Visualizações de página do mês passado

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Invasões bárbaras

DEVANEIO Nº 1

No alvorecer dos séculos XIII e XIV, a Europa acordou mais tranquila: as invasões bárbaras se escasseavam, as pessoas começavam a abandonar os campos e migrar para as cidades, e uma nova era parecia ter início, menos negra, menos mística e menos perigosa; mais racional, mais humana e mais segura. A Europa renascia da ignorância, buscava voltar à uma antigüidade da qual jamais deveria ter saído.
Aos poucos, a idéia de queimar bruxas na fogueira começou a parecer absurda; se não absurda, questionável. Andar pelas cidades deixou de representar um risco, pois não havia mais homens montados em cavalos empunhando espadas mortíferas e sedentos por sangue; finalmente, o homem medieval percebia que sua vida não tinha necessariamente que se confinar a um feudo, restrito feudo, que, embora não fosse confortável, era melhor do que lá fora onde o perigo rondava. A felicidade? Sim, a felicidade! Ela não estava somente no porvir, no além...ela também estava aqui, na terra, na vida real! Tamanha não foi a surpresa dos primeiros a perceberem que não teriam que esperar pela morte, e ainda pela aceitação no céu, para poderem ser felizes - poderiam sê-lo agora mesmo. Toda a estrutura que confinava os homens a alguns poucos pedaços de terra e a um senhor prepotente que cobrava satisfações começava a ruir.
E a natureza? Não, não era apenas para ser admirada e temida, mas também compreendida. As secas não eram castigos divinos, tinham explicações mais coerentes; a chuva e os trovões não eram a ira de Deus, eram fenômenos naturais, como o simples nascimento de um bebê. Aos poucos, o homem europeu abandonava um período de ignorância, paralisia, estagnação e conflito; talvez até tomado por uma certa vergonha, como um jovem menino que, ao crescer, recorda com amargura suas pirraças de infância e se pergunta como foi capaz de fazer uma coisa dessas.
Agora o mundo era mais belo, a vida fazia mais sentido, as cidades cresciam e prosperavam sem temer os perigosos homens bárbaros, e as trevas da Idade Média pareciam se dissipar de uma forma cada vez mais irreversível.

DEVANEIO Nº 2

Marcelo acordou no alvorecer de seus vinte e um anos de vida aliviado: os vestibulares foram vencidos, a aflição acabara, a frenética e angustiante maratona de estudos chegara a um fim definitivo. Saiu à rua para um passeio tranquilamente, mais tranquilamente do que nunca; não tinha mais o que temer do lado de fora. Em sua cidade natal, tudo parecia lembrá-lo do famigerado vestibular: aquelas árvores da praça, que acompanharam sua infância e adolescência e viram-no crescer em meio a medos e sonhos, pareciam sempre questioná-lo "passou? passou? passou?". A rua da escola na qual sempre estudara era ainda mais exigente: "e você, passou 14 anos me amolando para chegar no vestibular e fazer merda? Não acredito, meu Deus, eu pari um idiota! Tu desonraste meu nome por toda a eternidade!". Os prédios que ladeavam seu cursinho eram curtos, mas firmes: "passaste três meses aqui para nada! Passaste três meses aqui para nada!". Tão logo Marcelo abria o portão de sua casa, uma enxurrada de cobranças o perturbavam, querendo saber de seu desempenho.
Mas tudo aquilo finalmente chegara a um fim! Marcelo não mais precisava se confinar em sua casa, pregado à tela do computador, esperando pela lista de aprovados...sua vida não mais se restringia à sala de televisão e ao seu quarto. As manhãs eram mais belas, as noites de sono mais calmas, as ruas da cidade menos ameaçadoras, as árvores da praça menos exigentes...Até Marcelo andava diferente: não ficava cabisbaixo, como de costume; todo o peso da cobrança que curvava sua cabeça para baixo se desmoronara, e ele novamente andava olhando reto, para a frente e para os lados - e, por que não, para o alto!
A felicidade? Não, não estava mais no porvir! Não mais precisava esperar o resultado do vestibular para poder ser feliz...chegara enfim a hora de sorrir! Nada de desculpas do tipo "depois do vestibular, depois do vestibular!", depois do vestibular era agora, e agora era a hora de ser feliz!
Tudo sempre indicava para um novo tempo, uma nova era: uma era de paz, prosperidade e esperança, sem vestibulares! Claro que todo esse otimismo demorou um pouco a se manifestar; começou timidamente, ainda temeroso de todo aquele horror que assolara há pouco tempo, como o sobrevivente de um terremoto que coloca a cabeça para fora de seu abrigo e pergunta: "já?". Afinal de contas, quem não sabe ser feliz na angústia, demora um pouco para ser feliz na fartura; felicidade também é uma questão de costume. Com o tempo, esperamos que Marcelo se acostume e, diferente do homem europeu, não se envolva em novos pesadelos.

Um grande abraço Marcelo, Feliz Aniversário!!!

Nenhum comentário: