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sábado, 28 de janeiro de 2012

Confusões de Augsburg

28 de janeiro de 2012: um dia muito especial por dois motivos. Primeiro, porque daqui a um mês estarei deixando a Alemanha de volta ao Brasil. Segundo, porque daqui a algumas horas estarei completando 24 anos de vida. Aparentemente é só mais um aniversário, mas eu não vejo assim. Nasci no dia 29 de janeiro de 1988, de modo que vivi 12 anos de minha vida no século XX. Amanhã, portanto, completarei 12 anos vivendo no século XXI e igualarei essa marca: terei vivido o mesmo tanto em cada século.

Isso não é lá muito importante, é? Também acho que não. Mas quando você sabe que vai passar o seu aniversário todo fazendo trabalho e lendo “A ética protestante e o espírito do capitalismo” no original, qualquer motivo para comemorar é válido.

Aqui a neve tem caído com mais frequência. Só essa semana eu pude pegá-la e sentir sua consistência verdadeira. Até então ela estava derretendo muito facilmente. Quase todas as manhãs logo que eu acordo minha primeira visão são as árvores cobertas de neve. O inverno chegou de verdade. Quem também chegou foram os livros que encomendei na abebooks.de, um site pelo qual você pode encomendar livros de sebos em quase todos os lugares da Alemanha. Sendo assim, pelo menos o meu presente de aniversário já está garantido, e com antecedência! Um dos livros chegou semana passada e os outros foram chegando um atrás do outro ao longo dessa semana: um hoje, um ontem, um anteontem e outro quarta-feira. Finalmente posso dizer que tenho a documentação necessária para minha monografia. Ainda não tive tempo de ler cada um atentamente, mas o conteúdo de cada um é aquele que eu já esperava. Todos eles versam sobre temas de história alemã e também da história europeia em geral, na visão dos dois mais importantes historiadores nazistas: Karl Alexander von Müller e Walter Frank. Dois livros de von Müller (“História alemã e caráter alemão” e “Da velha até a nova Alemanha”) contêm diversos artigos históricos sobre temas variados, desde o Tratado de Versalhes até Fichte e Maquiavel, passando por Richard Wagner, Bismarck e até Oliver Cromwell. Enfim, o suficiente para se ter uma noção da visão de História que os nazistas queriam passar. O outro livro de von Müller é um bem pequeno que fala sobre o referendo de 10 de abril de 1938 pelo qual a Áustria aprovou a união com a Alemanha.

Um dos livros de Walter Frank também consiste de artigos históricos que tratam de figuras como Ludendorff e Karl Marx, além de versar muito sobre a história judaica (mais do que von Müller). O outro, que chegou hoje pela manhã, tem apenas 35 páginas e conta a história do próprio nacional-socialismo. Dentro dele vieram – não me pergunte o motivo – duas páginas de jornal soltas datadas de 1935 (uma delas com uma declaração assinada por Hitler sobre a necessidade de se proteger “o sangue e a honra alemães”). Gustavo Barroso também tem livros que tratam da história do integralismo e de repente surgiu a ideia de talvez comparar a visão que cada movimento tinha acerca de seu próprio lugar na história. De uma certa maneira, ambos os grupos (nazistas e integralistas) criticavam uma experiência liberal-democrática ainda precoce em seus respectivos países (a república oligárquica e a república de Weimar) e exigiam um governo mais forte e ativo.

E por falar em historiografia nazista, comecei a averiguar na semana passada alguns dos livros que estão disponíveis na biblioteca da universidade. São os livros de Alfred Rosenberg que, por serem muito caros, resolvi dar uma olhada no conteúdo antes para ver se realmente valia a pena encomendar. Pedi também um livro de Gottfried Feder, o programa do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Por terem um conteúdo um pouco mais “punk”, esses livros ficam em uma coleção especial, em uma sala especial, da qual não podem sair: você tem de lê-los lá mesmo. Além disso, antes de manuseá-los eu tive que preencher um formulário comprometendo-me a utilizá-los “apenas para finalidades acadêmicas”, isto é, a não irradiar o seu conteúdo maléfico por aí. Lendo algumas passagens dos livros imaginei o quanto devia ser fácil ser um historiador na época do Terceiro Reich: não era necessário discutir, debater, dialogar, raciocinar... Era só colocar a culpa nos judeus! Em algumas passagens de Alfred Rosenberg e Gottfried Feder pude ler que o comunismo, o capitalismo, o capital especulativo, o separatismo, até a Revolução Francesa: tudo fazia parte das maquinações judaicas para tomar conta do mundo e atentar contra a unidade da raça ariana. Momentos como esses me ensinam a sempre duvidar de explicações simples demais.

Sim, eu sei que deve ser bem chato para você ficar lendo sobre esses assuntos intelectualóides aqui no meu blog, principalmente se você não for estudante da área de humanas. Acontece que isso é o que tem me ocupado ultimamente. “Mas Marcelo, você não faz nada para se divertir?!”. Claro que faço! Meu trabalho da matéria de “Primeira Guerra Mundial” tem me rendido boas risadas, acredite em mim... Você pode achar que escrever doze páginas em alemão sobre a Primeira Crise do Marrocos é o ápice do tédio, mas te asseguro que não. Nunca estudei um episódio histórico tão cômico como esse. Consegue ser mais engraçado até do que as libertinagens no Brasil Colonial que o professor Villalta nos contava em Brasil I.

A Primeira Crise do Marrocos é, de longe, a melhor representação possível para aquele famoso meme “forever alone”. A Alemanha passou cada mês, semana e dia entre 1º de abril de 1905 e 7 de abril de 1906 tentando agradar todas as potências, convencê-las de suas boas intenções, chamando-as para negociar livremente nos portos do Marrocos, tentando forjar uma grande aliança continental sob sua hegemonia, clamando a todos que não queria a guerra, invocando o direito internacional e espantando o fantasma do isolamento diante das outras potências. Até que chega a esperada Conferência de Algeciras, proposta pelos próprios alemães para poderem se impor e isolar a França, e o que acontece? Alemanha, immer allein! Um a um, cada país da conferência abandona a Alemanha e demonstra seu apoio à França. E a cada país que dá pra trás o Kaiser Guilherme esbraveja, xinga, se irrita... Aos russos acusa de serem culturalmente inferiores e, portanto, incapazes de honrar o tratado que tinham. E quando a Itália e a Espanha se juntam à França ele diz que é uma maquinação dos povos latinos para atentarem contra o povo germânico. Um professor de Relações Internacionais bem disse: se você quiser entender geopolítica, não assista a filmes de guerra; assista Tom e Jerry e observe as crianças brincando. O Kaiser parece aquele adolescente que faz de tudo para ser aceito no grupinho cool da escola (bebe, fuma, se droga, sai pras baladas) e no fim das contas acaba excluído do mesmo jeito. Esse adolescente cresce com trauma, até que um dia ele se arma e invade uma escola. A Alemanha se armou e invadiu a França.

Confesso que foi a duras penas que aprendi essa lição. Eu também já tive a “síndrome de Algeciras”, essa mania doentia de querer agradar e ser aceito por todos, por puro medo de ficar sozinho, sem um grupo. Felizmente, com o tempo a vida me vacinou contra ela. Nunca tive um grupo definido, aquele com quem sempre andei e do qual sempre fui mais próximo; e das vezes que tentei pertencer a algum, sempre falhei. Desde os primeiros anos da escola, nunca me identifiquei com um grupo apenas e hoje essa ideia me soa escabrosa. Pertencer a um grupinho fixo e ser sempre fiel a ele me faz sentir como se fosse a pata de uma centopeia.

Assuntos acadêmicos à parte, recebi nos dois últimos finais de semana dois convites irrecusáveis de estudantes estrangeiros aqui em Augsburg. O primeiro foi da Natalie, uma israelense que estuda História e Filosofia. Ela chamou a mim – e mais pelo menos 25 outras pessoas – para ir comer comida israelense na casa dela em um sábado à noite. Ela mesmo preparou tudo e estava muito gostoso, não me arrependi. O problema é que era muita gente em um espaço muito pequeno (ela mora em um apartamento). Foi ficando mais tarde e as pessoas falavam cada vez mais alto – principalmente os italianos. Até que lá pelas onze e meia a polícia apareceu na porta para avisar que tinha recebido reclamação dos vizinhos. Coincidência ou não, essa foi a hora que eu e mais quatro resolvemos nos despedir. Mas valeu a pena.

No final de semana seguinte quem me convidou foi o Solomon, estudante da Eritréia que mora em Augsburg já faz um tempo. Ele é sem dúvida um dos grandes amigos que fiz aqui. Acho que o principal motivo é porque eu fui uma das únicas pessoas que ele conheceu na Alemanha que sabia onde a Eritréia ficava. No domingo à tarde fui até o apartamento dele e ele me recebeu muito bem. Na sala ele me apresentou uma menina, também da Eritréia, mas não disse quem era. Sentamo-nos e começamos a conversar, mas percebi que ele estava falando muito pouco. Nossa conversa era constantemente interrompida por intervalos silenciosos. Até que em determinado momento ele me disse: “Só que há um pequeno problema, Marcelo. Hoje de manhã recebi uma notícia da Eritréia falando que meu pai faleceu”. Em seguida ele ensaiou um pequeno choro que não se concretizou. Nesse instante fui tomado por um espanto súbito, causado muito mais por uma vergonha do que por um susto. Fiquei desconcertado. Será que eu realmente deveria estar lá? Será que ele me mandou uma mensagem no Facebook cancelando o encontro e eu não vi? Não, ele disse que não. Ele havia recebido a notícia há bem pouco tempo, havia sido pego de surpresa. Eu disse que sentia muito e falei que, se ele quisesse, a gente marcava de se ver outro dia. Mas ele – e a menina que até então estava calada – se anteciparam e disseram que não, eu não precisava me preocupar; a comida já estava preparada e não havia motivos para cancelar. Ele apenas me disse que não iria poder ligar o rádio e a televisão para me mostrar alguns vídeos e músicas tradicionais da Eritréia, em respeito ao seu pai.

Então comemos e bebemos. A comida estava uma delícia: um pão redondo, fino como um papelão (que nem uma panqueca) que a gente passava em um molho bem apimentado, com frango e ovo cozido. Certa hora, quando ele deixou a sala, a menina (que, como eu iria descobrir mais tarde, era namorada dele) me disse que havia mais de dez anos que eles não viam seus pais, tendo em vista que a instabilidade política na Eritréia impedia-os de retornar ao país. Resolvi ir embora mais cedo por conta da situação toda. Solomon me acompanhou até o ponto do bonde e, ao me despedir, mais uma vez lamentei pelo pai dele e ele agradeceu. Desde então não o vi de novo, mas espero que já esteja melhor. Esse é o tipo de experiência que me serve como um belo puxão de orelha e me ensina a valorizar aquilo que tenho, ao invés de ficar reclamando do que não tenho.

Minhas aulas acabam dia 10, quando terei uma prova oral. Tenho mais quatro trabalhos para entregar (dois já estão prontos e um na metade) e pretendo entrega-los todos até o dia 10, pois tenho planos de viajar a partir do dia 11. Meu Eurail vale por mais seis dias e pretendo usá-lo para ir até a Áustria e, de lá, pegar o trem para Liechtenstein e depois para a Eslovênia. Por fim, pretendo ir também a Berlim caso haja tempo e dinheiro. Preciso ainda olhar uma série de questões burocráticas antes de voltar, como fechar minha conta no banco, cancelar meu cartão, informar o departamento de estrangeiros e obter os documentos da universidade. Assim será meu último mês aqui.

E a propósito, feliz aniversário para mim!

Um comentário:

maria neusa guadalupe disse...

Marcelo:meu querido e inesquecível allievo: antes de mais nada,me diz: onde fica Eritréia?Agora posso dizer que li com curiosidade e sofreguidão esse seu ùltimo( ? ) post....e aprendi tanto História como Humanismo....bom aniver pra vc( aqui são quase meia-noite) e boa volta pro Brasil...beijos festivos e amigos.