Como estaria a Bastilha no dia 14 de julho de 1789,
pouco antes de as massas parisienses irromperem de todos os cantos? Como seria
o ambiente em Wall Street na madrugada do dia 23 para o dia 24 de outubro de
1929, logo antes do começo da Grande Depressão? Como foi o café da manhã dos
marinheiros estacionados em Pearl Harbor no dia 8 de dezembro de 1941, pouco
antes de os aviões japoneses cruzarem os céus?
Ultimamente tenho ouvido com muita frequência uma playlist
no YouTube intitulada “猫 シ
Corp. : NEWS AT 11”. A playlist traz uma série de trechos de programas de
televisão e rádio nos Estados Unidos na manhã do dia 11 de setembro de 2001, pouco
antes de a transmissão ser interrompida para noticiar os atentados. Logo antes
da interrupção tem início um pequeno arranjo musical ao estilo vaporwave, com sons
que trazem uma bela nostalgia dos anos 1990, a anunciar que a inocência acabou.
É como se os tranquilos anos do pós-Guerra Fria nos dessem adeus, levando
consigo a paz prometida por Fukuyama e a esperança de um novo século de paz,
longe dos horrores das guerras mundiais.
O indivíduo que fez tais arranjos é um gênio. Para
mim, sua mensagem é clara: “Em breve interromperemos nossa programação para
noticiar um dos maiores atos terroristas da História. Mas antes disso,
aproveite seus últimos momentos de paz, afinal, você merece!”.
Ouvir tais transmissões tem me trazido uma
serenidade indescritível. A serenidade que é peculiar aos últimos momentos de
paz que antecedem um desastre. Assim como o momento mais frio de uma noite é
aquele que antecede o primeiro raio de sol, o instante mais sereno é aquele que
está a apenas um segundo de distância da eclosão de uma guerra.
No dia 11 de março do ano corrente, 11 anos depois
que iniciei minha graduação no curso de História, recebi uma das notícias mais
aguardadas por mim nesses últimos 11 anos: fui aprovado em um processo seletivo
para professor em uma universidade estrangeira. Do dia 11 de março ao dia 17 de
março, vivi meus momentos de glória. Mas eles também antecediam um abalo
profundo: no dia 17 a UFMG suspende as aulas devido ao vírus e eu me vejo de
mala na mão, voltando para Lavras.
Em poucos momentos de minha vida fui tão feliz
quanto nestes idos de março. Por sete dias não aguardei novas notícias. Por
sete dias tudo parecia estar solucionado. Por sete dias não tive o que desejar.
Hoje completam exatos quatro meses desde que recebi a notícia mais aguardada dos
últimos anos. Quatro meses foram o suficiente para ansiar por outra notícia,
muito mais do que ansiei nesses longos 11 anos pela notícia de uma vaga de
professor universitário. No dia em que tivermos a confirmação de uma vacina
eficaz, o dia 11 de março de 2020 entrará para a minha História como apenas um
dia qualquer.
Bem lá no fundo eu sempre soube que, quando alcançasse meu grande objetivo, algo aconteceria que me faria ter saudades dos
tempos em que eu ainda não o havia alcançado. Há um ano eu não era
um professor universitário, mas pelo menos eu podia sair de casa sem medo. Há
dois anos eu não era professor universitário, nem mesmo doutorando, mas pelo
menos não tinha medo de ler as notícias. Passei grande parte da vida
raciocinando que tudo seria melhor quando eu alcançasse meu sonhado emprego. Agora
que o alcancei, me arrependo de ter me esforçado tanto por alcançá-lo a ponto
de deixar de lado várias coisas boas que agora não tenho mais. É a utopia de
Eduardo Galeano: não nos leva a lugar algum, apenas nos faz caminhar.
O noticiário anda confuso ultimamente. 1200 mortes
por dia, exceto nos finais de semana, quando nem todas as secretarias de saúde
do país funcionam e o noticiário nos dá uma folga da matança. Mas sempre vem a segunda
ou a terça e as omissões do final de semana são cobradas com juros e correção.
A cada novo morto, o espanto vem logo seguido de
perguntas: “Tinha doença crônica? Era diabético? Era idoso? Era obeso? Era
cardíaco? Teve contato com infectados?”. Procuramos, inconsciente e freneticamente,
uma forma de responsabilizar a vítima pelo seu destino. E se a resposta a uma
dessas questões for “sim”, logo ficamos em paz com nossa consciência. Tão logo
nos damos conta do quão inconsequente fomos, coramos de vergonha e nos
recolhemos com medo, cientes de que ninguém está a salvo.
Marcos Novaro e Vicente Palermo observam que, na
ditadura militar argentina (1976-1983), até mesmo aqueles que não eram parte da
resistência armada acabavam padecendo frente à repressão. A cada novo “desaparecido”
político, aqueles que não queriam se envolver tentavam racionalizar a situação:
“por alguma coisa ele deve ter sido preso”; “ninguém vai preso à toa”; “alguma
coisa ele fez”. Trocando em miúdos: o indivíduo não é punido por ser culpado;
ele é culpado porque foi punido.
Nas palavras dos autores: “as vítimas eram tratadas
dessa forma porque alguma coisa tinham feito e porque não havia outro caminho.
Obtinha-se, assim, tanto uma justificação para não agir (...) como uma razão
para se sentir seguro”. Essa “culpabilização reconfortante” é o que nos permite
olhar para o lado enquanto milhares padecem, e logo em seguida sentar em nossa
poltrona enquanto tentamos convencer a nós mesmos de que não cumprimos nenhum
dos requisitos para sermos os próximos da lista. E sempre haverá uma nova lista, um motivo bastante razoável para aqueles que nela estão, e um motivo
razoável para nós não estarmos.
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