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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Páginas de combate - parte II

O constrangedor evento que protagonizei em presença de alguns estudantes malásios, narrado no meu último texto (Páginas de combate, parte 1), é mera ilustração de algo que se vê naquele país com uma frequência incômoda: uma ingênua hipocrisia que chega a beirar as raias do descalabro. Sempre desconfie de estudantes da Malásia que se dizem flexíveis e com mente aberta para todos os temas, pois todas aquelas mentes se fecham mais rápido do que um esfíncter tão logo entram em contato com a palavra “sexo”. Desconfie mais ainda quando eles (os malásios, estudantes ou não, quem quer que seja) vierem te importunar com uma conversa marrenta sobre “diferentes raças vivendo em harmonia num mesmo país”.

Historicamente, os territórios que posteriormente comporiam a Malásia foram ocupados por basicamente três grupos étnicos: os malaios, naturais da região e culturalmente próximos dos indonésios; os indianos, responsáveis por introduzir o islamismo no país e, mais tarde, importante força de trabalho na extração de látex ao longo do começo do século XX; e os chineses, que desde tempos imemoriais eram assíduos comerciantes naquela região.

A propaganda oficial veiculada pelo governo – e comprada em massa por grande parte da opinião pública – é a de que a Malásia é uma réplica da ONU, onde diferentes raças convivem pacificamente e amigavelmente em um mesmo território. O orgulho que eles possuem de ser um país multirracial é tão grande que não raras vezes eu fui surpreendido com perguntas do tipo: “por que o Ronaldinho Gaúcho é negro e você é branco?”, ou ainda “por que você não tem cabelo encaracolado como os demais brasileiros?”. Ou seja: na cabeça de um malásio, todos os países do mundo são monorraciais, menos eles mesmos. Por isso acho que ficam em choque ao saber que têm países no mundo formados, como eles, por mais de uma etnia. Sempre busquei explicar, portanto, que o Brasil tinha sido constituído, assim como a Malásia, por três “raças” (europeus, índios e africanos), a fim de esclarecê-los sobre os motivos de eu ser tão diferente daqueles jogadores brasileiros que eles viam no futebol europeu.

A questão é que, diferente do Brasil, na Malásia a miscigenação não foi a regra. Somente nos últimos anos têm sido mais frequentes os casamentos inter-raciais, e não podia ser diferente. Por mais que o governo insista à exaustão em vender a imagem de um país no qual indianos, chineses e malaios (ou, se preferirem, cristãos, muçulmanos, hindus e budistas) vivem na mais completa paz, é só você ter uma pequena conversa em particular com um chinês para ele lhe dizer o quanto odeia os malaios. Ou então com um indiano, pra que ele lhe diga o quanto odeia os chineses. E por aí vai. Lá, temos um exemplo clássico de racismo institucionalizado. Os malaios, por serem maioria e deterem o poder político, gozam de uma série de privilégios: têm cotas nas universidades, acesso mais fácil a cargos públicos e preços mais baixos na hora de comprar terrenos. Os chineses são o segundo grupo étnico mais numeroso e, embora tenham menos influência política, são relativamente mais prósperos economicamente. Por fim, os indianos são a minoria da população, não gozando de poder político nem econômico significativos. Lembro-me bem de quando contei a dois indianos que eu queria estudar para ser diplomata, e eles responderam rindo, dizendo que eles, como indianos na Malásia, jamais poderiam sonhar com isso, pois tais cargos eram reservados só para os malaios.

O resultado desse estado de coisas é um diz-que-me-diz de proporções astronômicas, no qual chineses e indianos acusam malaios de serem preguiçosos porque já têm tudo na mão, chineses zombam de indianos por serem sujos, pobres e escuros (juro que já ouvi isso) e indianos acusam chineses de serem interesseiros e materialistas, só pensando no dinheiro. Esse show de baixarias não acontece em público, visto que todo malásio aparentemente nasce educado a não falar na cara esse tipo de coisa. Quando os estrangeiros como eu chegam é que eles aproveitam para abrir o berreiro. Um amigo chinês me disse uma vez que os malaios são o grande problema do país, e um outro, também chinês, afirmou com segurança que os malaios e indianos têm inveja dos chineses porque eles têm pele branca. Isso sem falar num outro amigo meu, chinês evangélico, que havia me passado o ICQ (lembrem-se que meu intercâmbio foi em 2004-2005!) de vários colegas dele e me assegurado que eu não precisava me preocupar porque todas aquelas pessoas que ele havia me apresentado eram cristãs. Parece que os atritos étnicos e religiosos são tão grandes que eles automaticamente assumem que os estrangeiros que aportam no país estão dispostos a participar deles.

Sendo assim, se um dia estiver na Malásia e vierem te dizer que lá todas as raças convivem em harmonia, faça como se estivesse conversando com um homem que se diz Napoleão: apenas incline a cabeça e concorde com tudo. Não há motivos para discutir porque, nesse ponto, eles nunca dão o braço a torcer. Acho que o sonho dos potentados locais é que Gilberto Freyre nasça malaio na próxima encarnação. Para todo espírito que resolver questionar a democracia racial na Malásia sempre existirá um malásio para dizer: “we are Malaysians; we are open-minded”. E eu já experimentei na pele o que significa ser mente aberta na terra das Petronas (vide minha experiência com os estudantes descolados).

Como todo brasileiro, não fui poupado das perguntas sobre futebol – assunto que eu nunca dominei com maestria, tanto no falar como no jogar (e naquela época menos ainda). Tudo o que se sabe na Malásia sobre o Brasil é que muitos jogadores daqui jogavam em clubes europeus. Parece que eles imaginam o Brasil como uma grande linha de montagem de jogadores de futebol destinados à exportação, e que todos os brasileiros, mesmo os que não eram exportados, eram exímios jogadores de futebol. Os malásios, de fato, amam futebol, e acompanham com fervor o campeonato inglês. Para eles, a Inglaterra é a grande referência no futebol mundial. Por isso frequentemente alguns colegas de escola me perguntavam por que jogadores consagrados como Ronaldo e Ronaldinho não atuavam no futebol inglês (pergunta essa que nunca consegui responder com muita segurança). Perguntavam-me também se eu conhecia algum jogador de futebol brasileiro, se eu já os havia visto jogar ao vivo ou se eu falava a mesma língua que eles. Isso sem mencionar as vezes em que me perguntaram por que o Brasil não estava participando da Euro-2004.

Outra visão interessante que alguns malásios tinham do Brasil acabou me pegando desprevenido. Por muito tempo o Brasil foi conhecido como o “celeiro do mundo”. Na Malásia, porém, ele é hoje conhecido não só como o “estádio do mundo”, como já vimos, mas também como a “boate do mundo”. Uma ou outra vez, quando notou meu jeito mais reservado e quieto de ser, alguém se surpreendeu, alegando pensar que os brasileiros eram pessoas felizes, animadas e festeiras. Também nunca tive uma boa resposta para essas perguntas, embora hoje eu pudesse pensar em milhares de boas respostas. Eu poderia responder: “eu também pensava que a Malásia era um país muçulmano onde todos se voltavam para Meca cinco vezes ao dia, mas cheguei aqui e vi igrejas evangélicas e Mcdonalds”; ou então “eu também pensava que na Malásia todas as raças viviam em paz, como vocês mesmos dizem”; ou ainda “o Brasil tem 180 milhões de habitantes; se cada um desses 180 milhões de habitantes fosse festeiro como você diz, nosso país seria uma eterna micareta”. No entanto, boas respostas como essas nunca me vieram à mente no momento oportuno.

Estádios e mesquitas! Enquanto meus colegas de sala se interessavam por futebol, eu me interessava pelo islamismo. Eles me perguntavam sobre a seleção brasileira, sobre o desempenho dos jogadores brasileiros na Europa, sobre minha opinião acerca da Premier League, e eu lhes perguntava sobre as mesquitas, sobre a vigência da lei islâmica no país (a sharia) e sobre a laicidade ou não do Estado na Malásia. No final das contas, nem eu nem eles tínhamos respostas satisfatórias uns para os outros. É duro fazer intercâmbio em um mundo globalizado!

Em relação à escola, os estudantes da Malásia escolhem, a partir do penúltimo ano, o rumo que querem tomar: ciências exatas ou humanidades. Dependendo do lado para o qual você quer se encaminhar, muda a grade curricular. A princípio fiquei na turma de humanidades. Contudo, na Malásia quem escolhe a área de humanas não costuma ser bem visto pela sociedade. Quando eu perguntava às pessoas sobre a possibilidade de escolherem esse rumo, sempre me respondiam: “Mas... se você for pra área de humanas o máximo que você conseguirá na vida é ser um advogado”. Perdi as contas de quantas vezes escutei essa resposta inusitada. Sendo assim, as turmas de humanas eram maculadas em toda a escola, ganhando a fama de serem os maiores redutos de baderneiros e marginais. Como eu não iria me formar naquela escola – e como sempre tive um ódio mortal pelas ciências exatas – escolhi ficar na turma de humanas mesmo, até porque a carga horária lá era menor e eles saíam mais cedo.

Depois de um tempo, temendo pela minha segurança, a dona da casa na qual me hospedei intercedeu junto à escola para que eu mudasse para a turma das exatas, onde a gente supostamente era mais ordeira. Concordei, pois para mim pouca diferença havia. Interessei-me especialmente pelos livros didáticos de história. Um colega meu, conhecido por todos como um comunista convicto, me apontou uma série de incongruências neles. Ele disse que havia duas figuras míticas na história malaia – Hang Tuah e Hang Jebat, se bem me lembro – que figuravam nesses livros como personagens reais. Folheando os livros, vi também a figura de Mat Salleh, um grande nacionalista malaio conhecido pela sua profunda xenofobia (tanto que, ironicamente, a expressão Mat Salleh é uma forma coloquial e até pejorativa de se chamar os estrangeiros na Malásia, assim como “gringo” no Brasil). Pode ter sido falta de atenção minha, mas os livros didáticos pareciam tratar muito pouco da história europeia e de eventos como a Revolução Industrial ou a Revolução Francesa. Mesmo a Idade Média europeia era ignorada, prevalecendo o estudo do islamismo e da cultura árabe. Além disso, à medida que as séries iam avançando, o estudo de história se fechava mais na história da Malásia, ao invés de se expandir para a história geral.

Conheci muita gente na escola, embora não mantenha contato frequente e regular com nenhum em especial. Uma das pessoas que me vêm à mente agora, além daquelas já citadas no primeiro texto, foi um rapaz chinês com o qual conversava vez ou outra, mas que com o tempo fui conhecendo melhor. Quando já estava mais íntimo dele, descobri que tinha uma penca de problemas familiares, sofria de baixa autoestima e era muito zombado pelos colegas de sala. Disse-me ele que queria muito conhecer uma mulher e se casar, mas que se achava feio e que nenhuma mulher olhava pra ele. E foi numa dessas conversas sobre mulheres que ele me confessou que lá no fundo sentia raiva de pessoas como eu, que atraem os olhares femininos. Respondi que não sabia sobre o que ele estava falando, visto que em toda a minha vida eu nunca havia sequer beijado alguém. Então ele me disse que quando saíamos, muitas meninas olhavam pra mim, ao que respondi que isso era natural, já que eu, como estrangeiro, era fisicamente diferente dos demais. Foi aí que ele se empolgou e me perguntou se caso ele viesse para o Brasil, as meninas também o olhariam assim. Não soube o que responder, pra variar. Apenas disse a ele pra ter calma, que ele iria achar alguém logo.

Esse é só mais um exemplo do que eu já escrevi. Quem leu o primeiro texto sobre minha experiência na Malásia sabe bem de meus infortúnios na hora de fazer amizades naquele país. E caso você tenha acompanhado minhas confissões de Augsburg, entenderá que essa é uma das principais razões pelas quais resolvi passar meu intercâmbio na Europa recluso. Não queria adicionar à minha coleção mais tipos exóticos. De gente estranha na minha vida já basta eu.

Um comentário:

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