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terça-feira, 28 de outubro de 2014

A saga de N. (III) - (Ou, sobre a diferença e a relação entre a História e a Literatura)

N. é um jovem estudante que padece de um pequeno, porém sério problema: a miopia. Ela o obriga a utilizar óculos desconfortáveis e desajeitados. Tais óculos proporcionam ao jovem rapaz tanto mais inconvenientes quanto maiores os seus benefícios. Em uma festa, um churrasco, na cantina da faculdade ou mesmo na correria do cotidiano, sempre que N. vê uma menina que lhe chama a atenção, imediatamente coloca seus óculos para admirá-la e, principalmente, para ver se é correspondido. Entretanto, seus óculos deixam-no tão estranhamente esquisito que as meninas logo perdem o interesse.

Depois de muitos infortúnios, N. decidiu não mais usar seus óculos, a fim de assegurar que suas empreitadas afetivas fossem mais bem sucedidas. Tão logo tomou essa decisão, N. passou a atrair muito mais olhares do que antes. Mas isso de nada adiantou, afinal de contas, sem seus óculos N. não conseguia enxergar direito as meninas que estavam a trocar olhares com ele. Tudo o que ele via eram vultos, borrões em movimento. Era praticamente impossível definir quais olhos o fitavam com interesse e quais olhos apenas pareciam fita-lo, mas olhavam para outro lado.

N. não podia se conformar. Uma coisa era parecer-se com uma criatura excêntrica ao usar seus óculos. Outra, bem pior, era sequer ter o direito de saber quais meninas o olhavam. Resolveu então voltar a usar seus óculos, graças aos quais pôde observar melhor o seu entorno, bem como planejar suas abordagens sem risco de errar. Mas tudo que os óculos de N. lhe mostravam era o desinteresse das meninas, já que eles faziam-no perder todo o seu poder de atração.

N. entrara em um looping infernal: com óculos, ele enxergava um monte de mulheres desinteressadas. Sem óculos, tudo o que via eram borrões de expressões indefinidas que poderiam ou não estar a correspondê-lo. N. resolveu que era necessário então mudar de óculos, comprar um modelo que o deixasse mais agradável aos olhares. Tudo em vão. N. procurou incessantemente, experimentou vários modelos, nenhum deles capaz de deixa-lo mais atraente.

Depois de mais esse insucesso, N. desistiu dos óculos. Sempre que surgisse alguma mulher que julgasse interessante, iria se esforçar por enxerga-la sem os óculos mesmo, forçando sua visão. Assim, poderia desfrutar do benefício inédito de poder ver e de atrair olhares ao mesmo tempo. No entanto, essa estratégia também malogrou. Isso porque a maioria das mulheres tomava-o como louco ao vê-lo esbugalhando e fechando os olhos compulsivamente na tentativa de enxergar.

N. ficou depressivo por algumas semanas, sem saber como sair daquele looping.

Por fim, após muita reflexão, optou por uma estratégia nova. N. não iria mais usar seus óculos. Também não iria ficar forçando sua visão para enxergar melhor. Iria simplesmente se aproximar da mulher que o interessasse e só então teria a confirmação se o interesse era mútuo ou não. Era uma manobra muito mais arriscada, mas era a única que poderia render frutos. Se de nada adiantava ficar sentado sem óculos especulando qual era a reação das mulheres, menos produtivo ainda era enxergar perfeitamente o mundo ao seu redor sem ver absolutamente nenhum olhar simpático.

N. percebera que os óculos permitiam-no enxergar perfeitamente em um mundo sem-graça, ao passo que sem seus óculos ele enxergava mal em um mundo muito mais promissor. Entre viver em um mundo onde tudo fazia sentido, mas nada lhe cativava, e viver em um mundo incerto, mas cheio de surpresas, N. fez a sua escolha.

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