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quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O velho, a viúva e a insônia

Esta noite não dormi - literalmente. Nem sequer um segundo de sono, nem um cochilozinho, nada nada. Fazia tempo que isso não me acontecia, mais de quatro anos se não me falha a débil memória. Estive extremamente preocupado com o vestibular, temendo pelo resultado que sairá amanhã. Nessas horas dá uma angústia terrível, pois começo a lembrar de tudo aquilo que deveria ter feito na hora da prova mas não fiz: a opção errada que eu poderia ter acertado, o cálculo mal elaborado e a redação mal-feita. O vestibular deveria poder ser feito que nem esse blog: movido a surtos criativos. Deveria ser permitido ligar para a comissão de vestibular e chamá-la em sua casa para lhe aplicar a prova, justamente naquele momento de maior efusão da sua inteligência. Se assim fosse, teria discado para a comissão de vestibular às três da madrugada de hoje, convocando-os urgentemente para aplicar a prova no sofá; tenho certeza que faria uma redação impecável, capaz de deixar no chinelo até o mais confiante concorrente que eu tivesse! Na hora do vestibular, nada me inspira, nada me motiva a escrever. O vestibular é só um monte de gente estranha falando merda antes e depois da prova, comentando os comentários idiotas dos professores de seus cursinhos na aula anterior e falando o quanto está confiante e preparado para a prova; sem contar nos fiscais de sala com seus imponentes crachazinhos que intimidam-no desde o início da prova a abrir mão de seu celular ou de qualquer outro aparelho eletrônico EM FUNCIONAMENTO OU NÃO. Por isso mesmo nunca me atrevi a levar meu celular para as provas; até porque não gostaria de receber nenhum telefonema num momento desses, sem notícias boas pra dar a quem quer que estivesse ligando.
Muitos me perguntam: "mas Marcelo, você escreve tão bem! Como pode ter ido mal na redação?!". Acontece que escrever não é simplesmente colocar suas idéias na folha, envolve outras coisas. Uma delas é o objetivo da escrita: uma coisa é escrever para as pessoas lerem, refletirem e elogiarem/criticarem, conforme suas impressões. Outra, totalmente diferente, é escrever sabendo que quem vai ler estará analisando seu texto sintaticamente, corrigindo os paralelismos, reparando nas concordâncias e demais picuinhas, além de te castigar ou te premiar com uns pontinhos a menos ou a mais sempre que achar conveniente. Nesse último caso, nada te inspira a escrever. Antes mesmo de começar, fico logo imaginando um professor barbudo e ranzinza que irá ler minha redação, assim como tem feito ao longo de muitos e muitos anos com milhares de outras redações, num trabalho entediante que ele só faz para poder conseguir um dinheiro extra a fim de pagar a escola do filho que vive repetindo; imagino que ao final de cada parágrafo o barbudo ranzinza escarra pra dentro e promete a si mesmo que é "o último ano que eu faço isso" e jura que "depois dessa leva de redações vou direto na reitoria pedir para me removerem desse cargo". Ou então é aquela mulher antipática e velha que se casou aos dezesseis anos e se tornou professora por pressão dos pais, já que o marido já tinha um emprego bom e bem-remunerado e não ficava bem, naquela época, ter um emprego melhor nem tão bom quanto o do marido, e por isso virou professora porque é um emprego discreto, sem muito prestígio social, incapaz de ofuscar o brilho do marido, e por ser conhecida do vice-reitor da universidade acabou abocanhando o cargo de correção de redações, já que a pensão do falecido marido já não conseguia mais acompanhar o dragão da inflação, "tenho filhos pra criar, ora!".
Não dá, simplesmente não dá. A inspiração para escrever vem justamente quando você menos precisa dela, por exemplo quando está teclando com aquele seu amigo chato no MSN que você só não deletou até agora por pura consideração, ou quando está fuçando naquele perfil ridículo de um amigo de um amigo seu no Orkut, ou quando está matando a barata que entrou no quarto da sua avó e, principalmente, quando não está conseguindo dormir à noite porque tem medo do velho do saco ou do velho ranzinza que corrige as redações. Afinal, como acha que consegui inspiração para escrever esse texto? Pois foi agora pouco no café-da-manhã, quando tudo de que eu não precisava era inspiração para escrever, acredito ser justamente por isso que ele está ficando tão bom - caso o leitor não pense assim, desculpe a minha prepotência, eu só quero ser útil.
Ah, e por falar em pronomes pessoais da primeira pessoa do singular, que saudade de usá-los! O candidato que fizer uso deles em sua redação pode estar assinando sua sentença de morte no vestibular. Acontece que o outro velho ranzinza - não o que corrige as redações, mas o que elabora os temas e, diga-se de passagem, tem estado com sua criatividade meio no vermelho ultimamente - em geral não aceita qualquer redação: precisa ser dissertação, um gênero textual que não admite pronomes na primeira pessoa do singular. Além disso, a dissertação tem uma série de regrinhas bacanas como por exemplo, precisa ter capacidade analítica, argumentação, coesão e coerência, porque a dissertação pretende ser um texto científico. O indivíduo que inventou a dissertação deve ser mesmo um babaca, pois só uma mente babaca poderia enxergar coerência e coesão na ciência, logo na ciência onde tudo tende pra bagunça, pra desordem, para a entropia. Os átomos não gostam de coesão, eles querem ser livres, se expandir por aí afora, por isso estão sempre em sua incessante busca para se assemelharem aos gases nobres, esses sim os verdadeiros paladinos da ciência! As raízes não crescem de forma comportada, uniforme, a fim de deixar o máximo de espaço possível para suas companheiras: se deixar, elas avançam mesmo, sem fazer cerimônia; aqui em Lavras, por exemplo, a raiz da Tipuana da praça teve uma época que quase partiu a rua ao meio. O fluxo de elétrons em uma corrente em nada se assemelha às crianças em um jardim de infância fazendo fila pra lanchar; aliás, essa idéia de ordenamento partiu mesmo foi do homem, e é tão contrária à natureza que o próprio homem não a suporta, tanto é que preferimos correr livres pelos campos do que ficar parado em uma fila de banco.
O inventor da dissertação não passa, portanto, de um sujeito de imaginação perturbada que achava que toda a natureza se comporta como os fascistas marchando sobre Roma ou os integralistas marchando na Guanabara nos anos 1930, não obstante tivesse um coração bom, generoso e humilde, tão humilde que até se proibia de usar pronomes em primeira pessoa do singular, para evitar qualquer forma de egocentrismo, embora sempre admitisse seu uso na primeira pessoa do plural, a fim de valorizar o coletivo, o trabalho de equipe, trocando o "eu" por "nós" e o "meu" por "nosso", evidenciando um nobre coração desapegado e solidário! e a propósito, se você for um pré-vestibulando não siga jamais o meu exemplo porque nas dissertações não se pode usar períodos muito longos como esse aqui, é sempre preciso dar uma pausa com um ponto ao invés de escrever um parágrafo inteiro sem pontuar como o que acabo de fazer, me desculpe.
Ao contrário do que você deve estar pensando, eu não tenho raiva de ninguém. Não guardo rancores do velho ranzinza (nem do que elabora nem do que corrige a dissertação), nem da viúva que corrige as dissertações e nem tampouco do babac...quero dizer, do sujeito nobre e humilde de bom coração que nos fez o favor de inventar a dissertação. Não são eles os responsáveis pela minha insônia, afinal, todos nós sabemos que a tarefa de curar a insônia é da televisão, ela sim é a responsável por nos entreter quando não conseguimos dormir. Acontece que a programação da TV de madrugada se divide basicamente em três: aquelas que antecipam a programação do dia seguinte, aquelas que saem do ar e aquelas que repetem a programação do dia anterior. Não assisto aos programas antecipados, caso contrário já amanhecerei no dia seguinte sabendo de tudo o que irá ocorrer - não gosto de dias sem surpresa. Também não assisto à programação fora do ar, porque consiste basicamente do logo da emissora e de um relógio, que me faz lembrar há quanto tempo atrás eu já deveria estar dormindo. Mas o pior de tudo é assistir à reprise do dia que se acabou; repetições cheiram a falta de criatividade, e me fazem lembrar o quanto não tive criatividade ao fazer minha dissertação.
Em todo caso, acredito que é esse o ciclo natural da humanidade: tendemos sempre a voltar às origens, que nem um canal de televisão que esbanja sua programação ao longo do dia e no final retoma a parte principal dela. Nós nascemos fracos e indefesos, e quando ficamos bem idosos geralmente também morremos fracos e indefesos, mas com as principais experiências acumuladas ao longo da vida ressaltadas. No início da humanidade o mundo era em grande parte deserto, inóspito, com um ou outro grupo de seres humanos aqui e acolá, e dado o desenvolvimento das armas atômicas, os efeitos catastróficos do aquecimento global e toda sorte de malvadezas que rondam o planeta, alardeadas pelo Greenpeace e pelos livros didáticos de geografia, é para esse estágio que parecemos encaminhados.
Lhe parece trágica essa profecia? Pouco me importa... Pelo menos fica como uma idéia para colocar em minha próxima dissertação. Tenho certeza de que ela irá agradar ao velho ranzinza, pois combina muito bem com o seu ar carrancudo e desolado.



PS.: Caso você seja meu (minha) amigo (a) no Orkut, não hesite em me deixar recadinhos de madrugada! mesmo que você não tenha esse costume. Eles sempre me fazem sentir menos abandonado em meio à noite escura. Obrigado!

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