Segunda-feira era o dia D para mim: iria fazer minha primeira apresentação na universidade! Nada de muito grave: era para a matéria de "Textos-chave para o período 1830-1930". Tinha que fazer uma breve apresentação de apenas 5 minutos sobre a vida de Karl Marx. Em geral os professores daqui pedem para a gente entregar um roteiro resumindo tudo o que vamos falar na apresentação oral. Assim, procurei na biblioteca algumas biografias de Karl Marx e comecei a fazer algumas anotações. Peguei as duas mais curtas que achei (uma delas do Isaiah Berlin), pois para uma apresentação de apenas 5 minutos não podia ficar me perdendo em detalhes. Li apenas o começo de cada uma delas e complementei as informações com dois textos que achei no site marxists.org. Montei um pequeno roteiro e enviei ao meu tutor para que ele pudesse corrigir os erros gramaticais. Na hora da apresentação deu tudo certo e aquilo que eu mais temia não aconteceu: ninguém me fez perguntas. Acho que a turma se compadeceu de mim... Depois de minha apresentação discutimos o Manifesto e ao fim da aula o professor disse que eu tinha ido muito bem e aquilo me deixou aliviado.
E como é a universidade daqui? Só posso dizer baseado no prédio que eu frequento, que é a Faculdade de Filologia e História. Pra começar, é um lugar bem diferente da FAFICH em certos aspectos, mas bem parecido em outros. É diferente porque lá dentro ninguém fuma - é proibido, uma vez que o lugar é todo fechado. Além disso, têm vários corredores cobertos por carpetes onde muitas pessoas costumam se sentar para estudar ou apenas conversar. Têm várias mesas e cadeiras espalhadas pela faculdade que o pessoal usa para estudar. É algo muito prático quando você tem um tempo livre entre uma aula e outra e quer ler um texto mas não quer perder tempo indo até a biblioteca. Tem uma salinha lá que funciona como CA ou DA, mas nunca entrei porque é um lugar extremamente estranho e que costuma ficar de portas fechadas, ou lotado com um monte de gente na porta. No geral, a faculdade é um lugar tranquilo: festas ficam só do lado de fora, assim como o cigarro. Alemão é sim um povo festeiro, mas eles sabem muito bem separar o ambiente de festa do ambiente de estudos.
A faculdade se parece com a FAFICH no que tange aos adesivinhos pregados por toda parte (ainda mais do que na FAFICH) e aos escritos em banheiros. Por todo lado na faculdade, na universidade e mesmo no resto da cidade você vê adesivos parecidos com aqueles que têm na Savassi. Os daqui, porém, quase sempre são da torcida organizada do Augsburg F.C., o time local que pela primeira vez na história disputa a primeira divisão da Bundesliga. Pra todo lado tem um adesivo desses. Na faculdade, além desses adesivos do Augsburg F.C., têm outros denunciando a energia nuclear, criticando o alistamento militar, protestando contra o abate de animais para consumo humano e contra as taxas estudantis (a universidade é pública mas os estudantes têm que pagar uma taxa de cerca de 540 euros para ajudar nos gastos; não estou bem certo, mas acho que é uma contribuição semestral). Já em relação aos escritos em banheiros, as temáticas pendem mais para o lado político (diferente da FAFICH, onde predominam mensagens sexuais). A frase mais comum, escrita em quase todos os banheiros em letras garrafais é "revoltem-se!". Outras tantas denunciam o radicalismo islâmico e têm também algumas com conteúdo neo-nazista.
Já as aulas são muito bem conduzidas. Os professores são muito pontuais, os alunos muito participativos e, pelo menos nas matérias que estou fazendo, os professores sempre fazem questão de estabelecer um diálogo com os alunos. Eles sempre lançam perguntas e provocações a fim de atiçar as discussões entre a turma. Todos eles também sempre se mostram inteiramente à disposição dos alunos e fazem sempre questão de perguntar ao longo da aula se estão todos entendendo e se alguém tem alguma dúvida. Os textos que serão usados ao longo do semestre são entregues na primeira semana de aula, todos já xerocados (o preço deles está incluído na taxa de 540 euros).
No sábado seguinte à apresentação sobre Karl Marx tive novamente aula da matéria de imperialismo e colonialismo. Essa aula era a que eu mais esperava: sobre a Primeira Crise do Marrocos! O professor já sabia que eu me interessava pelo tema e não hesitou em pegar no meu pé. Fez algumas perguntas e pediu minha opinião sobre certos pontos, ao que eu me saí relativamente bem (embora falando um alemão sofrível). Falo tanto assim dessa disciplina porque julgo que ela tem sido a mais importante para mim até aqui. Graças a ela pude entrar em contato com a bibliografia que precisarei na minha monografia, além de ter aprendido mais sobre a história do imperialismo alemão, algo que até então eu conhecia muito pouco. É isso que me dá ânimo para acordar todo sábado de manhã, sair na rua deserta toda coberta por neblina e quase congelar esperando o bonde. Sem dúvida alguma, a optativa que fiz sobre história da África nos séculos XIX e XX na UFMG foi de fundamental importância para que eu aproveitasse melhor essa matéria: Herero, Maji-Maji, Zambeze... Em uma aula ministrada em alemão, todos esses nomes iriam confundir bastante minha cabeça caso eu já não os tivesse estudado antes.
Na semana seguinte viria minha verdadeira prova de fogo: a apresentação de um seminário na disciplina de Primeira Guerra Mundial. Meu grupo era formado por um espanhol que falava menos alemão do que eu e por um alemão. Iríamos falar sobre as experiências pessoais dos soldados durante o conflito. Bolamos um trabalho muito bom com um Power Point e um roteiro, e tinha tudo para dar certo. Mas eis que o único alemão do grupo, em quem tínhamos depositado nossa confiança, nos presenteou com a triste notícia de que na semana da apresentação ele faria uma cirurgia na boca e não poderia falar no dia. Ou seja: a apresentação ficaria nas mãos do espanhol e nas minhas. Até aí ainda daria para aturar, se não fosse um outro detalhe mortal: o seminário não se resumia a uma apresentação; o grupo também tinha que apresentar um documento para a sala, instigar e moderar uma discussão em torno dele. Isso era, para mim, virtualmente impossível: por mais que eu fale relativamente bem, ainda acho extremamente difícil entender o que os outros dizem, e o espanhol (Hugo é o nome dele) tinha ainda mais dificuldades com o idioma do que eu. De qualquer modo, fizemos o possível: sentei com o Hugo um dia antes da apresentação, expliquei para ele o conteúdo dos documentos e sugeri algumas perguntas que poderíamos fazer para a o resto da turma a fim de promover um debate.
Um dos documentos que escolhemos ficou na minha cabeça: falava de um oficial inglês que, no ápice da guerra, ficou louco. Ele começou a gemer, a rastejar no chão, a cavar desesperadamente um buraco na lama como se tentasse fugir - tudo isso observado pelos soldados os quais ele liderava. O outro oficial que viu aquilo disse que ele parecia ter regredido a uma forma pré-humana de vida, pois não se comunicava, não andava e não dava ouvidos a ninguém; apenas gritava e rastejava. Achei aquilo assustador e, ao mesmo tempo, bastante propício para suscitar uma discussão. Enxerguei aquilo como algo simbólico de uma nova realidade de guerra. Toda a pompa, a glória e majestade dos oficiais do século XIX havia se perdido diante de uma nova realidade de guerra: a realidade da metralhadora, dos bombardeios, da guerra total, capaz de deixar qualquer homem pacato do século XIX literalmente doido.
Mas enfim, aquilo que tinha tudo para sair errado acabou não saindo: no dia da apresentação o integrante alemão de nosso grupo apareceu muito bem e pôde apresentar normalmente, além de conduzir a discussão. Preparei um texto para me guiar na hora da apresentação e até que foi tranquilo. Ao fim da aula o professor (o mesmo da matéria em que eu havia apresentado sobre Karl Marx) disse que falei com muita segurança e desenvoltura. Novamente aliviado!
Na quinta à noite o departamento de estrangeiros da UNI-Augsburg organizou um pequeno passeio pela cidade ao qual aderi de última hora. A guia do passeio nos levou para alguns pontos históricos da cidade sobre os quais haviam lendas e nos contou dessas lendas. A que mais gostei foi a das sete crianças. Existe uma rua aqui em Augsburg que se chama "(alguma coisa) de sete crianças". Embaixo da placa com o nome da rua há seis imagens de crianças talhadas em pedra. Diz a lenda que, nos tempos do Império Romano, um casal que vivia na cidade tinha sete filhos e acabou perdendo um deles (ele simplesmente sumiu e ninguém mais o viu). A mãe ficou tão triste que se esqueceu de tudo: do marido, dos outros filhos, dos afazeres domésticos... Ela só pensava no filho desaparecido. Foi quando o marido dela fez essa escultura em pedra com seis crianças e deu a ela de presente. A mulher viu aquilo e perguntou por que ele havia esculpido só seis crianças se eles tinham na verdade sete filhos. Ao que o marido respondeu: "não preciso esculpir nosso sétimo filho pois ele está sempre com você em seus pensamentos; essa escultura é para você se lembrar dos outros seis filhos que você ainda tem mas dos quais se esqueceu".
Por essas e outras digo que não poderia ter escolhido cidade melhor do que Augsburg para morar. Não preciso viajar muito porque aqui sempre têm lugares interessantes para se ver. Só me resta coragem para quebrar minha rotina "casa-faculdade". Assim como a mulher da lenda, preciso parar de ficar me preocupando apenas com um aspecto do meu intercâmbio (a finalidade acadêmica) e me lembrar dos demais aspectos (viajar, passear, conhecer...). Preciso me lembrar de meus outros seis filhos. Objetivos são bons mas não são tudo.
2 comentários:
Marcelo, foi emocionante e divertido ler seu blog. Forte abraço.
Marcelo: que lenda maravilhosa e pertinente não só pra você,mas pra todos nós ,seremos humanos com viseiras invisíveis.....é um alerta !!Gosto muito dos seus escritos...adoro vir aqui e ficar sabendo das novidades,sempre inspiradoras...não demore a postar...beijos amigos e chuvosos.
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