Da última vez em que escrevi neste blog, o Brasil possuía
6570 mortes por Covid-19 oficialmente registradas. Hoje, dia 21 de junho, 6570 é
o número médio de mortes em menos de uma semana.
O nível de mediocridade a que chegamos é tamanho que, na
ausência de qualquer perspectiva otimista para o futuro, os negacionistas, em
todas as suas variações (desde os que negam por completo até os que negam em
partes), apelam a um otimismo patético e irresponsável. “Não olhe o número de
mortos, olhe o número de recuperados!”, eles dizem. “Muita gente morreu, mas
muita gente está viva!”, dizem alguns outros. “Não espalhe medo, espalhe
esperança!”, bradam ainda outros. Esbravejam porque os telejornais só falam da
Covid. Chamam a Rede Globo de TV Funerária. Criticam aqueles que só veem o lado
negativo da pandemia. Tamanha falta de noção da realidade apenas endossa o
título do artigo estampado na capa da Folha de São Paulo de outubro de 2019,
que heroicamente recuperei no muro de minha casa em abril: “Reinações de Jairzinho”.
Ninguém está imune a essa onda de mediocridade. Quantas vezes
não fiquei com raiva de mim mesmo por esboçar um tímido otimismo toda vez que o
número diário de mortos ficava abaixo de mil. Tivemos algumas poucas notícias
boas essa semana: dexametasona, vacina chinesa testada em São Paulo, OMS
notando uma desaceleração de casos no Brasil... Mas os mais de mil mortos
diários continuam a nos assombrar todo final (ou começo) de tarde, dependendo
de onde vêm os números: se do governo ou do consórcio.
Meus sonhos com morte acabaram faz tempo, mas a sensação de
estar cada vez mais perto dela, não. Poucas vezes na vida estive assim tão
perto de morrer. A primeira foi em dezembro de 2004, quando, apenas um dia após
o tsunami que devastou o Sudeste Asiático, viajei para a ilha de Langkawi, que
também fora atingida. Um mês antes de esse mesmo tsunami ter devastado a orla
da praia de Georgetown, eu também estive lá. A segunda foi em 2012 ou 2013 (ou
seria 2014?), quando, voltando do trabalho, no cruzamento da Augusto de Lima
com a Araguari, por muito pouco não fui atingido em cheio por um carro em alta
velocidade que ignorou o sinal vermelho.
Nem mesmo o maior tempo passado dentro de casa fez sumir a
sensação de estar próximo à morte. Se, conforme observei no dia 4 de abril, o
muro de minha casa é um túmulo de jornais, seu quintal sempre foi um túmulo de
pipas. Hoje caíram duas. Uma delas eu entreguei a um rapazinho aqui na frente
que acompanhava a disputa de pipas no céu com vivo interesse. Ele confessou que
a pipa não era dele, mas que aceitava de bom grado. A outra pipa caiu em três
casas diferentes: o começo da linha caiu na casa do vizinho, o meio da linha atravessou
o fundo do meu quintal e a pipa em si caiu na casa de trás. Tive de ir até lá
para resgatá-la, já que o fio dela se enroscou na cerca elétrica.
Desde que me entendo por gente vejo pipas caindo aqui no
quintal, poucas das quais foram reivindicadas. Acho que isso se dá menos por
falta de interesse dos pipeiros pelas suas pipas do que por ignorar mesmo o
paradeiro delas. Quem quer enterrar seus mortos sempre corre atrás. Ontem mesmo
assisti a um filme sobre um fazendeiro australiano cujos filhos haviam morrido
na Batalha de Galípoli, na Primeira Guerra Mundial. Finda a guerra, o fazendeiro
deixa sua fazenda nos confins da Austrália e embarca para o Império Turco,
onde, em meio a minas de guerra, corpos putrefatos e profunda instabilidade
política, tenta recuperar os corpos de seus filhos para enterrá-los dignamente.
Nunca fui de soltar pipas. Porém, saber que sua pipa ficará
esquecida em algum quintal da cidade deve ser uma sensação angustiante. Por
isso mesmo nunca entendi a rabugice de certos senhores ao não devolver as pipas
que caem em suas casas aos seus respectivos donos. Eles me lembram os oficiais
turcos e ingleses que a todo custo dissuadiam o fazendeiro australiano de
encontrar seus filhos, tentando convencê-lo de que os campos de batalha do
Império Otomano eram o melhor túmulo para eles, e não uma cova simples no
sertão australiano.
Perder a pipa é quase como perder a própria identidade, algo
em que já estou me tornando um verdadeiro especialista. Ano passado encontrei
três documentos de identidade em Belo Horizonte: um de uma estudante hondurenha
na UFMG, um de uma jovem ainda no ensino médio e um de um turista carioca,
todos devidamente devolvidos a seus donos. Em seus agradecimentos, todos expressavam
o alívio inconfundível de ver um pedaço deles retornando a si mesmos.
Que nenhum morto de guerra seja esquecido.
Que nenhum documento de identidade seja perdido.
Que nenhuma vítima da Covid-19 seja apenas uma estatística.
E que nenhuma pipa seja perdida, pois só elas se elevam sobranceiras,
rasgando os limpos céus de junho, a anunciar que a vida continua.