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sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Confissões de Augsburg

“Sete anos depois de 2004; quatro anos depois de 2007: tudo se repete?”

Alguns dias antes de partir, uma amiga havia me dito que quanto mais crescemos, mais bobos ficamos. A comprovação disso tive no primeiro voo: suei gelado quando a aeronave da TAM levantou do aeroporto de Confins para Guarulhos, mesmo já tendo viajado de avião mais de sete vezes – e nunca, nessas vezes, ter sentido medo. Acredito que a melhor explicação não foi só o fato de ter ficado mais bobo, e sim o que aconteceu entre a primeira e última vez em que estive no exterior e hoje: acidente da TAM em 2007, acidente com o Legacy, acidente com um avião no rio Hudson, acidente da Air France, acidentes na Indonésia, acidente com o time de hóquei russo... Nada nos garante que não é a nossa vez. Não quis, portanto, olhar pela janela e ver a terra se afastando; demorei a acreditar que algo tão grande e pesado pudesse ficar no ar por muito tempo sem se espatifar no chão. Acho que a explicação é bem essa: não fiquei apenas mais bobo e medroso, fiquei também mais cético.

Há sete anos atrás era um menino bobo e imaturo viajando de avião pela primeira vez, sem medo algum. Sete anos depois eu já sou um adulto, maduro e responsável, morrendo de medo de avião.

A mulher que ocupava a poltrona oposta à minha estava lendo Raízes do Brasil, do Sérgio Buarque de Holanda. Aquilo me alegrou. Cheguei em Guarulhos sem muito tempo para ficar rodando pelo aeroporto e comer: a mulher do guichê da Alitalia disse que precisava embarcar logo e assim o fiz. No voo entre Guarulhos e Roma fiquei na primeira fileira de cadeiras, de modo que podia esticar minhas pernas livremente. Porém, não fiquei na janela e por isso não pude olhar lá embaixo quando o avião sobrevoava Belo Horizonte, Recife e o Deserto do Saara. Na hora do jantar pedi um suco de laranja e a aeromoça me serviu um suco vermelho. Pensei: “ela deve ter ouvido errado”, mas não criei caso. Mas o suco tinha mesmo gosto de laranja! Na mesma hora lembrei daquele episódio do Chaves no qual ele vendo refrescos na porta da vila: “tem o refresco de limão que parece de groselha e tem gosto de tamarindo; o de groselha que parece de tamarindo e tem gosto de limão; e o de tamarindo que parece de limão e tem gosto de groselha”.

Cheguei em Roma bem cedo: nunca tinha estado na Europa antes. Um ônibus nos levou até o local de desembarque e conexões. Lá também não tive tempo para serão: a fila da imigração estava imensa; pessoas de muitos países, com destaque para várias mulheres muçulmanas. Não tive problemas para passar e logo depois fui pegar o voo de conexão: mais uma grande fila para apenas duas entradas – a terceira entrada era para portadores de passaportes da UE, EUA e Canadá. Filipinos, brasileiros, argentinos, paraguaios e colombianos tinham que esperar. O funcionário da imigração conversava alegremente com seu colega. Quando cheguei, ele carimbou meu passaporte distraidamente, na primeira página que abriu. Não havia necessidade disso.

Aí foi mais uma correria para chegar ao portão de embarque: o ônibus nos levou até o avião da Alitalia e lá meu assento era na janela. Dessa vez tive menos medo: pude ver lá embaixo todo o litoral da Itália e uma cadeia de montanhas nevadas muito bonita. Só o que me deu medo nesse voo foi o comissário de bordo falando pelo sistema de som. Ele disse, em italiano, que aquele era o voo para “Monaco”! Fiquei imaginando o que eu iria fazer se fosse parar em Mônaco: seria de pronto repatriado, sem dúvida! Foi quando abri uma revista que estava na poltrona da frente e vi um mapa da Europa em italiano. Lá descobri que “Monaco”, em italiano, significa “Munique”. Nada de pânico...

Cheguei em Munique naquela quarta, ainda pela manhã. Quase passei batido pelo fiscal da imigração, que me pediu meu passaporte. Perguntou qual era o propósito de minha visita e eu disse que era intercambista da universidade de Augsburg. Ele viu minha foto, folheou meu passaporte e me liberou. Até então tudo havia dado certo nos voos, mas era por terra que o pesadelo iria começar.

Perguntei no balcão de informações onde ficava o trem – precisava pegá-lo para chegar a Augsburg. Ela me disse que era embaixo. Desci e passei uns 20 minutos tentando decifrar o mapa e suas legendas. Finalmente descobri em que direção ficava a plataforma e – pasmem! – consegui comprar o ticket de primeira na máquina eletrônica! Não sem antes coloca-la em espanhol. Precisei de mais informação para saber onde ficava o trem e desci mais um lance de escada. Lá embaixo estava o trem, parado, de portas abertas. Não sabia se era aquele mesmo e pedi informação em alemão a um grupo de passageiros. Eles eram estrangeiros e apenas me disseram “nicht verstehen” (não entender). Tão perdidos como eu.

Pedi então informação a uma moça alemã, que me disse não haver trem direto para Augsburg: eu precisava ir pra estação central de Munique e lá pegar outro. Ela também disse que aquele trem levava pra lá. Entrei no trem meio sem coragem: a menina não parecia muito segura da informação. Foi quando chegou um estrangeiro e me pediu informações... olhei pra ele com a maior cara de perdido e ele me ignorou. Após muito analisar o mapa que havia no trem, entendi mais ou menos onde ficava a estação. No caminho, fiquei impressionado com a beleza da paisagem: várias casas de campo e sítios com cavalos e vacas pastando. Em uma das casas de campo vi um Cristo Redentor de madeira ou papelão.

Desci na estação central e lá novamente pedi informação sobre onde pegar o trem para Augsburg. Tive que subir uma escada e lá estava ele, quase partindo. No caminho, mais paisagens bonitas: fazendas, plantações de trigo; tudo plano, bem plano... Coisa comum até para o brasileiro em geral, mas que o mineiro estranha, acostumado que está a viver entre morros.

Cheguei em Augsburg e aí foi outro drama para conseguir chegar na moradia. As duas malas, muito pesadas, meu jeito desastrado de andar pelas calçadas e meus olhos confusos ao observar o quadro de horário de ônibus denunciavam a todos que eu não era de lá. Sabia que eu precisava pegar o ônibus da linha 22 ou 23, rumo a Königsplatz, mas não sabia onde parar. Por isso, pedi informação dentro do ônibus a um rapaz que mexia no celular. Quando ele olhou para mim senti vergonha: ele era deficiente visual. Fiquei sem saber o que falar: como poderia um deficiente visual me avisar a hora em que chegou meu ponto? Acabei pedindo informação para uma mulher que sentou do meu lado. Na hora que chegou meu ponto novamente senti vergonha: tanto a mulher como o deficiente visual me avisaram, ao mesmo tempo, que era ali que devia descer. Subestimei-o, mas o agradeci. A mulher desceu comigo e me mostrou o prédio da minha moradia, justamente como na foto do site. Fica perto de uma grande ponte e próximo a dois rios.

Lá entrando, esperei pelo zelador para pegar minha chave: ele havia saído. Enquanto isso, encontrei com a Cristina, uma espanhola filha de brasileiros que também morava lá e com quem havia conversado no Facebook. Nos falamos um pouco, até que o zelador chegou. Despedi-me dela, peguei minha chave e subi. O quarto é bem pequeno, menor ainda que minha quitinete em BH. Fica no segundo andar. Tem uma cama, um banheiro (chuveiro, torneira e privada), um armário e uma pia com um fogãozinho ao lado que faz as vezes de uma cozinha. Tem também uma mesa bem grande, com muitas prateleiras e até um cofre. Duas janelas grandes dão de frente para a quadra de basquete que pertence à moradia. Lá embaixo tem uma lavanderia e cada morador tem uma caixa postal, na entrada, onde recebe suas cartas.

Estava muito suado e resolvi tomar um banho. Também estava cansado pois só dormi duas horas na voo. Mas resisti e não dormi. Saí porque estava morto de fome e comi no primeiro lugar que achei: uma espécie de café chamado “Frisch wie Müller”, aqui ao lado. Pedi um sanduíche com salaminho e tomate. Para beber, peguei na geladeira algo que julguei ser parecido com um Toddynho. A única diferença era que vinha meio-litro de leite achocolatado! Mas o gosto é bem parecido.

O dono do local, Herr (senhor) Müller foi muito solícito. Perguntei onde podia achar um lugar para fazer ligação internacional e ele me indicou uma lan house que oferece esse serviço. Mais ainda: me deu um cartão telefônico com dez euros, dizendo que eu podia usá-lo em uma cabine telefônica ali na frente. Agradeci muito e ele se colocou à disposição sempre que precisasse.

Saí em busca do telefone público para avisar ao pessoal que havia chegado. Andei bastante pela Lechhauser Strasse, apenas em linha reta, com medo de me perder, e nada encontrei. Pedi informação pra duas pessoas: uma não sabia, o outro começou a falar muito rápido e não entendi nada. No caminho resolvi parar no supermercado para comprar algumas coisas que estavam faltando: levei um shampoo anti-caspa e um pacote com oito rolos de papel higiênico (mais tarde fui descobrir que na verdade eram quatro rolos de papel-toalha – um erro comum que já cometi várias vezes no Brasil). Procurei sabonete feito doido mas não encontrei.

Nessas primeiras andanças o instinto me impediu de cometer um erro crasso: atravessar a rua com o sinal de pedestre fechado. Aqui, por mais que a rua esteja deserta, raramente alguém atravessa quando o sinal está vermelho. Até mesmo um bebum que parou ao meu lado, com uma garrafona de cerveja na mão, ficou esperando até o sinal ficar verde. Foi também nessas primeiras andanças que vi uma pichação em um muro declarando “morte aos nazistas”. Em cima da pichação, porém, um monte de rabiscos, como se alguém estivesse tentando invalidá-la... Não soube o que pensar daquilo.

No caminho de volta finalmente encontrei a cabine telefônica, pertinho da minha moradia – não sei como não a enxerguei! Liguei para minha mãe com o cartão do Herr Müller, que continha 10 euros. Falei que estava tudo bem e o cartão acabou antes que terminássemos nossa conversa. Deixei as compras no quarto e novamente saí para procurar a lan house com ligações internacionais. Andei na direção oposta e a encontrei, próximo a uma grande torre – o Jakobertor. Lá usei a internet, mandei alguns e-mails, fiz algumas ligações. O dono, um turco meio gordinho de óculos, me lembrava muito um conhecido meu de Lavras, descendente de libaneses. Aliás, em Augsburg – como em toda a Alemanha – há um número muito grande de turcos. Mas turcos de verdade, vindos da Turquia. Aqueles a quem chamamos de turcos no Brasil são, na verdade, libaneses ou sírios. Por aqui existem muitos restaurantes de comida turca e também muitas lojas para fazer ligação internacional, graças a eles.

Na volta passei em outro supermercado para comprar mais coisas: o sabonete que eu não encontrara, um papel higiênico de verdade e algo para comer mais tarde. Meu primeiro “jantar” na Alemanha foi, portanto, um leite de soja, um pãozinho francês mais pálido que defunto e um queijo suíço em fatias. Tive que tomar o leite na minha garrafinha do CASU – UFMG, pois não tinha copo. Esquentei o pão e o queijo e até que ficou gostoso.

À medida que ia anoitecendo, eu me sentia mais esgotado. Estava muito cansado e caí na real: olhei para aquilo tudo, pensei no que eu havia feito naquele dia, refleti sobre tudo – desde meu primeiro dia na aula de alemão (em agosto de 2009) até então. Perguntei a mim mesmo: “o que foi que eu fiz?”, e não obtive resposta. Passar um ano na Malásia foi moleza; passar um dia na Alemanha me pareceu um suplício. Custei a dormir, pois não me acostumei ao fuso-horário. Pra piorar, altas horas da madrugada uma menina em outro apartamento começou a gritar escandalosamente, como se estivesse brigando com alguém. Ela gritava muito e ouvi barulhos de coisas caindo no chão. Ficou assim por uns cinco minutos e depois tudo se silenciou – e eu dormi. Até hoje não descobri o que foi aquilo.

No dia seguinte acordei como se nada tivesse acontecido: as dúvidas e os problemas da noite passada não mais me afligiam. Até agora não entendi exatamente o que houve comigo aquela noite. Acho que o cansaço acabou me deixando com alucinações. De toda forma, tomei meu café (mais leite de soja, pão e queijo suíço), tomei banho e saí. Fui mais uma vez na lan house do turco. Queria saber quanto tinha ficado o jogo do Cruzeiro com o São Paulo, mas esqueci de ver o resultado. Li, porém, todos os e-mails respondidos; um deles da moça da universidade que lida com intercambistas. Me disse que eu podia encontra-la no seu escritório às duas da tarde, e lá fui eu. Custei para entender como se compravam os tickets de ônibus e de uma espécie de bonde que tem aqui – até agora ainda não entendi direito como funciona a máquina que os vende. O pior de tudo é que não há ninguém para te cobrar a passagem: durante toda a viagem ninguém pediu meu ticket, ninguém barrou minha passagem. O brasileiro vê isso e estranha, mas aqui parece ser comum: todo mundo paga exatamente o valor correspondente ao lugar que quer ir. Se a pessoa quiser, pode entrar e andar de graça, mas ninguém faz isso. E se por acaso alguém te pega sem passagem, você paga uma multa de 40 euros. Óbvio que eu não me arrisquei.

Chegando na universidade, fui ao escritório da Frau (senhora) Kirchner, que trabalha no setor de apoio aos estudantes estrangeiros. Foi uma das melhores coisas que me aconteceram até aqui: ela me explicou tudo que eu precisava saber, me deu um mapinha da universidade, me indicou onde seriam as palestras de apresentação e até me inscreveu para o encontro de estudantes da faculdade de ciências humanas (o qual eu ignorava). Depois disso fui olhar meu seguro, minha conta no banco e almoçar, tudo ali mesmo, na universidade. Resolvi comer num restaurante de comida turca: pedi um kebab box, apenas 3 euros: um potinho de isopor com batata frita, carne de cordeiro e um molho meio apimentado. Uma delícia!

Voltando para casa passei novamente no supermercado para comprar mais coisas. Levei duas garrafas de água mineral (mais tarde eu tive a infelicidade de perceber que era água com gás, que eu odeio!). Também levei dois copinhos de iogurte com o único propósito de poder reaproveita-los depois de vazios (achei que não ia valer a pena comprar copos de vidro apenas para 5 meses). Por fim, levei um travesseiro e um cobertor, que não são fornecidos na moradia. Na minha primeira noite usei minha sacola com roupa suja de travesseiro e minha bandeira do Cruzeiro como coberta. Mais tarde, na hora de dormir, descobri o quanto as cobertas daqui são eficientes: elas não só impedem que o calor fuja, mas também te aquecem ainda mais! Aquecem tanto que nem aguentei dormir com ela e resolvi me deitar em cima dela.

Por fim, passei novamente na loja do Herr Müller para pedir informações: precisava comprar um adaptador para minhas tomadas, pois as tomadas daqui são horrendamente estranhas. Graças a isso, não consegui recarregar meu celular e, consequentemente, fiquei sem saber das horas. Ele me explicou onde tinha uma loja de material elétrico. Entendi mais ou menos e decidi que iria lá no dia seguinte. Fiquei sem-graça de ir no Herr Müller só pra pedir informação e levei novamente um Toddynho de meio-litro. A noite do meu segundo dia na Alemanha foi melhor que a primeira: minha ida à universidade me animara bastante e eu novamente sabia o que estava fazendo aqui.

Sexta-feira. Fui abrir uma conta no banco para pagar a taxa da universidade, necessária para fazer a matrícula. O banco fica ali na universidade mesmo. Após abrir a conta paguei o valor devido. Antes disso tudo, porém, novamente almocei no restaurante turco. O dia estava chuvoso e o vento frio quase me cortava. Fui na lan house do turco mais uma vez, fiquei feliz ao saber do empate do Cruzeiro e liguei para o Felipe, um brasileiro que mora em Augsburg e também vai estudar na Uni-Augsburg. Depois peguei o transporte para ir até a loja de materiais elétricos de que o Herr Müller tinha me falado. Parei próximo à prefeitura da cidade mas demorei a achar o lugar. Isso foi, no entanto, muito bom: enquanto caminhava via igrejas, estátuas romanas, construções medievais, prédios antigos... A prefeitura e a praça à sua frente são maravilhosas! Augsburg é uma cidade histórica exatamente do jeito como gosto, a terceira mais antiga da Alemanha. Fiquei fascinado com suas construções e enquanto isso, meio sem querer, achei a loja de materiais elétricos. Na volta descobri onde ficava um lugar que eu queria muito visitar: a Brecht-Haus, a casa onde nasceu o filósofo Bertolt Brecht e que virou um museu. Mas já estava fechada.

Voltei para casa já de posse do adaptador e antes passei no supermercado: comprei mais pães (dessa vez um pãozinho mais atraente, não aquele branco-defunto), uma garrafa de chá gelado sabor pêssego e uma barra de chocolate (vício incontrolável!). Chegando em casa carreguei meu celular, instalei a internet e terminei de escrever esse texto. Aqui no quarto não tem cadeira, por isso preciso me sentar na cama para usar a escrivaninha. Ainda estou ponderando se realmente vale a penas comprar uma cadeira, mas fico numa posição meio desconfortável – por isso esse texto escrito meio às pressas.

Esses foram meus três primeiros dias na terra de Beethoven, Marx e Bento XVI. Vejamos o que o fim de semana me reserva.

Um comentário:

maria neusa guadalupe disse...

Marcelo: sou uma ex-fessora boba e chorona agora...foi isso que a maturidade fez comigo..rs..me sinto orgulhosa de vc e te desejo tudo de bom aí nessa terra estranha,por enquanto.Continue a compartilhar conosco seus textos brilhantes...beijos amigos.