, no além...ela também estava aqui, na terra, na vida real! Tamanha não foi a surpresa dos primeiros a perceberem que não teriam que esperar pela morte, e ainda pela aceitação no céu, para poderem ser felizes - poderiam sê-lo agora mesmo. Toda a estrutura que confinava os homens a alguns poucos pedaços de terra e a um senhor prepotente que cobrava satisfações começava a ruir.
E a natureza? Não, não era apenas para ser admirada e temida, mas também compreendida. As secas não eram castigos divinos, tinham explicações mais coerentes; a chuva e os trovões não eram a ira de Deus, eram fenômenos naturais, como o simples nascimento de um bebê. Aos poucos, o homem europeu abandonava um período de ignorância, paralisia, estagnação e conflito; talvez até tomado por uma certa vergonha, como um jovem menino que, ao crescer, recorda com amargura suas pirraças de infância e se pergunta como foi capaz de fazer uma coisa dessas.
Agora o mundo era mais belo, a vida fazia mais sentido, as cidades cresciam e prosperavam sem temer os perigosos homens bárbaros, e as trevas da Idade Média pareciam se dissipar de uma forma cada vez mais irreversível.

DEVANEIO Nº 2

Marcelo acordou no alvorecer de seus vinte e um anos de vida aliviado: os vestibulares foram vencidos, a aflição acabara, a frenética e angustiante maratona de estudos chegara a um fim definitivo. Saiu à rua para um passeio tranquilamente, mais tranquilamente do que nunca; não tinha mais o que temer do lado de fora. Em sua cidade natal, tudo parecia lembrá-lo do famigerado vestibular: aquelas árvores da praça, que acompanharam sua infância e adolescência e viram-no crescer em meio a medos e sonhos, pareciam sempre questioná-lo "passou? passou? passou?". A rua da escola na qual sempre estudara era ainda mais exigente: "e você, passou 14 anos me amolando para chegar no vestibular e fazer merda? Não acredito, meu Deus, eu pari um idiota! Tu desonraste meu nome por toda a eternidade!". Os prédios que ladeavam seu cursinho eram curtos, mas firmes: "passaste três meses aqui para nada! Passaste três meses aqui para nada!". Tão logo Marcelo abria o portão de sua casa, uma enxurrada de cobranças o perturbavam, querendo saber de seu desempenho.
Mas tudo aquilo finalmente chegara a um fim! Marcelo não mais precisava se confinar em sua casa, pregado à tela do computador, esperando pela lista de aprovados...sua vida não mais se restringia à sala de televisão e ao seu quarto. As manhãs eram mais belas, as noites de sono mais calmas, as ruas da cidade menos ameaçadoras, as árvores da praça menos exigentes...Até Marcelo andava diferente: não ficava cabisbaixo, como de costume; todo o peso da cobrança que curvava sua cabeça para baixo se desmoronara, e ele novamente andava olhando reto, para a frente e para os lados - e, por que não, para o alto!
A felicidade? Não, não estava mais no porvir! Não mais precisava esperar o resultado do vestibular para poder ser feliz...chegara enfim a hora de sorrir! Nada de desculpas do tipo "depois do vestibular, depois do vestibular!", depois do vestibular era agora, e agora era a hora de ser feliz!
Tudo sempre indicava para um novo tempo, uma nova era: uma era de paz, prosperidade e esperança, sem vestibulares! Claro que todo esse otimismo demorou um pouco a se manifestar; começou timidamente, ainda temeroso de todo aquele horror que assolara há pouco tempo, como o sobrevivente de um terremoto que coloca a cabeça para fora de seu abrigo e pergunta: "já?". Afinal de contas, quem não sabe ser feliz na angústia, demora um pouco para ser feliz na fartura; felicidade também é uma questão de costume. Com o tempo, esperamos que Marcelo se acostume e, diferente do homem europeu, não se envolva em novos pesadelos.

Um grande abraço Marcelo, Feliz Aniversário!!!

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O velho, a viúva e a insônia

Esta noite não dormi - literalmente. Nem sequer um segundo de sono, nem um cochilozinho, nada nada. Fazia tempo que isso não me acontecia, mais de quatro anos se não me falha a débil memória. Estive extremamente preocupado com o vestibular, temendo pelo resultado que sairá amanhã. Nessas horas dá uma angústia terrível, pois começo a lembrar de tudo aquilo que deveria ter feito na hora da prova mas não fiz: a opção errada que eu poderia ter acertado, o cálculo mal elaborado e a redação mal-feita. O vestibular deveria poder ser feito que nem esse blog: movido a surtos criativos. Deveria ser permitido ligar para a comissão de vestibular e chamá-la em sua casa para lhe aplicar a prova, justamente naquele momento de maior efusão da sua inteligência. Se assim fosse, teria discado para a comissão de vestibular às três da madrugada de hoje, convocando-os urgentemente para aplicar a prova no sofá; tenho certeza que faria uma redação impecável, capaz de deixar no chinelo até o mais confiante concorrente que eu tivesse! Na hora do vestibular, nada me inspira, nada me motiva a escrever. O vestibular é só um monte de gente estranha falando merda antes e depois da prova, comentando os comentários idiotas dos professores de seus cursinhos na aula anterior e falando o quanto está confiante e preparado para a prova; sem contar nos fiscais de sala com seus imponentes crachazinhos que intimidam-no desde o início da prova a abrir mão de seu celular ou de qualquer outro aparelho eletrônico EM FUNCIONAMENTO OU NÃO. Por isso mesmo nunca me atrevi a levar meu celular para as provas; até porque não gostaria de receber nenhum telefonema num momento desses, sem notícias boas pra dar a quem quer que estivesse ligando.
Muitos me perguntam: "mas Marcelo, você escreve tão bem! Como pode ter ido mal na redação?!". Acontece que escrever não é simplesmente colocar suas idéias na folha, envolve outras coisas. Uma delas é o objetivo da escrita: uma coisa é escrever para as pessoas lerem, refletirem e elogiarem/criticarem, conforme suas impressões. Outra, totalmente diferente, é escrever sabendo que quem vai ler estará analisando seu texto sintaticamente, corrigindo os paralelismos, reparando nas concordâncias e demais picuinhas, além de te castigar ou te premiar com uns pontinhos a menos ou a mais sempre que achar conveniente. Nesse último caso, nada te inspira a escrever. Antes mesmo de começar, fico logo imaginando um professor barbudo e ranzinza que irá ler minha redação, assim como tem feito ao longo de muitos e muitos anos com milhares de outras redações, num trabalho entediante que ele só faz para poder conseguir um dinheiro extra a fim de pagar a escola do filho que vive repetindo; imagino que ao final de cada parágrafo o barbudo ranzinza escarra pra dentro e promete a si mesmo que é "o último ano que eu faço isso" e jura que "depois dessa leva de redações vou direto na reitoria pedir para me removerem desse cargo". Ou então é aquela mulher antipática e velha que se casou aos dezesseis anos e se tornou professora por pressão dos pais, já que o marido já tinha um emprego bom e bem-remunerado e não ficava bem, naquela época, ter um emprego melhor nem tão bom quanto o do marido, e por isso virou professora porque é um emprego discreto, sem muito prestígio social, incapaz de ofuscar o brilho do marido, e por ser conhecida do vice-reitor da universidade acabou abocanhando o cargo de correção de redações, já que a pensão do falecido marido já não conseguia mais acompanhar o dragão da inflação, "tenho filhos pra criar, ora!".
Não dá, simplesmente não dá. A inspiração para escrever vem justamente quando você menos precisa dela, por exemplo quando está teclando com aquele seu amigo chato no MSN que você só não deletou até agora por pura consideração, ou quando está fuçando naquele perfil ridículo de um amigo de um amigo seu no Orkut, ou quando está matando a barata que entrou no quarto da sua avó e, principalmente, quando não está conseguindo dormir à noite porque tem medo do velho do saco ou do velho ranzinza que corrige as redações. Afinal, como acha que consegui inspiração para escrever esse texto? Pois foi agora pouco no café-da-manhã, quando tudo de que eu não precisava era inspiração para escrever, acredito ser justamente por isso que ele está ficando tão bom - caso o leitor não pense assim, desculpe a minha prepotência, eu só quero ser útil.
Ah, e por falar em pronomes pessoais da primeira pessoa do singular, que saudade de usá-los! O candidato que fizer uso deles em sua redação pode estar assinando sua sentença de morte no vestibular. Acontece que o outro velho ranzinza - não o que corrige as redações, mas o que elabora os temas e, diga-se de passagem, tem estado com sua criatividade meio no vermelho ultimamente - em geral não aceita qualquer redação: precisa ser dissertação, um gênero textual que não admite pronomes na primeira pessoa do singular. Além disso, a dissertação tem uma série de regrinhas bacanas como por exemplo, precisa ter capacidade analítica, argumentação, coesão e coerência, porque a dissertação pretende ser um texto científico. O indivíduo que inventou a dissertação deve ser mesmo um babaca, pois só uma mente babaca poderia enxergar coerência e coesão na ciência, logo na ciência onde tudo tende pra bagunça, pra desordem, para a entropia. Os átomos não gostam de coesão, eles querem ser livres, se expandir por aí afora, por isso estão sempre em sua incessante busca para se assemelharem aos gases nobres, esses sim os verdadeiros paladinos da ciência! As raízes não crescem de forma comportada, uniforme, a fim de deixar o máximo de espaço possível para suas companheiras: se deixar, elas avançam mesmo, sem fazer cerimônia; aqui em Lavras, por exemplo, a raiz da Tipuana da praça teve uma época que quase partiu a rua ao meio. O fluxo de elétrons em uma corrente em nada se assemelha às crianças em um jardim de infância fazendo fila pra lanchar; aliás, essa idéia de ordenamento partiu mesmo foi do homem, e é tão contrária à natureza que o próprio homem não a suporta, tanto é que preferimos correr livres pelos campos do que ficar parado em uma fila de banco.
O inventor da dissertação não passa, portanto, de um sujeito de imaginação perturbada que achava que toda a natureza se comporta como os fascistas marchando sobre Roma ou os integralistas marchando na Guanabara nos anos 1930, não obstante tivesse um coração bom, generoso e humilde, tão humilde que até se proibia de usar pronomes em primeira pessoa do singular, para evitar qualquer forma de egocentrismo, embora sempre admitisse seu uso na primeira pessoa do plural, a fim de valorizar o coletivo, o trabalho de equipe, trocando o "eu" por "nós" e o "meu" por "nosso", evidenciando um nobre coração desapegado e solidário! e a propósito, se você for um pré-vestibulando não siga jamais o meu exemplo porque nas dissertações não se pode usar períodos muito longos como esse aqui, é sempre preciso dar uma pausa com um ponto ao invés de escrever um parágrafo inteiro sem pontuar como o que acabo de fazer, me desculpe.
Ao contrário do que você deve estar pensando, eu não tenho raiva de ninguém. Não guardo rancores do velho ranzinza (nem do que elabora nem do que corrige a dissertação), nem da viúva que corrige as dissertações e nem tampouco do babac...quero dizer, do sujeito nobre e humilde de bom coração que nos fez o favor de inventar a dissertação. Não são eles os responsáveis pela minha insônia, afinal, todos nós sabemos que a tarefa de curar a insônia é da televisão, ela sim é a responsável por nos entreter quando não conseguimos dormir. Acontece que a programação da TV de madrugada se divide basicamente em três: aquelas que antecipam a programação do dia seguinte, aquelas que saem do ar e aquelas que repetem a programação do dia anterior. Não assisto aos programas antecipados, caso contrário já amanhecerei no dia seguinte sabendo de tudo o que irá ocorrer - não gosto de dias sem surpresa. Também não assisto à programação fora do ar, porque consiste basicamente do logo da emissora e de um relógio, que me faz lembrar há quanto tempo atrás eu já deveria estar dormindo. Mas o pior de tudo é assistir à reprise do dia que se acabou; repetições cheiram a falta de criatividade, e me fazem lembrar o quanto não tive criatividade ao fazer minha dissertação.
Em todo caso, acredito que é esse o ciclo natural da humanidade: tendemos sempre a voltar às origens, que nem um canal de televisão que esbanja sua programação ao longo do dia e no final retoma a parte principal dela. Nós nascemos fracos e indefesos, e quando ficamos bem idosos geralmente também morremos fracos e indefesos, mas com as principais experiências acumuladas ao longo da vida ressaltadas. No início da humanidade o mundo era em grande parte deserto, inóspito, com um ou outro grupo de seres humanos aqui e acolá, e dado o desenvolvimento das armas atômicas, os efeitos catastróficos do aquecimento global e toda sorte de malvadezas que rondam o planeta, alardeadas pelo Greenpeace e pelos livros didáticos de geografia, é para esse estágio que parecemos encaminhados.
Lhe parece trágica essa profecia? Pouco me importa... Pelo menos fica como uma idéia para colocar em minha próxima dissertação. Tenho certeza de que ela irá agradar ao velho ranzinza, pois combina muito bem com o seu ar carrancudo e desolado.



PS.: Caso você seja meu (minha) amigo (a) no Orkut, não hesite em me deixar recadinhos de madrugada! mesmo que você não tenha esse costume. Eles sempre me fazem sentir menos abandonado em meio à noite escura. Obrigado!